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Entre o risco e a remoção: o invisível direito à cidade nas favelas

Em Paraisópolis, obras de canalização prometem conter enchentes, mas removem famílias, aprofundam desigualdades e reforçam o ciclo da exclusão urbana

Por Alane Santos da Silva*

No coração da zona sul de São Paulo, Paraisópolis resiste.

Uma das maiores favelas da cidade, com mais de 21 mil domicílios segundo o Censo de 2022, carrega a marca de décadas de abandono do Estado e, ao mesmo tempo, de um protagonismo popular que transformou precariedade em território de luta e pertencimento. Nos últimos anos, a comunidade enfrenta uma nova ameaça: as obras de canalização do Córrego do Antonico, anunciadas como solução para enchentes, mas que removem famílias, ampliam desigualdades e reforçam uma lógica urbana que continua expulsando os pobres da cidade.

O caso revela o duplo ônus das favelas: permanecer significa enfrentar riscos como enchentes, deslizamentos e calor extremo. Sair, implica perder vínculos, anos de investimento e ser empurrado para periferias ainda mais vulneráveis. Nesse processo, as famílias perdem casas, redes de apoio, acesso a serviços e uma história de resistência ignorada pelas planilhas da engenharia urbana.

Exclusão, riscos e incertezas: a realidade de Paraisópolis

A urbanização no Brasil se estruturou pela exclusão. Sem políticas habitacionais, os mais pobres foram empurrados às franjas da cidade, ocupando encostas, córregos e áreas ambientalmente frágeis.

Em Paraisópolis, esse processo começou nos anos 1920, com a venda de lotes da antiga Fazenda Morumby, e se intensificou nos anos 1950 com a chegada de migrantes. Sem regulação, a favela cresceu ao lado do Morumbi, um dos bairros mais valorizados da capital.

Hoje, enfrenta adensamento extremo, pouca vegetação, drenagem precária e ausência de saneamento em várias áreas. O Córrego do Antonico, que nasce dentro da comunidade e deságua no Córrego Pirajussara e, posteriormente, no Rio Pinheiros, tornou-se canal poluído, encoberto por moradias e sujeito a transbordamentos frequentes.

Entre 86% e 100% do solo da sub-bacia está impermeabilizado o que, na prática, significa alagamentos constantes, agravamento de doenças e perdas materiais que atingem sistematicamente os moradores. Em 2021, um deslizamento matou uma pessoa, feriu cinco e deixou várias famílias desabrigadas, mostrando a urgência das intervenções.

Diante disso, a Prefeitura iniciou a canalização do Antonico, dentro do Plano de Ação Climática e do Caderno da Bacia do Pirajuçara. A meta é reduzir em 87% a área sujeita a alagamentos, beneficiando até 90 mil pessoas. Na prática, no entanto, o projeto tem provocado remoções sem diálogo, laudos distorcidos e desestruturação social.

Até novembro de 2024, cerca de 1.598 famílias foram notificadas sobre as remoções. Destas, cerca de 500 optaram pela indenização e 700 passaram a receber auxílio-aluguel, medidas que, na maioria dos casos, não cobrem os custos reais da mudança, aprofundando o ciclo de vulnerabilidade das famílias.

Cerca de 400 famílias notificadas ainda não têm qualquer informação sobre quando seus destinos serão definidos, vivendo na incerteza e insegurança.

Viver entre riscos e perdas: os custos da permanência e da remoção

Imagens de satélite e dados georreferenciados escancaram a desigualdade ambiental entre Paraisópolis e bairros vizinhos como o Morumbi, onde áreas verdes ajudam a amenizar as temperaturas.

Em Paraisópolis, a falta de vegetação e a precariedade das construções formam uma ilha de calor com picos de 36°C, afetando a saúde, o sono e o bem-estar da população, especialmente crianças e idosos. Essa precariedade se soma à poluição do Córrego do Antonico, agravada pelo despejo de esgoto e lixo, elevando os riscos à saúde pública. É a face mais cruel da desigualdade urbana, pois os que menos têm pagam mais caro pela ausência de planejamento e saneamento.

