Entrevista

"As pessoas democráticas não podem abandonar a disputa nas redes", diz sociólogo

Sérgio Amadeu analisa o papel da internet no processo eleitoral e sugere caminhos para se combater a desinformação

Brasil de Fato | São Paulo |
Professor da Universidade Federal do ABC compara estratégias de campanha de Jair Bolsonaro e Donald Trump
Professor da Universidade Federal do ABC compara estratégias de campanha de Jair Bolsonaro e Donald Trump - Reprodução Youtube

Sociólogo e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Bernardo do Campo (SP), Sérgio Amadeu é uma das referências no debate sobre as redes sociais e a inclusão digital. Ele atuou como coordenador do Governo Eletrônico da Secretaria Municipal de Comunicação e Informação Social da Prefeitura de São Paulo e foi o responsável por criar a rede pública de Telecentros. 

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Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Amadeu discute as estratégias das campanhas nas redes sociais e analisa, em paralelo, a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos em 2016 e a ação de grupos ligados ao candidato Jair Bolsonaro (PSL) no Brasil. Confira abaixo a entrevista completa:

Brasil de Fato: O senhor vê semelhanças entre as estratégias de campanha utilizadas por Donald Trump, em 2016, nos Estados Unidos, e por Jair Bolsonaro, no Brasil?

Sérgio Amadeu: Não só as estratégias de campanha de Bolsonaro são semelhantes às utilizadas por Donald Trump, como isso também é uma prática dessa direita brasileira, dessas forças neofascistas que se inspiraram no chamado out right norte-americano. É a chamada “direita alternativa” norte-americana, que tem Steve Bannon, Milo Yiannopoulos, e tantos outros líderes de rede desta chamada “direita alternativa americana”. Eles se utilizam da desinformação e produzem ataques completamente descompromissados. Em geral, [o ataque] tenta ter algum tipo de humor, e não precisa necessariamente ter uma base com a realidade. O script do MBL [Movimento Brasil Livre], que é uma startup do ódio, é muito parecido com os grupos financiados pelo especulador norte-americano Robert Mercer, que era um dos donos da Cambridge Analytica. Tem muita semelhança. Para se ter uma ideia, nos Estados Unidos, um dos líderes da rede dessa direita que se autodenomina out right é um gay que ataca profundamente os gays. Então, eles não guardam nenhuma coerência com a política, com a vida, e têm uma predileção por piadas e ataques que são contra os mais frágeis -- características físicas, características raciais, eles buscam atuar dessa forma. No Brasil, eles também trabalham com uma técnica muito utilizada nos Estados Unidos que é misturar fatos com suposições completamente improcedentes. 

A direita norte-americana, essa direita neofascista, se proliferou e se consolidou explorando as redes sociais, tal como essa direita ligada ao Bolsonaro. O Bolsonaro é um fenômeno que tem raízes profundas no Brasil, na origem racista que o Brasil tem, no conservadorismo de alguns extratos da população, mas essas expressões estavam dispersas. Na verdade, se pegarmos a história da Itália fascista, com Mussolini, ou do nazismo, em um primeiro momento aquilo era algo considerado absurdo. O Hitler, por exemplo, falava coisas inaceitáveis, mas aquilo foi despertando os elementos mais profundos de inveja, de ódio. Os sentimentos baixos vão sendo mobilizados por um simplismo na fala. O Hitler foi considerado um completo lunático, como era, e como é Bolsonaro. Porém, a campanha da direita tem muita similaridade com a campanha, mais contemporaneamente, desses que são os out right -- um conjunto de forças da extrema direita americana, que estiveram na campanha do Donald Trump, e que ainda o suportam nas redes. 

De que maneira o senhor acredita que essa propagação de notícias falsas, de maneira organizada, pode interferir nas eleições?

Eu não sei se o que se chama de “fake news” foi decisivo na eleição norte-americana. No meu modo de ver, o que foi decisivo foi neutralizar um eleitorado que poderia ter derrotado o Trump, votando na Hillary [Clinton]. É preciso tomar muito cuidado com isso. Porque eles vão tentar, no caso brasileiro, usando desinformação, principalmente no Whatsapp, neutralizar o voto dos mais pobres que têm muita gratidão e lembram do que era a vida deles durante o governo Lula. O trabalho do fundamentalismo religioso, nesse sentido, é muito perigoso. Mas, é possível disputar isso.

