Entrevista

Atriz portuguesa enaltece cinema negro brasileiro: "Resistente e resiliente”

Isabél Zuaa falou ao Brasil de Fato sobre sua trajetória e impressões sobre a produção cinematográfica no país

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Atriz portuguesa atuou no Brasil por 7 anos
Atriz portuguesa atuou no Brasil por 7 anos - Felipe Drehmer | Reprodução Facebook

Além de atriz, Isabél Zuaa é compositora e dançarina; se divide entre as três artes e dois países. Nascida em Portugal, viveu no Brasil durante 7 anos e aqui consolidou carreira. Atuou em filmes como Kbela (2015), O Som e o Tempo (2018) e O Nó do Diabo (2018).

A atriz acredita que a visibilidade de pessoas negras no cinema brasileiro é maior, em comparação com o cinema português. No Brasil, "tem já uma linguagem onde o corpo preto tem um espaço. Se não tem esse espaço, isso é questionado. Em Portugal, eu vejo alguns movimentos acontecerem, mas acho o cinema aqui um pouco fechado", afirmou em entrevista ao Brasil de Fato.

Zuaa também falou sobre a influência que teve do ator, cineasta, roteirista e produtor Zózimo Bulbul, um dos responsáveis pela ascensão do cinema negro no Brasil a partir da década de 60 e 70. Ele foi pioneiro ao atuar em mais de 30 filmes. Um dos seus principais trabalhos é Alma no Olho, curta-metragem de 1974. 

Apesar dos avanços, o caminho para um cinema brasileiro democrático ainda é longo. De acordo com o relatório do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), da UERJ, apenas 2% dos filmes com público acima de 500 mil espectadores lançados entre 1970 e 2016 tinham mulheres negras no papel principal. Além disso, segundo a Agência Nacional de Cinema (Ancine), nos longa-metragens lançados em 2016, apenas 13,3% do elenco era negro.

Dificuldades com a produção também são recorrentes. O filme Kbela, de Yasmin Thayná -- que retrata a relação de mulheres negras com seus corpos, e a construção do conceito de beleza no senso comum -- só foi possível após um financiamento coletivo. Mesmo assim, o filme ganhou o prêmio de melhor curta-metragem da Diáspora Africana da Academia Africana de Cinema (AMAA Awards 2017) e foi exibido em dezenas de festivais ao redor do mundo, entre eles o Festival Internacional de Cinema de Roterdã.

Nesse cenário, Zuaa diz que a atuação da atriz negra precisa ir além da representação artística. "Eu tenho que dar consultoria sobre esse corpo que eu habito, tenho que ter posicionamento político, cultural, histórico. Mesmo que eu não queira ter esse posicionamento, ele me é cobrado".

Veja a entrevista completa.

Brasil de Fato: Como você começou sua carreira?

Isabél Zuaa: Cresci e me formei em Portugal, e fiz um intercâmbio em 2010 no Brasil. Minha experiência começou em Portugal com alguns curta-metragens de uma escola de cinema de Lisboa. Ao mesmo tempo que cursava no conservatório de teatro, eu ia trabalhando nos finais de semana com alguns amigos, que às vezes precisavam de alguns atores para fazer curtas para apresentar na faculdade, e eu me dispunha. Isso me trouxe a principal experiência. Foi uma escola, eu fui aprendendo algumas coisas, alguns mecanismos. 
Ainda estou na ponta do iceberg da minha trajetória. Estou só começando. Tenho feito trabalhos muito importantes, de muito aprendizado, trabalhado com pessoas maravilhosas, mas acredito que estou na ponta do iceberg. Espero fazer muitas outras coisas. Cada processo é um aprendizado muito grande.

Como é a experiência de ser uma atriz negra nessa profissão em que mulheres e homens negros são sub-representados e possuem pouco protagonismo?

