colaboração internacional

Como funciona o trabalho de organismos de ajuda humanitária na Venezuela

ONGs internacionais nunca deixaram de atuar no país; Maduro aumentou planos de cooperação com ONU e Cruz Vermelha

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Jornada de Saúde Comunitária da Cruz Vernelha na comunidade Santa Rosa, em Caracas. Organização mantém 2,5 mil colaboradores venezuelanos
Jornada de Saúde Comunitária da Cruz Vernelha na comunidade Santa Rosa, em Caracas. Organização mantém 2,5 mil colaboradores venezuelanos - Foto: Michele de Mello

A visita da Alta Comissária da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet à Venezuela levantou novamente o debate sobre uma suposta crise humanitária no país. A ex-presidenta do Chile esteve em Caracas para verificar denúncias de violações dos direitos humanos, apontadas no informe realizado em 2018 por um grupo de Oragnizações Não Governamentais (ONGs) acreditadas pela ONU. Bachelet também teve como missão supervisionar a garantia de direitos universais, como acesso à alimentação, saúde e educação.

De acordo com o censo de 2011 do Instituto Nacional de Estadística da Venezuela (INE), nos primeiros dez anos desse século, 113 mil pessoas saíram da situação de miséria. No entanto, existem 482 mil venezuelanos em situação de pobreza extrema, sendo no estado Zulia, fronteira norte com a Colômbia, a maior concentração de pessoas nessa condição, 94,5 mil homens e mulheres.

A conclusão da viagem de Bachelet pode definir se a Venezuela precisa ou não de mais ajuda humanitária. O tema veio à tona sobretudo após a repercussão do dia 23 de fevereiro, com o Venezuela Aid Live, organizado por grupos opositores, apoiados pelos Estados Unidos e outros governos aliados na região, como de Jair Bolsonaro (PSL), parar forçar a entrada de caminhões com suposto material humanitário.

Boa parte desse episódio acabou sendo desmascarado em investigações posteriores. Primeiro, imagens de um dos caminhões queimados na fronteira da Venezuela com a Colômbia mostraram que o seu conteúdo não passava de cornetas, máscaras anti gás e outros equipamentos de proteção para protestos.

Mais recentemente, o portal espanhol PanAmPost divulgou denúncias de que os encarregados, nomeados pelo líder opositor Juan Guaidó, para administrar a verba enviada para ajuda humanitária pelos governo estadunidense e colombiano estavam desviando o dinheiro em festas e hospedagens luxuosas.

No entanto, existem organismos reconhecidos internacionalmente e autorizados pelo governo que prestam, há décadas, ajuda humanitária no país. É o que o Brasil de Fato mostra nesta reportagem especial, explicando o trabalho de três organizações mundialmente conhecidas e com atuação consolidada em território venezuelano, movimentando milhares de colaboradores e milhões de dólares:

Alto Comissionado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR)

Como o nome já sugere, está focado em atender refugiados ou pessoas que pedem asilo. Na Venezuela, além de operar em Caracas, tem escritórios em Bolívar -- na fronteira com Brasil --, e em Apure, Táchira e Zulia, estados fronteiriços com a Colômbia.  

Este último é o país com maior fluxo de pessoas e quantidade de refugiados vivendo em território venezuelano. Os colombianos são cerca de 95% dos 200 mil que chegaram à Venezuela na última década.

A agência da ONU trabalha em conjunto com o Conselho Nacional de Refugiados (CONARE), vinculado ao Ministério de Relações Exteriores, e responsável por acreditar o título de refugiado aos migrantes.

Com um orçamento de US$ 12,9 milhões de (cerca de R$51,6 milhões) para 2019, o organismo estima que consegue atender cerca de 270 mil pessoas. Isso num universo de 8,4 mil refugiados e 117.653 pessoas em situação de refúgio, dados INE de 2011.

A ACNUR tem 79 pessoas trabalhando em 54 comunidades, sendo 78% do pessoal composto por venezuelanos.

Segundo a entidade, atualmente o fluxo entre Venezuela e Colômbia é de 4 milhões de pessoas -- cifra contestada pelo governo bolivariano, que afirma se tratar de uma super estimação com fins políticos.

Mensalmente, de acordo com a ACNUR, são realizadas 120 atividades em oito estados venezuelanos. O trabalho é dividido em três eixos: comunidade, refugiados e solicitantes de asilo.

Nas comunidades, a equipe internacional oferece assessoria para a criação de atividades econômicas que gerem sustentabilidade para os grupos de refugiados. "Nosso foco é a proteção com enfoque humanitário. Centramo-nos em comunidades com maior concentração de pessoas em situação de refúgio ou asilo, mas beneficiando de igual maneira a localidade de acolhida", afirma o encarregado e comunicação e produção dos informes da ACNUR, Luca Nicosia.

As ações vão desde oficinas de educação sexual até instalação de lâmpadas em hospitais públicos com problemas estruturais.

Em San Cristóbal, cidade na região andina e fronteiriça com a Colômbia, a organização instalou dois tanques de armazenamento de água potável e distribuiu produtos para purificação da água na comunidade "Minha Pequena Barinas".

