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Apesar de nova diretriz, empresas podem terceirizar saúde mental e não combater exploração, prevê especialista

'Não adianta curso de boas práticas se a cabeça de um colega é degrau para ascensão do outro', alerta pesquisadora

No próximo dia 26 de maio, entra em vigor uma nova determinação sobre segurança e saúde no trabalho, com um foco inédito e histórico nos riscos psicossociais. A partir da diretriz, as empresas serão obrigadas a instituir ações para proteger a integridade mental de trabalhadores e trabalhadoras.

A Norma Regulamentadora nº 1 vem sendo chamada pela sigla NR-1 e foi alvo de debates por três anos em um Grupo de Estudos Tripartite do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Ainda assim, na semana passada, a pasta decidiu que os primeiros 12 meses de aplicação serão um período de adaptação, sem multas ou punição em caso de descumprimento.

Segundo anúncio do MTE, o prazo foi definido após reuniões com representantes de diversos setores. A fiscalização terá um caráter orientativo, para instruir empresas sobre as novas obrigações. A NR – 1 determina que elas avaliem e controlem fatores como sobrecarga de trabalho e assédio e prevejam riscos psicossociais.

Em entrevista ao podcast Repórter SUS, a especialista em saúde do trabalhador e professora da PUC-SP, Renata Paparelli, afirma que é “possível e necessário” prever esses riscos, mas aponta que a nova norma carrega alguns poréns. O principal deles, segundo ela, é a não participação de trabalhadores e trabalhadoras na identificação das questões relativas à saúde mental.

“Não dá para trabalhar com essa problemática em uma perspectiva abstrata. É preciso saber quais são, nas empresas, os setores com os maiores índices de afastamento, presenteísmo, absenteísmo, rotatividade, aposentadoria por invalidez e, em função desse mapeamento concreto – e não simplesmente com pesquisa de clima – entender quais são os problemas identificados por quem trabalha naqueles setores.”

A pesquisadora pondera que chegar a essa realidade esbarra em uma série de questões culturais. Uma delas é a visão geral de “desconfiança” que o patronato costuma ter de trabalhadores e trabalhadoras. Nessa lista está também a lógica empresarial que valoriza exclusivamente a questão do desempenho.

“Eu acho que nenhuma empresa quer adoecer nenhum trabalhador. Mas a empresa quer que as pessoas tenham o máximo desempenho qualitativa e quantitativamente na menor quantidade de tempo. Só que a equação não fecha. Exigir das pessoas o máximo do máximo, no menor tempo possível e ter maior índice de saúde e felicidade, não fecha”, alerta ela.

Levantamento do Ministério da Previdência Social, divulgado em março, revelou que aproximadamente meio milhão de afastamentos do trabalho foram registrados no ano passado. A ansiedade e a depressão foram as principais causas e tiveram aumento de 68% em relação a 2023.

Para auxiliar na implementação das novas diretrizes, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) elaborou e disponibilizou um guia oficial com orientações detalhadas sobre a Norma Regulamentadora. O documento foi disponibilizado no site da pasta e aborda desde a identificação e avaliação dos riscos psicossociais até as medidas de prevenção e controle.

Renata Paparelli ressalta que a NR-1 já estimula o surgimento de um mercado de serviços para auxiliar as empresas a atender à obrigatoriedade, mas destaca que essa terceirização não vai solucionar a questão. Na entrevista, ela lembra que os problemas nas empresas brasileiras vão desde a falta de incentivo a redes de apoio e empatia entre colegas até a negação de tempo para ir ao banheiro.

“Nessa lógica do monitoramento dos riscos, da pesquisa de clima e do oferecimento de suporte psicológico via plataformas, a empresa pode afirmar-se como uma empresa promotora de saúde mental. Mas, de fato, nos índices que são concretos isso não tem impacto nenhum. Se eu preciso mexer em um problema, eu preciso mexer nas causas dele e as causas dos transtornos mentais relacionados ao trabalho, via de regra, estão localizadas no excesso de exploração da força do trabalho.”

Ainda na percepção da especialista, outra necessidade identificada para enfrentar o adoecimento mental é o fortalecimento da luta de trabalhadores e trabalhadoras por melhores condições de vida e de trabalho. Ela ressalta a importância dos sindicatos e entidades representativas nesse processo.

Segundo Renata Paparelli, a luta coletiva também impõe a urgência de combate ao estímulo da competitividade nos ambientes de trabalho. “Não adianta você dar um curso de boas práticas se na lógica da empresa a cabeça de um colega é degrau para ascensão do outro”, conclui.

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