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‘A história não morre’, diz militante contra a ditadura militar homenageada por feira literária em SP

Com o tema Resistência e Memória, SP recebe, até o dia 27 de setembro, a 11ª edição da Feira Literária da Zona Sul

Com o tema Memória e resistência – “A luta não é para hoje é para sempre”, a capital paulista recebe, até o dia 27 de setembro, a 11ª edição da Feira Literária da Zona Sul (Felizs). A programação é gratuita e acontece em escolas, bibliotecas, centros culturais e outros espaços públicos de São Paulo. Com destaque para a literatura, a atividade reúne a produção de artistas e escritores periféricos. 

Neste ano, a feira escolheu como homenageada Ana Dias, militante histórica, de 82 anos, que foi protagonista no enfrentamento à ditadura militar no estado. A ativista era casada com Santo Dias da Silva, operário que foi assassinado pelo regime em 30 de outubro de 1979 enquanto distribuía panfletos convocando trabalhadores para uma greve. 

Desde a morte de seu companheiro, Dias constrói, cotidianamente, uma trajetória de transformação do luto em luta. Foi uma das fundadoras do Clube das Mães, maior movimento feminino contra a ditadura, atuou nas comunidades eclesiais de base e no movimento contra a carestia. 

“É a teimosia, a força, a coragem e a decisão do nosso trabalho que fazem a diferença. E, neste momento, não é diferente. Tem aqueles que querem atrapalhar, mas tem muita gente para conquistar e estamos conquistando. Se hoje eu estou aqui falando não é de graça, é para manter essa história viva e permanente nos nossos dias”, enfatiza, em entrevista ao Conversa Bem Viver.

Para ela, a realização da feira também é um marco de intercâmbio entre diferentes gerações que se encontram na mobilização em defesa de direitos e de um projeto digno de vida para o Brasil.

“Eu fico muito feliz de conseguir ainda manter a cabeça boa e falar um pouco de toda minha trajetória. Felizs é um nome muito bom. Eu acredito muito nesses momentos, porque a história não morre. A história tem que estar sempre acesa na cabeça do povo, de toda a comunidade antiga e nova”, comemora. 

Para conhecer a programação completa da 10ª edição do Felizs, clique neste link

Confira a entrevista:

Brasil de Fato – Como foi a recepção do convite para ser a homenageada da 11ª edição da feira?

Ana Dias – Eu fico muito feliz de conseguir ainda estar mantendo, com 82 anos, a cabeça boa e estar conseguindo falar um pouco de toda a minha trajetória.

Felizs é um nome muito bom que vocês conseguiram e vão fazer muita coisa boa. Eu acredito muito nesses momentos, porque a história não morre. A história tem que estar sempre acesa na cabeça do povo, de toda a comunidade antiga e nova, e daqueles que vão ouvir. Eu fico muito feliz e queria agradecer essa oportunidade.

A senhora já não mora há algum tempo em São Paulo. Como foi essa transição?

Eu estou em São Pedro, que é uma cidadezinha pacata, pequena e mais calma, porque em São Paulo a vida é muito louca. A gente também chega em um momento em que tem que dar uma pausa. 

A gente não está fora de toda a realidade, nem de todas as lutas. Mas hoje estou mais contando um pouco do que vivi e lembrando do nosso compromisso. Como eu sempre digo, a luta não é um dia nem um ano, é a vida toda. Não é porque eu tenho essa idade que vou parar.

Então, eu só agradeço e o que eu posso colaborar, é simplesmente contar um pouco de toda a minha trajetória em todas essas lutas, em todos esses compromissos, desde a mulher, desde o Clube de Mães, desde as comunidades, desde a luta de rua, tudo. 

Você poderia recuperar o que aconteceu no dia 30 de outubro de 1979, quando Santo Dias da Silva, seu marido, foi morto pela polícia? Como isso mexeu com a senhora e te motivou a seguir lutando?

Uma coisa sobre a qual eu me sinto muito honrada é de saber que teve um companheiro negro do povo que veio lá da roça, expulso, foi caçado, foi perseguido e que chegou até onde ele chegou.

