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Recife em disputa: desafios e oportunidades na nova lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo

“A relevância da LPUOS está ligada ao desenho da cidade e à forma como ela será construída”, explica Yara Baiardi

A cidade é uma das maiores invenções do homem.
A cidade é água.
A cidade é natureza.
A cidade é encontro.
A cidade é habitat.
A cidade é passagem.
A cidade é permanência.
A cidade é desencontro.
A cidade é um espaço de intenso conflito.

A cidade é troca.
A cidade é herança.
A cidade é digital.
A cidade é saúde.
A cidade é comida.
A cidade é construção.
A cidade é dominação.
A cidade é riqueza e pobreza. Tudo junto e misturado.

A cidade é presídio.
A cidade é hospício.
A cidade é parque.
A cidade é Polis.
A cidade é Civita.
A cidade é política.
A cidade é desejo.
A cidade é poder.
A cidade é um espaço de disputa.
A cidade é de todos.
A cidade é conjunto e coletivo.

Neste instante, o Recife vive um intenso debate por mudanças em cada centímetro quadrado de seu território. No dia 8 de fevereiro, foi realizada uma audiência pública no belíssimo Teatro do Parque, onde foi apresentada a proposta da nova Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS). Antes disso, diversas oficinas foram promovidas com entidades de classe. A equipe formada pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedul) e pelo Instituto da Cidade Pelópidas Silveira (ICPS) está à frente do diálogo com a sociedade sobre o projeto.

A nova LPUOS condensa duas legislações da década de 1990: a Lei de Uso e Ocupação do Solo (nº 16.176/1996) e a Lei de Parcelamento do Solo (nº 16.286/1997). Seu objetivo é estabelecer normas, parâmetros, requisitos e condições para o parcelamento, uso e ocupação do solo no município do Recife, em consonância com a lei que instituiu o Plano Diretor do Recife (PDR, a lei complementar nº 2/2021).

Em outras palavras, a proposta busca definir de que forma a cidade deve ser construída — especialmente nas áreas privadas — e também promover uma melhor relação entre os imóveis e o espaço público, por meio de parâmetros que qualifiquem a interface com a rua.

Idealmente, o debate sobre a LPUOS com a sociedade deveria ter ocorrido imediatamente após a aprovação do nosso plano diretor. Se há cinco anos estivéssemos discutindo o plano diretor com a LPUOS uma pergunta provocativa já estaria na mesa: que cidade queremos?

Na época, uma parte da população clamava: “a cidade não está à venda”. Outra parte simplesmente não se interessava pelo tema. E havia ainda quem quisesse, de fato, colocar a cidade à venda — desejo que se materializou, por exemplo, na imposição de um coeficiente de aproveitamento 5, muito acima do que constava na minuta inicial do Plano Diretor do Recife. Ou seja, aqueles prédios super altos e desproporcionais com o entorno se mantêm na paisagem de grande parte do Recife. A crise estética se mantem mesmo com muito dinheiro envolvido.

Refletindo sobre o processo de elaboração do PDR, é difícil não concluir que pouco adiantaram os excelentes estudos realizados pela consultoria contratada à época, bem como o intenso trabalho do ICPS ao longo de toda a construção do plano, até sua entrada na Câmara dos Vereadores.

A minuta original do PDR sofreu mutações profundas — afinal, estávamos em plena pandemia de 2020 — e de lá saiu outro plano, bem diferente daquele que havia sido amplamente discutido em praça pública. Diante disso, cabe perguntar: de que valeu todo o debate com a sociedade antes da aprovação do PDR? Para ficar com migalhas do debate?

Verdade seja dita, os vereadores de hoje não são os mesmos de ontem. Poderíamos, sim, debater os 183 artigos da minuta da lei e seus 15 anexos. Concordo que isso pode ser árduo e, para muitos, até entediante. Mas a relevância da LPUOS está diretamente ligada ao desenho da cidade e à forma como ela será construída. Essa é, inclusive, a tônica das primeiras linhas desta coluna, para deixar a vida (e a leitura) pelo menos mais leves.