Eu costumo falar que uma mulher negra fazendo cinema não consegue fazer apenas sua função. No meu caso, ser atriz. Eu tenho que dar consultoria sobre esse corpo que eu habito, tenho que ter posicionamento político, cultural, histórico. Mesmo que eu não queira ter esse posicionamento, ele me é cobrado. Antes de eu aceitar fazer o filme, durante a filmagem ou depois que o filme estreia, existem sempre várias questões que surgem. Então, no meu caso, não sou só atriz, tenho que ter uma clarividência de todas as coisas e todas as decisões que eu tomo, mesmo que sejam apenas artísticas.
Com relação ao protagonismo dos corpos pretos no cinema, o que eu sinto é que muitas vezes ele é roubado. Eu já senti isso e vejo isso acontecer na mídia, nas produções e na história do cinema. Eu estava lendo uma matéria e já tinha falado sobre isso, sobre personagens históricos que o cinema colocou como brancos, como a Cleópatra, Nefertiti, por aí vai. O poder da imagem é muito forte, e as pessoas que trabalham com cinema sabem. Esses protagonismos têm a ver com a invisibilidade. Se existe um protagonismo, ele vai ser dividido, quando é com um branco não é dividido.

Você encontrou grandes diferenças entre a produção do cinema no Brasil e em Portugal? 

Eu me divido entre Portugal e Brasil. Em termos de cinema, não tenho feito muito cinema em Portugal, tenho feito mais cinema no Brasil, e acho que as pessoas me conhecem mais pelos últimos anos que morei aí. Terminei minha formação no Brasil, mas só nos últimos anos tenho feito mais cinema. Também fiz muita dança durante 5 anos e, em Portugal, faço muito teatro, principalmente com a companhia Mala Voadora. Tem sido maravilhoso para mim me dividir entre essas artes.
Em questão de diferenças, pela minhas experiência, acho que o Brasil é um país maior, produz mais cinema e tem já uma linguagem onde o corpo preto tem um espaço. Se não tem esse espaço, isso é questionado. Em Portugal, eu vejo alguns movimentos acontecerem, mas acho o cinema um pouco fechado, pelo menos não tive essa possibilidade e também não tenho ficado tanto tempo disponível para fazer as produções. Na mentalidade, na dramaturgia, nos filmes e tramas que são escritos, eu não vejo muitos corpos pretos habitarem.

Como você enxerga o cinema negro brasileiro que, mesmo com tantas dificuldades de incentivo, tem conseguido extrapolar essas barreiras e ser homenageado em festivais importantes como o Festival de Roterdã? 

O cinema negro brasileiro é resistente e resiliente. Eu tenho a possibilidade de acompanhar e tive a possibilidade de ir à Roterdã, que é uma vitrine mundial onde os curadores, programadores e diretores de outros países falavam: “Como a gente não conheceu a obra do Zózimo? Como não recebíamos a lista dos diretores negros? A lista dos diretores do Brasil tinha só diretores brancos.” Eu escutei isso. E é muito importante o trabalho que muitas pessoas estão fazendo, como Janaína Oliveira, que tem um trabalho muito relevante e minucioso no cinema negro, entre outros nomes com muita força, com muita coragem de poder colocar esses nomes no mundo. 
Eu tive a possibilidade de ir na mostra Black Rebels e foi maravilhoso. Fui acompanhando Yasmin Thayná, diretora e roteirista do Kbela, e o Bruno Duarte, também produtor e comunicador do Kbela. Tive a oportunidade de passar dois dias com eles lá e foi absolutamente fantástico. Foi emocionante a forma como o cinema brasileiro, na perspectiva negra, foi recebido.

Dos filmes em que você atuou, teve algum que você mais se identificou?

