No último sábado (9), o governo do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), conseguiu realizar a “Audiência Pública do Plano Diretor de Porto Alegre”, depois de uma consistente liminar da Justiça Federal ter suspendido a Audiência, na véspera do evento, pelo conjunto de irregularidades presentes na revisão do Plano, desde que esse processo se iniciou, em 2019. Apesar da liminar ter sido derrubada em um despacho com parca fundamentação, as evidências de vícios formais e materiais não se dissiparam.
Ao ingressar no Auditório Araújo Vianna, o primeiro impacto foi a escuridão do Auditório, já que o único local iluminado era o palco, onde deveriam brilhar as estrelas do encontro, Prefeito Sebastião Melo, secretário municipal da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) Germano Bremm, e servidores públicos ocupantes de funções gratificadas.
A injusta partilha da luz no local, que deixava na sombra as organizações da sociedade civil, dificultava os encontros e leitura dos cartazes de protesto, tornando-se uma metáfora da própria falta de transparência na condução da revisão do PDDUA, uma vez que a cidadania teve acesso prévio a poucos documentos relacionados ao produto que ali se apresentaria.
Quando começa o evento, fica evidente como transcorreria o sábado: muitas vaias ao Prefeito Sebastião Melo e ao secretário, abafadas pelos aplausos dos vários cargos em comissão escalados para a Audiência, em uma manobra que frustra o caráter popular de uma audiência pública, que deveria servir para a escuta da sociedade civil e da população de Porto Alegre. Ao longo do dia, a geografia do auditório revelava as linhas de embate: ao centro, cargos em comissão e representantes do mercado imobiliário se posicionaram estrategicamente para tentar dominar o espaço. Majoritariamente posicionados à esquerda, movimentos sociais e organizações da sociedade civil, resistindo.
Pela manhã, em vez da aguardada minuta de lei que seguirá para a Câmara, o público assistiu à apresentação de um powerpoint com mapas produzidos pela equipe técnica e dados numéricos sobre a suposta participação popular, destacados como um dos grandes méritos desta revisão. Chocou, ainda, a inadequação do uso de imagens geradas por inteligência artificial: pessoas brancas, louras, em uma cidade ordenada, sem buracos nas calçadas e nas ruas, bem iluminada, sem pessoas em situação de rua dormindo embaixo de marquises no inverno porto alegrense, sem alagamentos e com áreas verdes que mais pareciam o Jardim do Éden, incluindo capivaras e macacos, em meio a uma floresta de araucárias e riachos límpidos que não sabemos onde estão. Na apresentação feita pelo governo Melo, a cidade parecia uma Disneylândia urbana, mas ficou difícil encontrar Porto Alegre, sua gente e suas periferias mal tratadas, em meio a tanta falsificação da realidade.
A parte da tarde foi reservada às intervenções do público, com mais de 130 pessoas inscritas para fazer uso da palavra. Com tempo de fala de dois minutos, centenas de pessoas, de diferentes movimentos sociais, levantaram críticas ao conteúdo apresentado pelo governo, em uma proporção que, com folga, ficou em “três por um”. Grosso modo, 75% de falas rechaçando a proposta apresentada, para 25% de falas favoráveis, estas últimas protagonizadas por representantes do mercado imobiliário, em sua imensa maioria, que, organizados, exibiam no peito um adesivo com a palavra “Sim” e usavam seus dois minutos para enaltecer o plano sem nenhuma sugestão, destoando o próprio sentido de uma audiência pública, concebida para o debate e construção coletiva.
O espetáculo foi deprimente. CCs escalados para vaiar a cidadania abafaram a voz daqueles que dedicaram seu sábado para tentar contribuir com o futuro da cidade. Houve de tudo: homem trans constrangido sendo chamado pelo nome de batismo, idoso cadeirante que representava catadores de material reciclável denunciando a violência do município sendo vaiado; ecologistas hostilizados; contagens regressivas para o fim das intervenções (aos berros) pela claque governista; microfone sendo cortado quando faltava bem pouco para as pessoas terminarem o raciocínio; deboche quando alguém saudava “todos, todas e todes”, diretor de departamento municipal intervindo no tempo dedicado às falas da sociedade civil, e, finalmente, a constatação de um indisfarçável prazer da mesa em assistir a todo esse desrespeito com a cidadania sem intervir. Sequer “questões de ordem”, pedindo à mesa que exigisse respeito do público, foram aceitas, já que o secretário municipal classificou as manifestações indevidas da equipe de governo como “liberdade de expressão” e “debate saudável da democracia”. Como nunca antes, ficou evidenciado o desejo de cumprir tão somente a formalidade da audiência pública, sem nenhuma preocupação com a escuta efetiva da população.
No que diz respeito ao conteúdo apresentado, o que se viu não foi uma proposta de revisão do atual PDDUA, mas a apresentação de um novo Plano Diretor, com outro modelo espacial, propostas de densificação com incremento de coeficientes de aproveitamento e altura das edificações (bem ao gosto da indústria da construção civil) e prioridades que dialogam muito pouco com as necessidades concretas de uma cidade atingida por uma grave enchente em 2024. Sublinha-se que, embora a audiência tenha negligenciado o tema, há milhares de pessoas ainda desatendidas pela política habitacional do município, especialmente no que diz respeito à demanda habitacional prioritária, voltada aos setores de menor renda.
Um ponto grave apontado pelo representante das comunidades quilombolas de Porto Alegre foi a violação da Convenção 169 da OIT, que prevê a necessidade de consultas prévias, livres e informadas aos povos originários e também às populações quilombolas, sobre quaisquer medidas legislativas ou administrativas que possam afetá-los. O representante Onir Araújo denunciou, apoiado pelos quilombolas e indígenas presentes, que tal consulta não ocorreu de forma alguma na elaboração do plano diretor, bem como sublinhou a possibilidade de revisão judicial da lei caso tal formalidade não seja cumprida.
Terminando suas intervenções com a consigna: “Porto Alegre não merece esse plano: RETIRA!”, as centenas de manifestações críticas ao plano diretor encontraram um ponto de convergência que expressava o completo rechaço da sociedade civil porto alegrense ao conteúdo apresentado pelo município nesta inesquecível, bizarra e farsesca Audiência Pública.
O evento terminou às 20h, com o Auditório Araújo Vianna esvaziado, deixando a amarga sensação de que a cumplicidade entre mercado imobiliário e governo municipal não apenas patrola pactos democraticamente construídos no pretérito, mas também ilustra, de forma exemplar, como funciona o “modo autoritário” de governar. A violência a que foram submetidas as pessoas que se dispuseram a participar da Audiência Pública entra para a história da desdemocratização da Política Urbana em Porto Alegre, cidade que já foi referência internacional em participação popular na gestão pública, como preconiza o Estatuto da Cidade. O Observatório das Metrópoles seguirá acompanhando e incidindo nesse processo, comprometido com o ideário da reforma, com a democracia e com o direito à cidade.
*Betânia Alfonsin é jurista e urbanista, pesquisadora do Mestrado em Direito da FMP e do Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles.
**Joana Winckler é mestre e doutoranda em Sociologia na UFRGS. Pesquisadora do Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles.
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.