Feminismo

As nuances do golpe: a violência contra a mulher multiplicada

Plano Popular visa retomar direitos e políticas públicas desestruturadas pelo governo Temer

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Em 2017, o número de mulheres que declararam ter sido vítimas de algum tipo de violência passou de 18%, em 2015, para 29%.
Em 2017, o número de mulheres que declararam ter sido vítimas de algum tipo de violência passou de 18%, em 2015, para 29%. - Rede Brasil Atual (São Paulo)

O Brasil coleciona milhares de relatos sobre dificuldades ao acesso de aparelhos públicos em denúncias de violência contra a mulher. O caso da jornalista paulistana Larissa Santos* é um deles.

Ela sofreu violência doméstica durante um relacionamento de quatro anos e afirma que, nas ocasiões em que procurou a Polícia Militar, em 2012, apenas acumulou boletins de ocorrência. Em dois meses, por exemplo, ela precisou ir à delegacia quatro vezes, mesmo com a medida protetiva contra o ex-parceiro aprovada.

"Quando eu vi que eu iria morrer e ponto, tive que pedir ajuda. Se eu não tivesse conseguido auxílio dos meus amigos, que forneceram advogados gratuitamente, eu acho que não estaria falando hoje com você, sinceramente", conta.

Longe de ser um caso isolado, dados mais recentes da Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência – Ligue 180 mostram que houve um aumento de 52% dos atendimentos no ano passado em comparação a 2015. Destes, 67.962 foram relatos envolvendo violência doméstica e familiar, o que representa um aumento de 133% ao período anterior.

Em 2017, o número de mulheres que declararam ter sido vítimas de algum tipo de violência passou de 18%, em 2015, para 29%. Também houve crescimento no percentual de entrevistadas que disseram conhecer alguma mulher que já sofreu violência doméstica ou familiar: esse índice saltou de 56% para 71% em dois anos. Os dados são de uma pesquisa realizada pelo Instituto DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência. 

Ainda assim, o governo golpista de Michel Temer (PMDB) optou, em 2016, pela dissolução do Ministério de Políticas para Mulheres, colocando mais barreiras à assistência de mulheres em situação de violência.

Paralisação de obras

Pronto desde novembro de 2016, o prédio onde funcionaria a Casa da Mulher Brasileira (CMB) de São Paulo ainda não foi inaugurado. O equipamento, que custou R$ 7,6 milhões, foi financiado com verba federal do "Mulher, Viver Sem Violência", lançado em 2013. O programa  previa a construção, em cada estado, de um local onde se concentrasse, em um só espaço, serviços de atendimento mais humanizados à mulher vítima de violência.

Nas casas que já foram inauguradas, em Campo Grande (MS), Brasília (DF) e Curitiba (PR), funciona uma delegacia da mulher, um juizado de Vara especializada em violência contra mulher, uma promotoria de Justiça, além de locais apropriados para atendimento psicossocial, um alojamento para as mulheres que chegam na casa e locais de capacitação para emprego e geração de renda.

A ex-ministra de Políticas para Mulheres Eleonora Menicucci, que estava à frente do projeto durante o governo Dilma Rousseff (PT), critica a extinção da pasta em que atuava e afirma que o equipamento na capital paulista, por exemplo, se transformou em um "elefante branco".

Ela afirma que a verba para garantir o serviço para as mulheres na capital paulista, de mais de R$ 13 milhões, foi repassado no início deste ano. Em nota, a Prefeitura de São Paulo afirmou que a obra da CMB é de responsabilidade do governo federal e negou que o repasse tenha sido efetuado. 

"O uso do espaço só será entregue para a gestão da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo quando ele estiver concluído. O dinheiro para a manutenção da Casa virá do governo federal por meio de um convênio", informou.

Já a assessoria do Ministério de Justiça e Cidadania, à qual a Secretaria está incorporada, foi procurada pela reportagem por e-mail, mas não respondeu até o fechamento desta reportagem.

Propostas

Entre as ações previstas no eixo de Direitos Humanos e Cidadania do Plano Popular de Emergência, da Frente Brasil Popular (FBP) — que é formada por mais de 80 organizações —, está a retomada imediata do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher e do programa “Mulher, Viver Sem Violência", além da recriação dos ministérios de Direitos Humanos, Políticas para Mulheres e Promoção da Igualdade Racial. 

Para Menicucci, as pastas específicas dão "status de nobreza tal como as pautas exigem". Passados mais de um ano do golpe que destituiu a primeira presidenta mulher do país, a ex-ministra avalia que existe um "leque de direitos que foram espancados e rasgados".

Ela assume, no entanto, que o governo Dilma ficou em dívida com as mulheres brasileiras. "Eu, como ministra de Políticas para as Mulheres, por exemplo, na questão do aborto e dos direitos sexuais não avancei, para além de melhorar a qualidade de serviços de aborto legal, fazendo portaria de atenção integral às mulheres em situação de aborto, por causa do Congresso, que é fascista, fundamentalista e conservador", criticou.

O Plano Popular de Emergência é um documento elaborado pelas centrais sindicais, movimentos populares e partidos que compõem a FBP. As entidades pedem também, entre outras medidas, a descriminalização do aborto e regulamentação de sua prática no serviço público de saúde e inclusão de orientações sobre identidade sexual e de gênero na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). 

Enquanto o Poder Público segue com atuação limitada, a alternativa encontrada pelas mulheres é o fortalecimento mútuo. Desde que conseguiu sair do relacionamento em que sofria com a violência, Larissa tem reiterado o papel fundamental de uma rede de proteção e acolhida de mulheres. Hoje, ela auxilia uma amiga que passa pelo mesmo processo. 

"Quando você chega neste limite, que é totalmente pessoal, você precisa contar com ajuda. Não adianta querer sair sozinha – como eu quis, como ela [sua amiga] quis e como muitos querem porque têm vergonha, porque acham que se colocou nesta situação... Eu criei a minha mini-rede, mas eu sabia com quem poderia contar naquele momento. De fato, me pegaram pela mão e me tiraram dali", disse a jornalista.
 
*Nome alterado, a pedido da entrevistada, para preservar sua identidade.

 

Edição: Simone Freire