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Sérgio Amadeu

Você acredita na neutralidade das big techs?

Sérgio Amadeu é sociólogo, professor da UFABC e pesquisador do CNPq, com ampla atuação em defesa da democratização da comunicação e da soberania te...
Antes da expansão das redes digitais, não existiam empresas com poder de acessar mais de dois terços da população

Tecnologias geram dependências. Veja o que acontece se sairmos atrasados de casa e, já na rua, percebermos que deixamos o celular na mesa da cozinha. A maioria absoluta das pessoas, numa situação semelhante, voltará para pegá-lo. Isso porque organizamos nossa vida em torno daquele aparelho: pagamos contas, recebemos informações, consultamos serviços, usamos aplicativos para interagir com amigos e até com as empresas em que trabalhamos. Ficar um dia sem celular é muito difícil. Muitos sentirão um vazio; outros terão problemas reais devido à incomunicabilidade. Enfim, a maioria das pessoas em nossa sociedade anda com uma máquina de processamento de dados conectada a outras pela internet.

Não quero aqui discutir se isso é bom ou ruim, mas apenas constatar que as tecnologias da informação dominaram a comunicação planetária. No entanto, essas tecnologias não surgiram da natureza, não brotaram do chão. Foram criadas em contextos específicos e possuem finalidades e objetivos — muitos dos quais foram subvertidos em seu uso. O próprio telefone celular não foi criado, inicialmente, para ser mais do que um aparelho móvel que reproduzisse as funções do telefone fixo. Entretanto, as corporações foram agregando novas funcionalidades, e as pessoas passaram a utilizá-lo de modos não previstos. Hoje, o celular é praticamente um computador de mão.

Com as pessoas conectadas ou acessíveis boa parte do tempo, as plataformas de relacionamento digital se tornaram gigantes da comunicação. Antes da expansão das redes digitais, não existia nenhuma empresa com o poder de acessar, a qualquer hora, mais de dois terços da população mundial, como fazem as plataformas de relacionamento, os mecanismos de busca e os aplicativos de mensagens instantâneas. Hoje, elas existem e são controladas pelas big techs, principalmente os grupos Alphabet (Google), Meta (Facebook), Apple, Amazon e Microsoft.

Como propõe a pesquisadora Jose van Dijck, essas corporações controlam as redes sociais online quase como espaços públicos, onde as opiniões das pessoas são cada vez mais moldadas. Todavia, esses espaços seguem valores privados, gerenciados por algoritmos invisíveis que concentram verbas de publicidade e marketing dada sua capacidade de identificar interesses, vontades, gostos e necessidades de cada usuário. Shoshana Zuboff chamou esse sistema econômico de capitalismo de vigilância, pois as big techs coletam dados incessantemente para traçar perfis e modular nosso comportamento.

Grande parte das interações humanas no mundo — e no Brasil — ocorre com a mediação dessas plataformas, as chamadas redes sociais, administradas por algoritmos opacos, sem transparência ou auditoria por instituições democráticas. O poder dessas plataformas é tão grande que, ao reduzir a visibilidade de conteúdos de certos grupos políticos, podem desequilibrar completamente a formação de opinião.

Além disso, é evidente que essas plataformas beneficiam quem paga para impulsionar conteúdos, privilegiando quem tem mais poder econômico — o que, por sua vez, aumenta sua monetização. Por exemplo, o site Brasil Paralelo tem ampla disseminação nas redes da Meta por ser um de seus maiores anunciantes. Chegamos, assim, a um ponto: a comunicação está sendo dominada pelo dinheiro. Eventualmente, alguém pode viralizar uma postagem, mas quem paga terá sempre seu conteúdo amplamente distribuído pelos algoritmos.

Surge, então, uma pergunta crucial: essas plataformas e seus algoritmos invisíveis, submetidos aos interesses de seus donos, serão neutras em países com governos que discordam de Trump e Elon Musk? Tudo indica que não. Até Zuckerberg, que antes se apresentava como contrário à desinformação, alinhou-se a Musk, aliado de Trump e da extrema-direita norte-americana.

Minha hipótese é que as plataformas das big techs tornaram-se infraestruturas geopolíticas da extrema direita. Elas beneficiarão forças aliadas em disputas pela opinião pública, como no Brasil. Já o fizeram nas batalhas contra a regulação e continuam a fazê-lo, manipulando a visibilidade de postagens e mobilizando milhares de criadores de conteúdo dependentes de suas remunerações. Não nos iludamos: a maioria desses produtores obedecerá às corporações, pois delas dependem financeiramente.

Quem acredita que o X (ex-Twitter) de Elon Musk tratará com igualdade a esquerda e a extrema direita? Os algoritmos do Instagram não favorecerão a desinformação dos neofascistas no Brasil? A IA do WhatsApp não reforçará mentiras em suas mensagens? Antes da pandemia, em uma reunião, argumentei com um representante do WhatsApp que o WhatsApp Business deveria ser bloqueado para uso eleitoral. Ele alegou que não era possível fazer disparos em massa — o que era (e é) falso. Dissimulação, desorientação e opacidade são técnicas usuais dessas empresas. Mudarão seu comportamento em 2026, ano das eleições no Brasil? Adotarão decisões democráticas em vez de arbitrárias? Você acredita nisso?

Eu tenho dúvidas. O que não entendo é: se o governo atual diz combater a desinformação, por que expande o espaço das big techs? Por que usa o WhatsApp para programas como o Bolsa Família? Por que reforçar uma plataforma que é um dos principais vetores de desinformação? Ah, já sei a resposta: “Porque todo mundo usa”. O núcleo burocrático do Estado pode argumentar que tecnologia é apenas um meio, nunca um fim, mas esse raciocínio é falho. Um meio nunca é irrelevante. Alguns meios desvirtuam certos fins. Para um Estado, a tecnologia também é um fim: pode gerar desenvolvimento ou dependência, ampliar serviços ou restringi-los, fortalecer a democracia ou miná-la. Essa visão neoliberal da tecnologia como mero instrumento precisa ser superada.

As Forças Armadas brasileiras usam antenas da empresa de Elon Musk para conectar unidades na Amazônia. É notório que poucos países têm interesse e capacidade de ameaçar nossa integridade territorial — e os EUA estão no topo dessa lista. Talvez os militares brasileiros desconheçam a lei norte-americana Communications Assistance for Law Enforcement Act, que permite que suas comunicações sejam monitoradas por agências dos EUA. Mas isso parece irrelevante: a doutrina militar ensinada no Brasil ainda é de submissão aos interesses norte-americanos. E, lamentavelmente, há proximidade ideológica com Musk, um ator perigoso da extrema direita que já interferiu no Judiciário brasileiro e atacou o governo. Para as atuais Forças Armadas, “o que é bom para os EUA é bom para o Brasil”.

Voltando à comunicação do governo: dada sua capacidade de prestar serviços e sua importância para o país, não seria melhor incentivar outras plataformas de mensagens instantâneas? Não seria crucial reduzir o poder das big techs na mediação das relações sociais no Brasil? 

*Sergio Amadeu da Silveira, professor da UFABC e pesquisador CNPq

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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