Desde quando Donald Trump assumiu seu segundo mandato temos assistido uma escalada protecionista com anúncios de elevação das taxas sobre importação de produtos provenientes dos mais distintos países. Seu alvo prioritário, no entanto, tem sido a China, revelando não apenas uma disputa por hegemonia econômica e tecnológica, mas também uma batalha por influência política, controle de recursos e, sobretudo, por legitimidade ideológica. O conflito parece transcender tarifas e embargos e revela uma profunda reconfiguração das relações internacionais no século XXI, em que o caráter multilateral da ordem global, a soberania nacional e os modelos econômicos das sociedades estão sendo radicalmente tensionados.
No âmbito econômico e tecnológico, essa “guerra” comercial e tecnológica expõe o esforço dos EUA em conter o avanço chinês, especialmente em setores considerados estratégicos, como os semicondutores, inteligência artificial e as redes de comunicação. As sanções impostas à Huawei e à Semiconductor Manufacturing International Corporation, empresa produtora de chips, ambas chinesas, bem como o bloqueio de equipamentos da holandesa ASML, revelam uma tentativa de restringir o acesso da China às tecnologias mais avançadas, buscando perpetuar a primazia ocidental nesse campo. Ao mesmo tempo, as iniciativas de desacoplamento produtivo e redução de risco – como os pacotes CHIPS Act e European Chips Act – expressam o temor crescente em relação à dependência das cadeias de suprimento controlados por Pequim.
A disputa por influência global acirra-se com a expansão da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), projeto que, sob o discurso do “ganha-ganha”, visa garantir rotas logísticas e acordos comerciais favoráveis à China em países do Sul Global. Em resposta, o G7 tem procurado estabelecer sua própria rede de investimentos, o Parceria para Infraestrutura e Investimentos Globais (PGII).
No plano geopolítico, a questão de Taiwan simboliza o ponto mais crítico do confronto direto entre as duas potências, com os EUA reforçando seu apoio à ilha em meio a ameaças chinesas cada vez mais explícitas. O Mar do Sul da China, por sua vez, se consolida como palco de disputas territoriais e testes de poder, em que operações navais e alianças militares – como o AUKUS e o Quad – anunciam que a região do Indo-Pacífico pode estar se tornando o novo epicentro da segurança global. A militarização dessa região, bem como a instabilidade política promovida por golpes de estado – Myanmar; Tailândia; Paquistão; Fiji, Sri Lanka; Filipinas e Indonésia – revela que os conflitos do presente não são apenas econômicos, mas envolvem profundas disputas geoestratégicas.
A competição por recursos e energia também se insere nesse cenário. A transição energética mundial, marcada pela busca por fontes limpas e sustentáveis, tem na China sua principal protagonista, dada sua liderança na produção de baterias, terras-raras e painéis solares. No campo financeiro, a hegemonia do dólar é desafiada por iniciativas como a expansão do uso do yuan em transações internacionais e o fortalecimento de instituições alternativas, como o Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura (AIIB). As sanções impostas pelo Ocidente à Rússia, principalmente via Sociedade para Telecomunicação Financeira Mundial entre Bancos (SWIFT), aceleraram os esforços da China em criar mecanismos paralelos, como os CIPS, sinalizando uma possível fragmentação do sistema global, rumo a consolidação de uma nova ordem global multipolar.
Ascensão da extrema-direita como sintoma da crise
A ascensão da extrema-direita na Europa e o retorno de Donald Trump à presidência dos EUA não são fenômenos isolados, mas sintomas de uma reconfiguração profunda da ordem global, marcada pela erosão da democracia liberal, o avanço de projetos nacionalistas autoritários e o retorno de um protecionismo agressivo. Frente à crise do capitalismo e à insatisfação popular com os sistemas políticos tradicionais, setores da burguesia e da classe média estão canalizando suas frustrações para forças políticas que combinam discurso anti-imigrante, conservadorismo moral e rejeição ao multilateralismo. Vislumbra-se, por esse modo, a emergência de um capitalismo cuja feição liberal se desintegra frente ao fascismo, sendo moldado pela repressão, pelo aprofundamento das desigualdades e pelo imperialismo.
