Nova Constituição

Constituinte pretende pacificar Venezuela por meio da participação popular; entenda:

Convocação é contestada por oposição e setores da sociedade; Maduro afirmou que atual Constituição será texto base

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Constituição atual do país foi formulada em 1999
Constituição atual do país foi formulada em 1999 - PSUV Falcón

Wolfgang Vicente Flechas é livreiro, artista plástico, poeta e advogado formado pela Universidade Bolivariana da Venezuela. Divide um grande banco de madeira com outros venezuelanos que vendem livros usados na Candelária, bairro Bellas Artes, região oeste de Caracas. Com 59 anos de vivência, empolga-se para enfrentar mais um desafio: ser candidato a deputado nacional constituinte. Para tal, terá que conseguir o apoio de outros mil companheiros artistas por meio de um abaixo-assinado, uma das exigências para que possa se postular a deputado Constituinte na Venezuela.

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"Carmen, olha, já estou com a planilha para recolher as assinaturas. Temos que começar hoje", diz, enquanto nos apresenta algumas raridades do jornalismo venezuelano: Jornais de 2002, 2003, exemplares do Le Monde Diplomatique e a primeira versão do Venepress, de 2002, um jornal oficial do início do governo do ex-presidente Hugo Chávez.

Wolfgang Flechas | Foto: Jonatas Campos/Brasil de Fato

A luta de Flechas não será fácil. Ele se candidatou por "iniciativa própria", quando não há necessidade de ser filiado a um partido e, possivelmente, disputará com quadros do PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela), partido fundado pelo ex-presidente Hugo Chávez, no qual é filiada a maioria governista e o presidente do país, Nicolás Maduro.

"Estou por iniciativa própria, não vou por nenhum ente do Estado ou civil. Será pelos mais de 40 anos que sou conhecido como livreiro, escrevo poesias, faço pintura e escultura. Vou correr atrás eu mesmo, pois não possuo máquina partidária para me ajudar, porque aqui a democracia é bastante participativa", diz confiante. Ele se candidatará pela categoria "trabalhadores", na subdivisão "cultores" (fazedores de cultura, em tradução livre).

Funcionamento

No dia 23 de maio, Maduro entregou ao CNE (Conselho Nacional Eleitoral) as bases legais para a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte para redigir uma nova Carta Magna para o país. Sua principal justificativa foi a de que o país deve superar a dependência da renda petroleira, abrir o diálogo de paz e dar voz ao povo, considerado como "poder original". Em 5 de junho, apresentou uma modificação a essas mesmas bases legais, agora, acrescentando um referendo popular de aprovação ou reprovação da nova Constituição.

Apesar do questionamento sobre a legalidade do processo, feito pelo Ministério Público Federal venezuelano, a eleição para 545 deputados da Assembleia Nacional Constituinte continua marcada para 30 de julho. Mais de 53 mil cidadãs e cidadãos venezuelanos se colocaram como postulantes. Depois de se cadastrarem no site do CNE, os "pré-candidatos" devem recolher assinaturas dos setores ou municípios aos quais eles desejam representar. Esse recolhimento de assinaturas tem prazo até a próxima quinta-feira (15).

Serão 364 deputados representando cada um dos municípios venezuelanos, sendo que as capitais terão dois. Outros 181 deputados constituintes serão representantes de setores da sociedade, divididos entre trabalhadores; camponeses e pescadores; comunas e conselhos comunais; estudantes; aposentados; empresários; povos indígenas e pessoas com deficiência.

Quem quiser representar camponeses e pescadores, empresários, aposentados e pessoas com deficiência deverá recolher 500 manifestações de apoio, enquanto os que desejam representar estudantes e trabalhadores têm que apresentar mil declarações. Os representantes dos indígenas, por sua vez, serão eleitos em assembleias em suas comunidades. Já os conselhos comunais deverão apresentar seus candidatos escolhidos dentro de cada organização.

"Com a crise política e econômica, a população está indignada, o que obriga o presidente a tomar uma decisão como essa. É a única saída democrática e a mais arriscada, porque é preciso construir maiorias em meio à adversidade", avalia a advogada, especialista direito constitucional, ouvida pelo Brasil de Fato, Maria Alejandra Díaz.

Desde sua convocação, o presidente Maduro tem repetido que a nova Carta Magna terá como pontapé o texto da atual Constituição, aprovada em 1999.

Mulheres

Nas eleições setoriais se candidataram 21.868 mulheres, que correspondem a 62% das pré-inscritas. Já os homens que se interessam por concorrer a deputado constituinte foram 13.575, representando 38%. Nos municípios, no entanto, ocorreu o contrário: foram 12.383 homens, correspondendo a 62% e 7.494 mulheres postulantes, o que equivale a 38%.


Morela Rojas: Arquivo Pessoal

Morella Rojas: Arquivo Pessoal

Morella Rojas já tem sua vaga de candidata garantida. Diferente de Wolfgang, ela representará seu Conselho Comunal, chamado "Rocíos de Revolución", na Paróquia (área territorial correspondente a vários bairros) El Valle, em Caracas, Distrito Capital. Esse conselho é uma forma de organização social reconhecida pelo Estado Venezuelano e tem bastante influência nos bairros populares, inclusive recebendo aporte de recursos públicos para realizar obras e trabalhos sociais. Como seu conselho comunal já foi eleito, esclarece Rojas, não foi necessário realizar eleição, porque basta escolher quem será o representante da área.