As obras no Antonico reconhecem a urgência de conter enchentes, mas operam sob uma lógica técnica que ignora história, afetos e participação popular. Não há um plano claro de reassentamento digno para as famílias removidas, tampouco mecanismos eficazes de participação popular que garantam seu direito à moradia na mesma região.

Assim, perpetua-se um projeto urbano pensado de cima para baixo, onde os moradores da favela permanecem, mais uma vez, em última prioridade nas decisões que moldam seu próprio território.

 As famílias removidas enfrentam o trauma da desocupação e a incerteza do recomeço. Muitas investiram anos em suas casas, adaptando os espaços às necessidades familiares.

Mas ao receberem a notificação de remoção, se deparam com uma escolha impossível: aceitar uma indenização que não cobre, muitas vezes, metade do que foi investido, ou tentar resistir, sem garantia de permanência e sob o risco de,  na próxima cheia, terem seus pertences levados pelas águas.

A lógica da indenização e a expulsão silenciosa

A Prefeitura tem aplicado a Lei nº 17.777/2022 para definir os valores das indenizações. O teto é de R$ 60 mil, incluindo bonificações, valor muito abaixo do necessário para adquirir ou alugar imóvel equivalente. Um dos imóveis avaliados, na Rua Rodolf Lotze, por exemplo, foi avaliado em R$ 14 mil pela metodologia oficial, baseada nas benfeitorias do imóvel, valor que, somado à bonificação prevista em lei, não ultrapassava R$ 44 mil.

Quando avaliado pelo método comparativo direto de dados de mercado, baseado em preços de mercado local e benfeitorias, o mesmo imóvel foi estimado em R$ 73 mil. Há registros de indenizações de apenas R$ 200.

Algumas famílias recebem auxílio-aluguel de R$ 600 mensais, quando o custo médio em favelas da zona sul é a partir de R$ 850. Essas diferenças comprometem qualquer possibilidade de recomposição da moradia em área urbanizada.

A consequência direta é a expulsão silenciosa. Sem recursos suficientes, muitas famílias acabam se mudando para áreas ainda mais precárias, reiniciando o ciclo da informalidade e da vulnerabilidade.

A política urbana não elimina o risco, apenas o desloca geograficamente. Além da perda material e financeira, há o rompimento de laços sociais, da rede de apoio e do cotidiano construído por décadas.

A cada remoção, desfaz-se um tecido comunitário que o Estado insiste em não reconhecer.

Caminhos para a equidade socioambiental e o direito à permanência

O caso de Paraisópolis revela os limites de um modelo de urbanização que, mesmo com justificativas técnicas ou ambientais, não garante dignidade nem continuidade de vida.

Remoções sem escuta, planejamento habitacional ou indenização justa aprofundam desigualdades. Mais do que obras, é preciso reconhecer ética e politicamente as trajetórias de quem vive nas periferias. A favela não pode ser vista como problema a ser removido, mas como espaço legítimo, cujas demandas precisam ser consideradas no planejamento da cidade.

A análise das intervenções no Antonico mostra que, ao ignorar os vínculos sociais e afetivos, as ações públicas reproduzem a vulnerabilidade. Indenizações insuficientes, auxílio precário e ausência de alternativas habitacionais empurram os removidos para a re-periferização, rompendo com o direito à cidade. 

Enfrentar riscos socioambientais exige uma mudança de paradigma. É preciso ir além da gestão técnica e reconhecer as pessoas, suas histórias e demandas.

Urbanizar favelas com dignidade requer equidade territorial, participação efetiva e respeito à função social do território. Só assim será possível construir uma cidade democrática, onde a permanência ocorra com dignidade e a saída, quando necessária, represente recomeço com oportunidade.

*Alane Santos da Silva é pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo São Paulo

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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