Na Europa, o avanço de partidos como o Rassemblement National (ex-Frente Nacional) na França, o Alternativa para a Alemanha (AfD), Irmãos da Itália (Fratelli d’Italia), o Partido da Liberdade (PVV) na Holanda, o Vox da Espanha e o Partido da Liberdade da Áustria, dentre outros, tem revelado um padrão comum: nacionalismo xenófobo, autoritarismo político e hostilidade à União Europeia. Esses movimentos instrumentalizam o medo da imigração – especialmente de populações muçulmanas e africanas – como justificativa para políticas de fechamento de fronteiras, cortes seletivos em políticas sociais e ataques à diversidade cultural. Paralelamente, promovem um revisionismo histórico que minimiza os horrores do nazi-fascismo histórico (1923-1945), normalizando discursos de ódio e criminalizando a oposição política. A crescente aceitação dessas pautas evidenciada nos resultados eleitorais desse espectro político na Europa e na América, sinaliza um perigoso esvaziamento não só dos valores democráticos liberais, mas também dos fundamentos humanistas que sustentaram a construção da Europa no pós Segunda Guerra.
Do ponto de vista econômico, a agenda da extrema-direita articula um protecionismo que, embora aparente ruptura com as mais liberalizantes, na prática reforça a dominação do capital. Barreiras comerciais, subsídios seletivos e nacionalismo econômico servem menos para proteger os trabalhadores do que para preservar os lucros de setores empresariais locais frente à concorrência externa. O resultado é um Estado que reforça seu caráter de classe recorrendo de forma mais intensa ao poder coercitivo em nome da propriedade privada e da exploração da força de trabalho. O choque com as regras fiscais da União Europeia, os embates com o Banco Central Europeu e a recusa em aprofundar a integração regional têm indicado os limites do projeto integracionista Europeu, cujo exemplo mais significativo foi o Brexit.
Como vimos, o retorno de Trump à presidência dos EUA tem acrescentado um novo grau de instabilidade à conjuntura. Sua agenda – expressa no slogan “America First” – de guerra comercial contra a China, de deslegitimação de organismos multilaterais, isolamento geopolítico, incentivo a regimes autoritários mundo afora e apoio à lideranças expressivas da extrema-direita, como à Marine Le Pen, pode acelerar a desordem global e aprofundar as crises do capitalismo e da democracia liberal. Internamente, o governo Trump se apoia no ataque à imprensa, manipulação das redes sociais, hostilidade sistêmica a imigrantes e minorias e na instrumentalização das instituições do Estado.
Essa articulação entre extrema-direita europeia e trumpista, com forte repercussão na América Latina, aponta para um novo eixo da política internacional, fundado no antiglobalismo, no ultranacionalismo e no darwinismo social. Tais forças operam como uma reação autoritária à crise do capitalismo – o que não significa que haja uma saída não autoritária do ponto de vista do capitalismo e muito menos que seja possível reformá-lo – buscando restaurar os padrões de acumulação. A questão é que, sob a aparência de “defesa da soberania”, poderá vir a se consolidar um capitalismo que combine repressão política, militarização da sociedade, xenofobia e financeirização da economia.
A crise do capital, necessidade do protecionismo e o avanço da extrema-direita
A política de taxação de importações estaria funcionando como uma resposta protecionista às contradições da economia globalizada. Vivenciamos, de acordo com o filósofo húngaro István Mészáros, uma crise estrutural do capital que tem levado, desde a década de 1970, à compressão das taxas de lucro e ao deslocamento das indústrias dos países centrais para regiões com mão de obra mais barata, mercado de trabalho menos regulamentado e leis ambientais mais brandas. Essa reorganização global das cadeias produtivas garantiu lucros recordes para grandes corporações, mas provocou desemprego, desindustrialização e insegurança social nas principais economias capitalistas. Simultaneamente, a financeirização da economia transformou os mercados em um cassino especulativo, enquanto a produção real e o emprego se concentravam fora do eixo histórico do capitalismo ocidental.
Nesse cenário, o protecionismo reaparece como estratégia de sobrevivência. Contrapondo-se frontalmente ao livre comércio, a taxação de importações parece voltar-se para a recuperação de postos de trabalho, reversão do déficit comercial e preservação da relevância econômica num mundo globalizado. Longe de representar, no entanto, um retorno ao Estado do pós-segunda guerra, cuja política intervencionista foi fundamental para a consolidação do Welfare State nos países centrais do capitalismo, o atual movimento busca redesenhar as cadeias produtivas a seu favor. Sem abandonar, por óbvio, a lógica do capital, esse novo intervencionismo assume um caráter regressivo, reorganizando as estruturas produtivas para sustentar a acumulação sob formas políticas cada vez mais autoritárias.
