ENTREVISTA

“Ideologia de gênero” é construção ideológica dos fundamentalistas, diz pesquisadora

Sara Pérez, docente da Universidade de Quilmes (Argentina), explica a origem do termo presente no discurso de Bolsonaro

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Jair Bolsonaro afirmou, durante o discurso de posse, que vai "combater a ideologia de gênero" no país
Jair Bolsonaro afirmou, durante o discurso de posse, que vai "combater a ideologia de gênero" no país - Divulgação

Em seu primeiro discurso como presidente, realizado no Congresso Nacional brasileiro, Jair Bolsonaro reafirmou sua ideia de “combater a ideologia de gênero”. No dia seguinte à posse, a capa do jornal O Estado de São Paulo enfatizou que o novo presidente repetia seu discurso da campanha eleitoral. Se o mandatário insiste na expressão “ideologia de gênero” é porque ela representa um elemento central da sua política como presidente. Mas o que é a chamada “ideologia de gênero”? Por que Bolsonaro a menciona com frequência? Para compreender, o Nodal entrevistou Sara Isabel Pérez, linguista e coordenadora do Programa de Ação Institucional para a Prevenção da Violência de Gênero da Universidade Nacional de Quilmes (UNQ), na Argentina.

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O novo presidente disse que vai combater a “ideologia de gênero”. Existe ideologia de gênero?

A “ideologia de gênero” é uma construção ideológica dos grupos fundamentalistas. Quando o presidente do Brasil diz que vai combater a “ideologia de gênero”, está dizendo, na verdade, que vai combater a educação sexual integral, o casamento igualitário, os direitos das mulheres, jovens e crianças, os avanços em matéria de direitos sexuais e reprodutivos, entre outros. A expressão “ideologia de gênero” é uma construção ideológica em si, promovida pela Igreja Católica desde o final do século passado. É a expressão escolhida para fazer referência a todos os avanços que conquistamos pela igualdade de gênero a partir da luta dos feminismos e da comunidade LGBT. E surge também como uma reação aos avanços conquistados na Conferência do Cairo [Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, de 1994] e a Plataforma de Ação de Beijing (1995).

Nos últimos anos,  vemos esta expressão reaparecer, utilizada principalmente por alguns grupos fundamentalistas católicos e também evangélicos. Ela se tornou a bandeira dos grupos conservadores contrários à educação sexual integral e aos direitos sexuais e reprodutivos em toda a América Latina. Estes grupos têm uma forte atuação nas redes e participam ativamente na organização de marchas contra políticas públicas que promovem a igualdade de gênero. Foi o caso da discussão sobre educação sexual no Peru, onde conseguiram a renúncia de Marilú Martens do Ministério da Educação em 2017; na Costa Rica, onde conseguiram influenciar fortemente no processo eleitoral; e na Argentina, em oposição à legalização do aborto em 2018.

:::Do México ao Uruguai, campanha contra "ideologia de gênero" mobiliza conservadores:::

A “ideologia de gênero” costuma ser associada ao feminismo. É o mesmo?

Na verdade, a construção discursiva e ideológica “ideologia de gênero" se baseia em uma deturpação de algumas reivindicações do chamado “feminismo radical”. Os grupos conservadores e fundamentalistas sustentam que o feminismo criou a “ideologia de gênero” como uma forma de atacar a família e os valores da sociedade. A base dessa afirmação é a de que o feminismo fala de “gênero” e ignora a realidade natural do sexo, indo contra a realidade científica e natural da diferença sexual, segundo estes grupos. Por isso, insistem nos dois termos, “ideologia”, em oposição à ciência, e “gênero”, em oposição à sexo biológico. Por trás destes argumentos, que eles se encarregam de desenvolver em artigos, livros e conferências que circulam em toda a América Latina, está a exclusão, no ensino fundamental e médio, de todo e qualquer conhecimento que questione os estereótipos de gênero que legitimam as desigualdades, a violência de gênero e a discriminação, os direitos sexuais e reprodutivos, entre outros. Resumindo, a “ideologia de gênero” é o rótulo de um conjunto de afirmações que grupos fundamentalistas atribuem ao feminismo, em uma operação retórica que busca questionar e, na prática, frear os avanços conquistados em relação aos direitos das mulheres, jovens, crianças e pessoas LGBTI na região.

Durante a campanha eleitoral no Brasil aconteceram importantes mobilizações de mulheres. O que elas exigiam? Há uma reivindicação que atravessa os países da América Latina?

O movimento de mulheres da América Latina vem avançando a passos firmes e de forma cada vez mais visível. Não é um fenômeno novo, evidentemente. Mas sua visibilidade está cada vez maior, particularmente na nossa região. A massiva mobilização das mulheres no Brasil no movimento #EleNão demonstrou claramente que o governo de Bolsonaro representa um retrocesso nos direitos humanos, em geral.

Os discursos de ódio durante a campanha, por exemplo, produziram as condições de violência simbólica que legitimaram ações concretas, violentas, contra líderes feministas e da comunidade LGBTI, como no caso do assassinato da ativista Marielle Franco. O feminismo, o movimento de mulheres e a comunidade LGBTI, de mãos dadas com diversas organizações sociais e políticas, conquistaram grandes avanços nas últimas décadas, mas ainda têm uma agenda muito importante. E observamos na região, de forma vigilante e crítica, que existe a possibilidade de retroceder nos direitos alcançados.

Do mesmo modo, as greves no 8 de março, as marchas do movimento Nenhuma a menos e a luta pelo aborto legal, seguro e gratuito na Argentina tiveram um forte impacto na América Latina. É preciso destacar, no entanto, que também o lema “Precisamos salvar as duas vidas” teve grande impacto. Os grupos autodenominados “pró-vida” da região se apropriaram deste slogan, que reivindica “a vida da mãe e da ‘criança que vai nascer’”. Foi assim que eles contestaram as defensoras do direito à interrupção da gravidez, que os acusavam de não se preocupar com a vida das mulheres grávidas. Assim, os lenços verdes se tornaram um símbolo da luta das mulheres no México, no Chile e na Colômbia, entre outros, e os lenços azul-celeste, junto com o lema “Salvemos as duas vidas”, foram apropriados pelos grupos conservadores “pró-vida” e “pró-família” desta parte do continente. Hoje, na América Latina, a igualdade de gênero é, sem dúvida, um dos eixos de discussão política e preocupação pública. A disputa pelo sentido começa pelo nome: feminismos, direitos das mulheres e da população LGBT e igualdade de gênero x “ideologia de gênero”.

*Pedro Brieger é diretor do Nodal.

Edição: Nodal | Tradução: Luiza Mançano