As pessoas que dizem: “Ah, eu não vou me incomodar com o grupo da família”, se incomodem. Coloquem lá os prints do Bolsonaro dizendo que vai atacar direitos, coloque os prints do vice do Bolsonaro dizendo que é contra o 13º salário, coloquem lá ele dizendo que é a favor da reforma trabalhista, que tira direitos e tira salário das pessoas. Ou seja, é preciso disputar no Whatsapp. Se as pessoas democráticas abandonarem o Whatsapp, eles vão ter um ganho nos extratos mais populares, e também em uma classe média que ainda pode estar em dúvida. É preciso argumentar, porque essa foi a estratégia do Trump: dizer que a Hillary era ruim, não conseguiria fazer nada. E esse discurso era feito para quem poderia votar na Hillary. E aí é que entrou o papel da Cambridge Analytica, de escolher, identificar, quem poderiam ser os possíveis eleitores da Hillary Clinton, e então neutralizá-los com um conjunto de mensagens. Essas mensagens não necessariamente eram mentiras, mas eram um exagero, eram descontextualizadas, por isso que eu prefiro chamar de processo de desinformação.

Eu acho curioso que não está havendo uma reação das principais campanhas democráticas, ou seja, o Ciro [Gomes], o [Fernando] Haddad, o [Guilherme] Boulos, para tentar neutralizar o voto de quem teme por uma pessoa tão desqualificada, violenta, fascista, a chegar ao governo. Eles vão tentar demover essas pessoas de votarem no candidato antifascista. 

Nos Estados Unidos e na Europa, que o senhor mencionou, há algum tipo de pluralidade no sistema de comunicação. No Brasil, temos um sistema altamente concentrado. De que forma isso modifica o peso que possam ter as redes sociais nesse processo?

Todo empenho da extrema direita agora é dizer que eles estão criando uma onda, porque eles têm condição de ganhar no primeiro turno, o que não é verdade. Mas é preciso criar uma contraonda agora. E quem está ajudando essa onda da extrema direita é, sem dúvida nenhuma, a Record, a Globo e as igrejas, que no Brasil trabalharam em uníssono a favor da candidatura do Bolsonaro --principalmente as evangélicas.

No caso das redes de comunicação, principalmente a TV, e o capital financeiro, eles já decidiram o apoio ao Bolsonaro, uma vez que fracassaram as candidaturas "confiáveis", principalmente a candidatura do [Geraldo] Alckmin. Então, como fracassou, a Globo, os Marinho, vão fazer de tudo para poder trazer a vitória ao Bolsonaro, porque eles acreditam que têm como negociar com o Bolsonaro a obtenção do que interessa para eles. Ou seja, as verbas de publicidade e o controle da comunicação, do Ministério de Ciência e Tecnologia. Vão tentar trazer para eles, e o país que se dane.

A linha dos Marinho sempre foi essa. Eles são sonegadores contumazes e totalmente irresponsáveis. Essa é uma diferença no caso dos veículos de comunicação no Brasil. Por outro lado, estão muito queimados, principalmente a Globo. 

Diante desse cenário, é possível pensar em algum tipo de regulação dessas ações nas redes sociais?

Eu acredito que, se houver seriedade e responsabilidade em qualquer dos candidatos que ganhe a eleição, é preciso mexer na concentração de propriedade dos meios de comunicação. E tem que mexer também na concentração absurda de verbas publicitárias nas mãos de tão poucos grupos econômicos. Eles usam o dinheiro do Estado para ganhar mais audiência, e dizem depois que a grande audiência é o que tem que atrair o dinheiro do Estado. É um círculo vicioso que tem que ser quebrado. Deve haver efetivamente uma democratização dos recursos.

A Globo é praticamente uma estatal, porque recebe dinheiro do Estado para fazer, na verdade, uma política de solapamento, de entreguismo, de ataques à democracia. Não dá pra aceitar que o povo pague por esse tipo de ação antidemocrática.

Qualquer presidente com responsabilidade vai ter que fazer isso ou, do contrário, vai ficar refém novamente de um processo absurdo de golpismo a qualquer hora, quando os interesses do capital financeiro e midiático forem contrariados. Por outro lado, é preciso lembrar o seguinte: nós não estamos mais no século 20, quando o peso da TV era enorme. É preciso ficar atento às redes. Elas são tão importantes quando a televisão. Não adianta a gente achar que só uma lei de meios vai resolver o problema da democratização da produção cultural e do discurso diverso. Porque a diversidade do discurso, nas redes, segue uma outra lógica, a lógica da atenção.

O difícil não é criar as coisas, mas prender a atenção. Isso, a gente obtém com incentivos à produção cultural espalhada pelo país, atentos ao surgimento de novas plataformas. Ou seja, há todo um caminho a seguir que não se limita a quebrar a voz única dos coronéis da mídia.

Edição: Daniel Giovanaz