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Rafael Villas Bôas

Brasília e Palestina: quando o Estado expulsa os ‘indesejados’

Professor da Educação do Campo e dos programas de pós-graduação em Artes Cênicas e Profissional em Artes da UnB.
Eles têm o seu território, há séculos. Não são os invasores. São os que tem chão, tem história na ocupação da terra, e lutam para não desaparecer.

No dia em que Brasília comemorou o aniversário de 65 anos eu assisti ao documentário No Other Land (2024) que ganhou o Oscar de melhor documentário, em 2025. Um filme sobre o conflito entre Israel e Palestina, que mostra a maneira como o Exército e o governo israelense expulsam comunidades de seus territórios, no caso em questão a comunidade de Masafer Yatta, na Cisjordânia, com o pretexto arbitrário da necessidade de construção de um campo de treinamento militar.

Daí começam as associações inevitáveis que fui tecendo, no decorrer do filme, com a história da construção de Brasília: nossa cidade é rodeada intencionalmente por um “cinturão verde” que consiste em um conjunto de áreas ambientais, militares, policiais, que “cercam, isolam e protegem” a capital do arco periférico chamado, no senso comum, de “cidades satélites”. A separação do centro da periferia, por óbvio, tem no conflito do Oriente Médio uma intensidade bélica de outra proporção: um genocídio de crueldade tamanha que até a mídia empresarial ocidental não consegue deixar de reportar, ainda que com a parcialidade costumeira.

O que está em jogo é uma política de avanço de assentamentos de colonos judeus israelenses contra o território de árabes palestinos, sobre o pretexto da proteção preventiva.

Centro de Erradicação de Invasões é a expressão cuja sigla “CEI” deu origem ao nome Ceilândia, uma das mais populosas regiões administrativas do DF, criada com a remoção da classe trabalhadora “sobrante” no centro após a construção e inauguração de Brasília. A modernidade dos traços e do planejamento urbano não poderia conviver com a pobreza do país desigual e racista.

O filme A cidade é uma só? (2011) de Adirley Queiroz conta essa história, entrelaçando documentário e ficção. Os filmes deste cineasta, que não é uma pessoa do centro, mas das margens, narram histórias periféricas, que posicionam, numa dialética raramente vista na gramática cinematográfica, o real e a ficção de modo entrelaçado e orgânico. Como A cidade é uma só? é uma obra referenciada no Programa de Avaliação Seriada (PAS) da Universidade de Brasília, ao menos a juventude conhece o cineasta e parte pequena de seu repertório (o que está disponível no youtube), que é exibido pelos professores de artes das escolas de ensino médio no processo de preparação para o PAS. Mas, como os filmes de Adirley não furam o mercado de distribuição das salas de cinema comerciais, a população brasileira tem seu direito de acesso e fruição do cinema produzido em seu território, sonegado.

O filme No other land retrata uma espécie de moto-contínuo de sufocamento de uma população, enquanto os momentos de respiro diante da violência são aqueles em que os protagonistas, documentaristas e editores, conversam, entre eles, e com os membros das comunidades atacadas, na calada da noite, nos intervalos das demolições, remoções, diligências intimidadoras, ataques para aprisionar lideranças, etc. Os diálogos acontecem nos poucos momentos de calmaria antes da nova tormenta.

Os personagens dos filmes de Adirley são sobreviventes do processo de exploração, existem e resistem, e nas fabulações criadas nas tramas ficcionais e documentais, por vezes, como em Mato Seco em Chamas – dirigido em parceria com Joana Pimenta – pegam em armas para se defender e construir um horizonte de futuro em que caibam dentro, em que sejam construtores.

O título que deram para No other land no Brasil é Sem chão. Estranho. Nenhuma outra terra, a tradução mais literal, me parece muito mais fiel ao que estão vivendo na Palestina: resistem, não querem sair, estão morrendo mas lutam para não serem desterrados, expulsos, não aceitam ir para nenhuma outra terra. Não são “sem chão”.

Eles têm o seu território, há séculos. Não são os invasores. São os que tem chão, tem história na ocupação da terra, e lutam para não desaparecer.

*Rafael Villas Bôas é professor da Educação do Campo da Universidade de Brasília e jornalista.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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