Ele não morreu de graça. Ele morreu porque estava comprometido em derrubar a ditadura militar, para conseguir ajudar os companheiros de fábrica. Felizmente, ele teve todo um processo em que ele ajudou muito no sindicato, nas fábricas, na periferia, na organização de homens e de mulheres. Naquela época, a gente não lutava só pelo homem ou só pela mulher, lutava mais para derrubar a ditadura.

Mas quem se envolvia, era perseguido e morto. Por isso mataram ele. Eu também estava junto, não na hora, mas estava junto na greve, estava junto em todo momento. Toda a participação dele, minha e dos meus filhos não era uma coisa separada.

Nas periferia, com as mulheres, com as crianças, na escola, na comunidade, nos grupos organizados, sempre fizemos parte de uma coisa só. Acho que o que mais ajudou foi a gente acreditar e estar junto.

Não imaginávamos o perder. Uma pessoa com 37 anos é ainda muito jovem para morrer brutalmente por uma luta de direito e de dever, uma luta pelos trabalhadores, pelo povo brasileiro.

O que me motivou é que a morte dele não podia acabar ali com o sangue dele no chão. Mas precisava seguir com a luta que até hoje, 46 anos depois, agora, em todos os 30 de outubro, a gente vai lá no mesmo horário, no mesmo dia, no mesmo local para testemunhar a morte de Santo Dias.

Eu acho que tudo isso mantém viva essa luta e deixa revoltados muitos que querem que essa memória se apague. 

Como foi o processo para garantir o direito de enterrar o corpo?

A partir do momento que eu fiquei sabendo que ele tinha sido ferido à bala, eu fui diretamente ao pronto-socorro de Santo Amaro [na zona sul de São Paulo]. Primeiro, passei na Igreja do Socorro, aqui na periferia, bem pertinho de onde estava acontecendo a greve.

Depois, fui para o pronto-socorro de Santo Amaro e eles trancaram ele em um espaço no fundo, sem deixar que tivéssemos contato. Aquele tempo era totalmente outro: não tinha computador, não tinha celular, não tinha telefone, não tinha carro. 

Então, as pessoas chegaram até a minha casa e um trabalhador falou o que tinha acontecido. Quando cheguei no pronto-socorro, disseram que não tinha essa pessoa lá. Tinham vários militares à paisana.  Me agrediram tanto. Naquele momento, eu iria embora, mas eu tive que bater de frente e enfrentar para conseguir chegar até onde o Santo estava. 

Quando eu cheguei lá, o Santo tinha dado entrada como indigente. Ele não tinha roupa, não tinha sapato, não tinha chave, não tinha relógio, não tinha documento. Ele era indigente. Me disseram que não podia me liberar, porque ele era indigente. 

Como que eu provava que aquele indigente era meu marido? Aí, puseram ele no camburão. Era um momento de muita tensão, de nervoso, de chuva. 

Liberaram um camburão, com uma caixa de ferro para pôr a pessoa morta, que era o Santo. Um militar veio por trás, em uma pilastra. Eles deixaram o carro aberto e eu entrei dentro do carro da polícia na frente.

Eles disseram “desce”, e eu respondi “não descobri”. Comecei a gritar que eles iam sumir com o corpo, porque o militar dizia “some com isso daqui agora”. Isso era o corpo do Santo. “Joga aonde vocês puderam, o mais rápido possível”, eles diziam.

Eu fiquei ali gritando e, de repente, já tinha muita gente. Todo mundo seguia o camburão. Nós chegamos com a sirene ligada e eu fui quase caindo dentro do carro da polícia até chegar no Instituto Médico Legal (IML). Chegando lá, já tinha muita gente e eles não conseguiram jogar o corpo fora. 

Levaram o corpo para uma parte e a multidão lá fora. Me trancaram dentro de um quarto e falaram: “Enquanto a senhora não arrumar a pessoa, a gente não libera ele”. Como que podia me trancar? Eu fiquei literalmente trancada dentro de um espaço. Mas, nessa confusão, chegou Dom Paulo Evaristo Arns e perguntou: “Onde está a viúva”?

Até aquele momento, eles me xingaram, me maltrataram, a mim e ao Santo, como se nós fossemos os piores bandidos. Quando Dom Paulo chegou, eles falaram: “Senhora, quer uma água, um refrigerante?”. 