Se eleita, quer lutar pelos direitos das mulheres, das crianças e adolescentes e por pautas ligadas aos direitos humanos e à participação popular. "Queremos que a Constituinte reconheça o poder popular e que isso esteja na nova Carta Magna", disse à reportagem. "As políticas públicas do governo nacional têm nos colocado como sujeitas de transformação da realidade", analisa.

A advogada Alejandra Díaz analisa que esse interesse das mulheres pela política se deu graças à presença feminina nos últimos 18 anos do chavismo (como é chamado o processo venezuelano após o início da revolução bolivariana). "Temos avançando na participação das mulheres e esses 62% são uma garantia de que todo esse processo dá sustentação ao protagonismo feminino", diz.

Diálogo

Assim como Flechas e Rojas, importantes personalidades do chavismo também irão concorrer a deputados constituintes.

O ministro da Educação e coordenador do processo pelo governo, Elias Jaua, é um deles. Ex-deputado da constituinte de 1999 no país, ele acredita que este é o momento mais propício para o surgimento de novas lideranças: “O que queremos é que os setores populares descontentes despontem com suas críticas, propostas e o que o espaço constituinte se converta em um novo impulso ao processo revolucionário, com retificações e que apareçam novas lideranças", disse ao Brasil de Fato. Leia aqui a íntegra da conversa com o ministro.

Além de Elias Jaua, já confirmaram que serão candidatos a deputados constituintes a ministra das Relações Exteriores, Delcy Rodríguez; o ministro da Cultura, Adán Chávez; o ministro das Comunas, Aristóbulo Istúriz; a ex-ministra da Defesa Carmen Meléndez e a primeira-dama, Cilia Flores.

Crítica

A crítica mais profunda da oposição continua sendo a de que o povo não foi consultado sobre se esta assembleia deveria ou não modificar a Constituição de 1999, feita pelo ex-presidente Chávez. Mesmo com a garantia, por parte do governo, de que um referendo será realizado para ratificar ou rejeitar o novo texto, os críticos apontam outras características uma série de problemas.

"Matemos nossa opinião sobre a Constituinte de Maduro. Ele fala em referendo depois de realizada. O objetivo de instalar essa Constituinte é dissolver a Assembleia Nacional", disse para o Brasil de Fato o deputado oposicionista do partido Voluntad Popular, Juan Andres Mejias. "Não há transparência, não há objetividade, não há disposições de quanto tempo vai durar", conclui Mejias.

Ao centro, deputado Juan Andres Mejias | Foto: Voluntad Popular

"O processo Constituinte está previsto na Constituição da República, mas a maneira como está sendo convocado, neste momento, por parte de Maduro e seu governo representa uma fraude à Constituição e à soberania que reside no povo da Venezuela de maneira intransferível", disse o advogado constitucionalista Cipriano Heredia, também ouvido pelo Brasil de Fato.

Heredia levanta a tese de que o governo Maduro, na verdade, quer "acabar com a forma de governo republicana" no país, onde há divisão de poderes e democracia plena. Assim, o objetivo seria "instaurar formalmente uma ditadura, na qual não haveria divisão de poderes, onde não vai haver uma Assembleia Nacional, onde o poder municipal vai ser substituído pelas Comunas, o poder estadual por corporações regionais controladas pelo executivo e onde não será tolerada a dissidência", atacou.

"O artigo 347 diz que o único detentor do poder constituinte é o povo da Venezuela, portanto, o presidente não poderia convocar diretamente", disse ainda o advogado. "Ele propõe, mas quem decide é o povo", complementa.

A procuradora geral do Estado, Luisa Ortega Díaz, entrou com um mandato de segurança, na última semana, pedindo a anulação da realização da Assembleia Constituinte. O pedido, no entanto, foi negado pela Sala Eleitoral do Tribunal Supremo de Justiça.

"Estamos em uma posição que coincide com a posição formal e democrática da procuradora geral", disse Heredia.

Participação

Uma das preocupações mais evidentes do governismo é referente à participação e o comparecimento às urnas. Para tal, foi criado o Zamora 200, um comando de campanha com os principais ministros de Maduro, responsável por organizar e mobilizar as pessoas. O Nossa reportagem esteve no Estado de Barinas acompanhando a agenda governamental dos ministros Elias Jaua e Adán Chávez. Após uma longa caminhada por vários bairros pobres da capital Barinas, ambos realizaram uma plenária em uma quadra de escola convocando a população ao voto.

O taxista Carlos Juez, que está se graduando em direito, disse que vai votar na Constituinte e que está preocupado com a participação da população no processo. Ele afirma que vai se mobilizar, pois, em suas palavras, "a Constituição é do interesse de todos e um chamado à paz".

O deputado oposicionista Mejias acredita que a participação já foi prejudicada, já que este processo não convocou um referendo antes da Constituinte: "Em 1999, houve um referendo anterior para convocar, depois elegemos os deputados, e aí houve um referendo para ratificá-la", lembra o deputado do Voluntad Popular.

"Na Constituição de 1999, a oposição participou de uma forma muito pequena. No entanto, depois de aprovada e colocada à consulta popular, 74% da população aprovou", contrapõe Maria Alejandra.

Edição: Vanessa Martina Silva