Como atriz, eu tive a possibilidade de fazer muitas coisas diferentes. De identificação, de longe, de olho fechado, a primeira resposta que me vem é o Kbela. Porque fala sobre questões que são minhas desde criança, de colorismo, de cabelo, de textura. Para mim foi muito emocionante quando entendi a dimensão do filme que ela (Yasmin) ia fazer. Foi arrebatador quando o Felipe Dremer me colocou em contato com a Yasmin Thayná. Foi absolutamente fantástico, mudou a minha vida falar sobre isso. 
Kbela, para além de ser um filme experimental, tem em paralelo um documentário que foi filmado, onde todas as mulheres pretas que participaram do filme deram seu depoimento sobre a sua trajetória, sobre ser negra, se tornar negra, se amar, se respeitar. É um filme absolutamente fantástico, maravilhoso, que me representa muito, que sinto muito orgulho de ter participado. A Yasmin me deu um espaço, e tive a oportunidade de fazer parte da criação da coreografia do Kbela, de poder cantar, atuar, sobre um tema que faz parte de mim. Kbela é o filme que mais me identifiquei.

Entre os filmes que você atuou, você sentiu que houve dificuldade para impulsionar aqueles com maior engajamento político e antirracista?

Na verdade, esses filmes com temática antirracista e dramaturgia negra são surpreendentes. Como eles têm uma temática forte que muitas pessoas se identificam, apesar da falta de estrutura, acabam atingindo lugares extraordinários, e isso é maravilhoso. A tal da resiliência.

Você acha que consegue passar sua trajetória para as personagens que você interpreta?

Sou filha de uma angolana e um pai da Guiné-Bissau que se conheceram em Lisboa, onde nasci. Sou a primeira geração a nascer fora da África. Para mim, como artista e pensadora, coloco ou tento colocar elementos meus e da minha trajetória, e da trajetória de pessoas que conheço. Quando existe uma abertura, mesmo que a identificação seja um pouco mais distante de mim, eu acho muito interessante quando posso colocar elementos da minha biografia, mas também existem personagens que são tão distantes que não coloco nada. Para mim é o maior prazer poder compartilhar minha história, a história da minha família e dos meus ancestrais nas personagens de ficção que eu faço.

Tem algum aprendizado sobre cinema, negritude ou feminismo que você levou para Portugal dos sete anos que morou aqui no Brasil?

Esses aprendizados sobre a negritude são coisas que caminham comigo desde que me entendo por gente. Não sou daquelas negras que se entendeu negra passado alguns anos da sua trajetória. Sempre soube que eu era negra, preta, nascida em um país de brancos, com uma história complexa. Indo para o Brasil, me deparei com outras convenções de racismo, de sobrevivência. Fico deambulando em qualquer lugar que vou e carrego aprendizados comigo. Aprendi muito no Brasil porque são contextos diferentes, mas a gênese, a base, o início é todo o mesmo. Esses aprendizados e experiências vou compartilhando com outras pessoas. E as coisas que aprendo em Portugal também levo para o Brasil. Falo que o racismo só muda de convenção, porque é forte e estrutural em quase todos os lugares.

O legado de Zózimo Bulbul te influencia em algum ponto?

Eu tive a possibilidade e a honra de conhecer Zózimo em vida e de assistir algumas exibições do Festival que ele é mentor, o Festival de Cinema Negro e Caribenho. Ele é maravilhoso e inspirador, com debates muito acesos, muito importantes e essenciais. Um dos filmes super impactantes que também foi referência no Kbela é o Alma no Olho, que mostra o corpo do homem negro, trazendo vários estereótipos, muito forte, falando de uma trajetória e sobrevivência. Não fala, mas fala com o corpo. Ele dirige, atua. Têm a música do John Contrane que é incrível e acredito que tenha sido construída para fazer trilha. É um filme dos anos 70 que é completamente atual. É um homem visionário, não só em filmes que dirigiu, mas nos que atua também, que faz papel de negros alienados em uma sociedade escravocrata. É uma lenda maravilhosa, o Zózimo e sua obra. É essencial para nós, artistas. É um privilégio poder conhecer a obra dele e poder resgatá-la sempre que necessário e sempre que temos vontade.
 

Edição: Aline Carrijo