Como Dom Paulo chegou, eles mudaram o tratamento e eu falei: “Eu não quero nada. Vocês mataram um operário, um pai de família”. Começou a chegar gente e Dom Paulo falou: “Olha, não pode ser velado na tua casa, porque na tua casa não cabe. E não pode ser na catedral, porque as catedrais têm aquelas pilastras, e uma bomba vai ser colocada ali com certeza. Tem que ir para uma igreja menor, que é a da Consolação”.

No outro dia, levaram até a Consolação, no centro da cidade, e foi uma manifestação muito maior. Tinha crente, católico, padre, metalúrgico, de esquerda, de grupo, tinha gente de tudo o que você pensar. Foi uma coisa que até hoje eu nunca vi de novo, um enterro com tanto movimento.

O caixão era muito fraco, quase quebrou, tivemos que entrar pela sacristia. Foram horas de sofrimento, de luta, de sacrifício e de muita gente conosco. Muitos escreveram palavras de ordem embaixo da Consolação. É uma teimosia de meio século, porque quando entramos na luta, estávamos com 20 anos. Hoje eu tenho 82.

A senhora chegou a ir a Roma e foi recebida pelo Papa por conta dessa história?

Quando aconteceu o fato, eles queriam que eu abandonasse tudo, porque o objetivo deles era provocar o medo, que a coisa terminasse, como se, ao enterrar o Santo, estivesse tudo enterrado. 

Meu pai mora a 450 km de São Paulo e eles foram lá, disseram para o meu pai e para os meus irmãos: “Os próximos a serem assassinados serão ela e as duas crianças. Se ela sair na rua, pode levar uma bala a qualquer instante”. Queriam apavorar muito mais a minha família. Eu não podia sair na rua, não podia conversar, porque tudo que eu fizesse podia correr o risco de ser morta.

Eles disseram que não iam matar a mim e a meus dois filhos. Então, Dom Paulo, com todo o compromisso que ele tinha para derrubar a ditadura e com as comunidades, falou: “Você tem que ir para Roma”.

O Papa veio aqui em 1980 e eu falei com ele. Quase dois meses depois eu fui para Roma, porque quanto mais contato eu fizesse lá fora mais voz eu teria. Fui falar na rádio do Vaticano, porque aqui não podia. Era tudo proibido. 

Foi essa a maneira de me manter viva, porque, de todo jeito, eu tinha que ser exterminada. Era um decreto que não era para eu viver. A maior raiva deles foi eu continuar falando e denunciando. Isso era uma coisa que eles não aceitavam. Então, eu acho que eu fui teimosa, mas também corajosa, pelos meus filhos, pela luta e pelo Santo. Eu não ia deixar ele morrer e acabar assim.

A senhora sente que esse legado de luta segue vivo?

Eu acho que todo momento é uma luta. A luta é difícil e eles vão complicando mais. Hoje vivemos num momento de mentira. Do nosso lado de organização, tem muita verdade, muita luta e muita muito valor, mas tem também aqueles que não acreditam, tem aqueles que estão junto da gente e atrapalham. A gente também viveu isso lá atrás, dentro da igreja, no sindicato, nas comunidades.

É a teimosia, a força, a coragem e a decisão do nosso trabalho que fazem a diferença. E, neste momento, não é diferente. Tem aqueles que querem atrapalhar, mas tem muita gente e muita coisa para conquistar e estamos conquistando. Se hoje eu estou aqui falando não é de graça, é para manter essa história viva e permanente nos nossos dias. 