Às vezes, é necessário reafirmar o óbvio. O céu não é o limite. E muros não resolverão o problema social que se aprofunda no Brasil. Ao contrário: certas estratégias antigas, mas ainda aplicadas no nosso território, continuam produzindo mazelas, como afastar pessoas de seus centros históricos e das ruas que lhes pertencem.

Cidade tem limites de expansão e de densidades que precisam ser respeitados, ainda mais num contexto de mudança climática. A cidade é condicionada pela infraestrutura instalada, principalmente de saneamento básico (que inclui resíduos sólidos), mobilidade e meio ambiente.

É nesse contexto que se deveria pensar os parâmetros que trazem a nova lei. Cidade que, aliás, perdeu quase 50 mil habitantes segundo dados recentes do IBGE, com uma mobilidade cada dia pior e saneamento básico discutível.

Deixo aqui singelas opiniões.

No campo da mobilidade, penso que parâmetros e afins não deveria estar mais na LPUOS, mas incorporados ao Plano de Mobilidade Urbana (Lei n°18.887/2021), aprovado na mesma época do PDR. O arcabouço jurídico avançou e precisamos “inovar” alinhados com as novas e velhas dinâmicas da cidade.

A minuta atual consolida conceitos interessantíssimos, como da fruição pública, térreo visitável, permeabilidade visual do lote, incentivos à fachada verde ativa, ao retrofit na área central, à construção de novas habitações de interesse social, do Plano de Quadra e muito mais. Bravo, bravíssimo!

Pois bem, voltamos à realidade crua da cidade em disputa. Queria saber com todas as letras a opinião dos ilustres vereadores da nossa cidade. É com eles que deveríamos ir à praça pública debater. Do que os senhores discordam e por quê? O que nossos vereadores sabem sobre o assunto? O que eles pensam sobre as cidades? São eles que decidirão a qualidade da forma e as relações entre os cheios e vazios da nossa cidade.

Não haverá consenso na futura lei, isso é fato – e tudo bem. O dissenso faz parte do processo democrático. Mas cada decisão tomada em cada artigo da minuta impactará diretamente na qualidade de vida de todos nós.

Não podemos mais nos dar ao luxo de pensar no lote isolado — seja ele mínimo ou a catástrofe que representa o lote máximo de 6,25 hectares, que persiste como um câncer na nova lei. Aliás, fica aqui a sugestão: é urgente reduzir esse “lotão”, que mais se assemelha a um presídio do que a uma quadra com espírito urbano. De maneira prática: corte-o pela metade. Para quem quiser conferir, trata-se do artigo 41 da minuta.

Por fim, é oportuno chamar atenção para duas questões relacionadas ao tempo.

A primeira: foram 29 anos entre a última LUOS e essa nova proposta. Tempo demais, considerando tantas mudanças no mundo. São vícios urbanos profundamente arraigados — mudá-los, ainda que minimamente, será um desafio gigantesco. Todavia, expectativas foram criadas. A segunda: o intervalo de cinco anos entre a aprovação do PDR e a proposta da LPUOS. Está cada vez mais difícil conectar “a cidade que queremos” com a cidade real.

A questão é política. Fico na expectativa para que as ricas contribuições da sociedade em praça pública à minuta da LPUOS não sejam contaminadas pelo mesmo vírus que atacou o processo do PDR na Câmara em 2020. O espírito público deve prevalecer, afinal a cidade é sua também.

Por isso, meu caro leitor, é urgente que você ative o seu lado cidadão e cutuque seu vereador ou vereadora.

Fica aqui um caminho. No dia 17 de abril, foi publicado no Diário Oficial o aviso de prorrogação de prazo para contribuições à minuta do LPUOS até o dia 30 de abril. O conteúdo da minuta continua disponível para consulta pública na página do Conselho da Cidade do Recife (clique aqui), assim como o formulário de contribuições (clique aqui), que aceita respostas até 30 de abril.

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