Pode-se dizer, portanto, que é nesse ponto que a extrema-direita se insere como agente político dessa reconfiguração do papel do Estado. Líderes como Trump, Le Pen, Geert Wilders (parlamentar holandês e líder do PVV) e Giorgia Meloni (Primeira-ministra da Itália desde 2022) foram exitosos em transformar descontentamento popular advindo das próprias contradições do capitalismo contemporâneo em capital político. Usam a retórica do protecionismo para legitimar projetos nacionalistas, excludentes e, principalmente, autoritários. A promessa de “defesa dos empregos nacionais” mascara a culpabilização de imigrantes, o ataque à diversidade cultural e a demonização de adversários políticos e instituições democráticas. A taxação de importações, nesse contexto, torna-se um símbolo ideológico: não é apenas uma medida econômica, mas uma bandeira da guerra cultural e política. O apoio declarado de inúmeros parlamentares brasileiros alinhados ao bolsonarismo à taxação imposta por Trump ao Brasil foi sintomático dessa situação.
Pode-se dizer, portanto, que estas medidas protecionistas possuem um duplo caráter reacionário. No plano econômico, tendem a intensificar as guerras comerciais já em curso, a inflação (devido a elevação dos preços de produtos importados) e a instabilidade econômica, política e social. No plano político, servem como porta de entrada para a radicalização da extrema-direita. Quando as tarifas não geram os empregos prometidos – como já se viu no setor do aço nos EUA -, a frustração é canalizada para políticas autoritárias: criminalização de imigrantes, controle da imprensa, ataques ao judiciário, perseguição de opositores, repressão aos movimentos sociais, etc. O resultado é o aprofundamento do autoritarismo.
As reflexões anteriores nos conduzem a uma indagação crucial: estaria o mundo ocidental se aproximando de uma reconfiguração autoritária do capitalismo que, embora distinta do nazi-fascismo histórico – como a mobilização das massas ou o partido único totalitário -, compartilha com ele a centralidade do Estado como instrumento de repressão política e direção econômica? Até o presente momento podemos afirmar que estamos frente a um autoritarismo de novo tipo, que, quando na estrutura de Estado, opera não pela ruptura aberta com a democracia formal, mas por meio da sua corrosão gradual: ataques às instituições democráticas, principalmente ao judiciário, nacionalismo excludente, neoliberalismo seletivo e uso do aparato estatal para conter e reprimir a dissidência social. Por outro lado, quando fora da direção direta do Estado, age por todos os meios disponíveis para promover a instabilidade política – como a tomada do Capitólio nos EUA, em 2021, ou o ataque terrorista à Praça dos Três Poderes no Brasil, em 2023.
O caso do governo de Viktor Orbán, na Hungria, é ilustrativo dessa tendência. Sob o discurso da soberania nacional e da proteção econômica, consolida-se um regime que articula neoliberalismo seletivo, censura, perseguição a minorias e destruição progressiva das instituições democráticas. Nesse contexto, o projeto da extrema-direita se revela não apenas antiglobalista, mas essencialmente antidemocrático, operando como um mecanismo de recomposição autoritária da hegemonia burguesa em tempos de crise estrutural por meio de formas de dominação que articulam a legalidade com a exceção, o consentimento manipulado com a coerção direta.
Apontamentos sobre a reconfiguração do Estado no contexto de crise do capital e de ascensão da extrema-direita
- O Estado, mesmo quando se apresenta como “intervencionista” ou “antiglobalista”, pode estar reorganizando a dominação burguesa;
- O autoritarismo moderno estaria se sustentando tanto na coerção quanto no consenso fabricado, o que reforça o papel do Estado como aparato de hegemonia;
- O apelo à “ordem” e à “nação” é uma tática discursiva com o intuito de encobrir os verdadeiros interesses de classe que o Estado preserva;
- Em tempos de crise profunda, o capitalismo abandona o equilíbrio entre hegemonia e coerção, inclinando-se à força direta e à legitimação reacionária.