Conversa Bem Viver

Em diferentes horários, de segunda a sexta-feira, o programa é transmitido na Rádio Super de Sorocaba (SP); Rádio Palermo (SP); Rádio Cantareira (SP); Rádio Interativa, de Senador Alexandre Costa (MA); Rádio Comunitária Malhada do Jatobá, de São João do Piauí (PI); Rádio Terra Livre (MST), de Abelardo Luz (SC); Rádio Timbira, de São Luís (MA); Rádio Terra Livre de Hulha Negra (RN), Rádio Camponesa, em Itapeva (SP), Rádio Onda FM, de Novo Cruzeiro (MG), Rádio Pife, de Brasília (DF), Rádio Cidade, de João Pessoa (PB), Rádio Palermo (SP), Rádio Torres Cidade (RS); Rádio Cantareira (SP); Rádio Keraz; Web Rádio Studio F; Rádio Seguros MA; Rádio Iguaçu FM; Rádio Unidade Digital ; Rádio Cidade Classic HIts; Playlisten; Rádio Cidade; Web Rádio Apocalipse; Rádio; Alternativa Sul FM; Alberto dos Anjos; Rádio Voz da Cidade; Rádio Nativa FM; Rádio News 77; Web Rádio Líder Baixio; Rádio Super Nova; Rádio Ribeirinha Libertadora; Uruguaiana FM; Serra Azul FM; Folha 390; Rádio Chapada FM; Rbn; Web Rádio Mombassom; Fogão 24 Horas; Web Rádio Brisa; Rádio Palermo; Rádio Web Estação Mirim; Rádio Líder; Nova Geração; Ana Terra FM; Rádio Metropolitana de Piracicaba; Rádio Alternativa FM; Rádio Web Torres Cidade; Objetiva Cast; DMnews Web Rádio; Criativa Web Rádio; Rádio Notícias; Topmix Digital MS; Rádio Oriental Sul; Mogiana Web; Rádio Atalaia FM Rio; Rádio Vila Mix; Web Rádio Palmeira; Web Rádio Travessia; Rádio Millennium; Rádio EsportesNet; Rádio Altura FM; Web Rádio Cidade; Rádio Viva a Vida; Rádio Regional Vale FM; Rádio Gerasom; Coruja Web; Vale do Tempo; Servo do Rei; Rádio Best Sound; Rádio Lagoa Azul; Rádio Show Livre; Web Rádio Sintonizando os Corações; Rádio Campos Belos; Rádio Mundial; Clic Rádio Porto Alegre; Web Rádio Rosana; Rádio Cidade Light; União FM; Rádio Araras FM; Rádios Educadora e Transamérica; Rádio Jerônimo; Web Rádio Imaculado Coração; Rede Líder Web; Rádio Club; Rede dos Trabalhadores; Angelu’Song; Web Rádio Nacional; Rádio SINTSEPANSA; Luz News; Montanha Rádio; Rede Vida Brasil; Rádio Broto FM; Rádio Campestre; Rádio Profética Gospel; Chip i7 FM; Rádio Breganejo; Rádio Web Live; Ldnews; Rádio Clube Campos Novos; Rádio Terra Viva; Rádio interativa; Cristofm.net; Rádio Master Net; Rádio Barreto Web; Radio RockChat; Rádio Happiness; Mex FM; Voadeira Rádio Web; Lully FM; Web Rádionin; Rádio Interação; Web Rádio Engeforest; Web Rádio Pentecoste; Web Rádio Liverock; Web Rádio Fatos; Rádio Augusto Barbosa Online; Super FM; Rádio Interação Arcoverde; Rádio; Independência Recife; Rádio Cidadania FM; Web Rádio 102; Web Rádio Fonte da Vida; Rádio Web Studio P; São José Web Rádio – Prados (MG); Webrádio Cultura de Santa Maria; Web Rádio Universo Livre; Rádio Villa; Rádio Farol FM; Viva FM; Rádio Interativa de Jequitinhonha; Estilo – WebRádio; Rede Nova Sat FM; Rádio Comunitária Impacto 87,9FM; Web Rádio DNA Brasil; Nova onda FM; Cabn; Leal FM; Rádio Itapetininga; Rádio Vidas; Primeflashits; Rádio Deus Vivo; Rádio Cuieiras FM; Rádio Comunitária Tupancy; Sete News; Moreno Rádio Web; Rádio Web Esperança; Vila Boa FM; Novataweb; Rural FM Web; Bela Vista Web; Rádio Senzala; Rádio Pagu; Rádio Santidade; M’ysa; Criativa FM de Capitólio; Rádio Nordeste da Bahia; Rádio Central; Rádio VHV; Cultura1 Web Rádio; Rádio da Rua; Web Music; Piedade FM; Rádio 94 FM Itararé; Rádio Luna Rio; Mar Azul FM; Rádio Web Piauí; Savic; Web Rádio Link; EG Link; Web Rádio Brasil Sertaneja; Web Rádio Sindviarios/CUT.

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