No dia 8 de julho, a governadora em exercício do Distrito Federal (DF), Celina Leão, assinou o Decreto 47.423, que “institui o Programa Acolhe DF, destinado à busca ativa para acolhimento e reinserção social da pessoa com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas em situação de vulnerabilidade”.
Essa medida, na verdade, intensifica os processos de higienismo social e de manicomialização no DF. Para isso, precisamos ler nas entrelinhas, captando o que não está dito e o que está sendo mistificado, indo além das aparências do governo Ibaneis-Celina, que supostamente se diz preocupado com as pessoas com problemas associados ao consumo problemático de drogas no DF e em situação de vulnerabilidade.
Primeiramente, é necessário se indignar com o fato de tal programa ser colocado pelo governo Ibaneis-Celina de forma autoritária, por meio de um decreto que não se pautou, em nenhum momento, por uma construção participativa, democrática. Esse processo de cima para baixo, impositivo, não dialógico, já demonstra um problema de forma, isto é, na forma como o programa é pensado e posto para ser efetivado.
Mas o problema não se restringe à forma, sendo também de conteúdo.
Populismo manicomial
O que se busca institucionalizar concretamente é a captura, por vezes chamadas de “resgate”, da população em situação de rua e a sua consequente internação em instituições privadas e asilares-manicomiais, como as chamadas “Comunidades Terapêuticas” (CTs).
Por meio de um populismo manicomial, o governo Ibaneis-Celina busca fomentar a já abrangente e lucrativa indústria da loucura ou complexo industrial-manicomial, agora por meio de álcool e outras drogas e das CTs.
E o decreto vai além. Prestemos bastante atenção no parágrafo 4, do artigo 8: “A Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal deve comunicar à Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania do Distrito Federal, os casos confirmados ou suspeitos de pessoa com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas em situação de vulnerabilidade, para oferta de vagas nas comunidades terapêuticas conveniadas”.
Aqui então temos o cerne do Programa Acolhe DF: recolher pessoas e interná-las nas CTs, repassando ainda mais verbas públicas a tais instituições, que, no caso do DF, se dá justamente pela Secretaria de Justiça e Cidadania.
No entanto, questionamos: se é responsabilidade da Secretaria de Saúde e da Secretaria de Desenvolvimento Social a avaliação das pessoas, por que elas não são acolhidas – realmente – por serviços das próprias secretarias, isto é, que estão no SUS e no SUAS? Assim, a referida proposta é uma afronta ao SUS, à Reforma Psiquiátrica e ao SUAS. Para piorar, é um acinte a trabalhadores(as) da saúde e da assistência social do DF, que serão obrigados a chancelar processos de manicomialização de pessoas nas CTs.
Desmonte, higienismo e violência
Dessa forma, para além do que o GDF tenta ocultar e mistificar com sua retórica de suposto acolhimento, de suposto respeito à dignidade humana e de suposto tratamento ou assistência, o que temos, concretamente, é a intensificação de um projeto de higienismo social, de manicomialização e de desmonte da Reforma Psiquiátrica, da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e do SUS no DF, com o consequente aumento da transferência do fundo público às CTs vinculado ao dito acolhimento de tais pessoas nestas instituições.
Sabendo que o grosso de tais pessoas supostamente acolhidas e supostamente tratadas são pessoas em situação de rua e negras, temos o governo Ibaneis-Celina, mais uma vez, colocando em voga iniciativas segregatórias e violentas que reproduzem o racismo e a desigualdade social de nossa sociedade – e não o contrário.
Dizemos isto inclusive chancelados pela literatura acadêmica e por variados órgãos e entidades estatais brasileiros que apontam que as CTs têm sido uma mistura de manicômios, prisões, igrejas (com violência religiosa) e senzalas. Em suma, são instituições da violência. Para quem tiver interesse, sugerimos o Observatório de Violência das CTs e o recente relatório As comunidades terapêuticas em evidência: o que dizem as avaliações e fiscalizações do estado brasileiro?, produzido pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, em parceria com o grupo Psicologia e Ladinidades, da Universidade de Brasília.
Ora, se o intuito do GDF é acolher e assistir pessoas com problemas relacionados ao consumo problemático ou abusivo de drogas, por que não implantar mais Unidades de Acolhimento (UA), por exemplo, que são os serviços públicos e não manicomiais do SUS e da RAPS, voltados justamente para tais pessoas?
Atualmente no DF, temos apenas uma UA para adultos, que fica em Samambaia, com capacidade para assistir até 15 pessoas. É inaceitável que, ao mesmo tempo que temos somente uma UA no DF, toda a verba milionária do Fundo Antidrogas do Distrito Federal (Funpad) tem sido há décadas repassada integralmente para dezenas de CTs.
Pior cobertura do país
Alia-se a isto o cenário que vem sendo repetido há anos: que o DF tem uma das piores, no caso, a segunda pior cobertura de todo o Brasil em termos de CAPS, incluindo os CAPSad, que são para pessoas com problemas associados ao consumo problemático de drogas. Uma vez mais, perguntamos: se o problema a se argumentar é uma suposta insuficiência de orçamento, por que não utilizar do Funpad para ampliar e/ou fortalecer os CAPSad no DF, ao invés de repassar dinheiro para as CTs?
No SUAS, o cenário não é muito diferente. Por exemplo, são apenas dois Centros POP em todo o DF para acolher e assistir a população em situação de rua. Ora, ao invés de financiar ainda mais CTs, que não são instituições do SUAS (e nem do SUS), por que não implantar e fortalecer os serviços das políticas de assistência social, sobretudo aqueles, como os Centros POP, voltados à população abarcada pelo Programa Acolhe DF?
Aliás, lembremos que, recentemente, o mesmo GDF anunciou um contingenciamento de R$1 bilhão, sendo que R$ 415 milhões eram “apenas” da saúde. Logo, está evidente que o problema do DF, da saúde mental, álcool e outras drogas, da população em situação de rua, não é restrição orçamentária, não é falta de dinheiro.
O que há é um projeto em curso de desmonte do SUS, do SUAS e demais políticas públicas, em face do fomento ao terceiro setor, da privatização das políticas de saúde e demais políticas sociais. No caso da saúde mental, álcool e outras drogas, este projeto assume também contornos de higienismo social e de manicomialização, como argumentamos, ambos com nítido viés de classe e racistas, com o Programa Acolhe DF sendo um passo a mais nessa direção.
Sugerimos que o Governo do Distrito Federal seja mais condizente com o teor e com o intuito da sua proposta, e, ao invés de nomear o Programa de Acolhe DF, o nomeie de Recolhe DF.
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*Pedro Costa é membro do Grupo Saúde Mental de Militância do Distrito Federal UnB.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.