Já em Ciudad Guayana, estado Bolívar, na fronteira com Roraima, as subsedes venezuelana e brasileira buscam atender cerca de mil índios da etnia Penom, que pediram refúgio no dia 23 de fevereiro, depois de conflitos gerados por grupos opositores, no episódio da entrada forçada de ajuda humanitária na Venezuela.

Para Nicosi, o principal desafio para ampliação do trabalho humanitário é o acesso às comunidades. "Muitas estão ilhadas, obstaculizadas por diversos fatores, às vezes políticos, por falta de segurança, e, mais recentemente, pela escassez de gasolina, pelos apagões e cortes nas telecomunicações", detalha.

Por conta do bloqueio econômico, faltam os principais solventes para produção da gasolina, já que as importações eram provenientes principalmente dos EUA e Brasil. O petróleo venezuelano é do tipo pesado, que necessita passar por vários processos de refino para gerar gasolina e diesel.

Além disso, desde os apagões provocados por um ataque cibernético ao sistema elétrico venezuelano em março, o país vive uma instabilidade no abastecimento elétrico nacional.


Saúde e saneamento são áreas prioritárias no trabalho da UNICEF na Venezuela | Foto: Divulgação

Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF)

Agência da ONU especializada na atenção a crianças, adolescentes e gestantes em situação de vulnerabilidade social. O organismo estima que existem 3,2 milhões de crianças venezuelanas que necessitam apoio na garantia de direitos básicos, como acesso à educação e saúde.

Também possui escritório em Caracas e nas zonas fronteiriças, nos estados Zulia, Táchira e Bolívar, com 90 colaboradores, mas com previsão de aumentar o grupo para 140 até o final de 2019. São assistentes sociais, advogados, psicólogos, engenheiros sanitaristas, entre outras especialidades. "Estamos crescendo bastante para dar as respostas que o país requer", afirma Rocio Ortega, chefa de comunicação da UNICEF Venezuela.

Com uma previsão orçamentária de US$ 32 milhões (cerca de R$128 milhões), a agência das Nações Unidas distribuiu cerca de 500 mil dólares (aproximadamente R$2 milhões) em suprimentos para suas quatro áreas de atuação: nutrição, educação, higiene e saneamento, proteção infanto-juvenil.

O trabalho conjunto com o Ministério de Saúde levou à distribuição de 9 milhões de doses de vacinas contra febre amarela, difteria e sarampo -- doenças com novos surtos registrados em todo o continente latinoamericano. Somente no primeiro semestre de 2018, foram computados 3.545 casos de infectados com sarampo, que ocasionaram 62 mortes na Venezuela.

Também nos primeiros seis meses do ano passado, a Organização Pan-americana de Saúde (OPS) confirmou 44 mortes por difteria no país. Doenças que já haviam sido erradicadas, mas pelas dificuldades para importar as vacinas com imposição de sanções pela administração do presidente estadunidense Donald Trump, em 2017, todas voltaram a surgir.

Em 2019, a UNICEF importou 57 toneladas de suprimentos médicos. A próxima campanha de vacinação iniciará em julho e oferecerá 3,8 milhões de doses contra a poliomielite.

Outro foco organização é o trabalho contra a evasão escolar. Nos primeiros meses de 2019, foram doados 50 mil kits com material escolar, além do treinamento para professores em 25 escolas.

 


Atividade da Unicef em escola venezuelana | Foto: Divulgação


Para gestantes e recém nascidos, o fundo das Nações Unidas oferece complementação alimentar. Esse ano, a meta é chegar a 250 mil mulheres. Também há atividades de treinamento para profissionais da saúde em hospitais de três regiões do país. Só em abril foram 240 especialistas treinados em unidades de San Cristobal, estado Táchira e Maracaibo, capital de Zulia.

"Trabalhamos fortalecendo as capacidades nacionais. Venezuela é um país que tem uma infraestrutura que se bem não está funcionando 100%, está aí, é uma questão de investimento", complementa a diretora da UNICEF.

Por isso, desde o início do ano, o organismo instalou geradores em hospitais públicos para evitar desabastecimento em momentos de falhas elétricas. Também pretende oferecer acesso à água potável a 341 mil pessoas.

Segundo Ortega, o financiamento é uma das maiores travas, já que o organismo depende da doação de distintos entes públicos e privados."A cifra em si é um desafio. São 3,2 milhões de crianças com algum tipo de necessidade. Além das próprias dificuldades do país, vivemos o mesmo que vive todo o país. Se não há luz não podemos transladar-nos, não podemos levamos insumos, sofremos o mesmo que os demais venezuelanos, em termos de infra estrutura", afirma.

A UNICEF destaca a boa cooperação com o governo e a discordância de que exista uma crise humanitária no país. "É uma crise econômica que reflete no aspecto humanitário. Nós como fundo humanitário estamos aqui apoiando com esse suporte para as crianças do país”, informa a funcionária.

O trabalho de todas as agências da ONU que atuam na Venezuela deverá ser revisado em 2020, quando finalize a vigência do atual plano de atividades, pactuado no início do ano entre o presidente Nicolás Maduro e o coordenador residente da ONU na Venezuela, Peter Grohmann.

Cruz Vermelha


Diferente dos outros organismos, que são braços das Nações Unidas, a Cruz Vermelha é uma entidade criada em 1859, na Suíça, para atender às vítimas de guerra.

Com o tempo seu trabalho foi ampliado para atender também situações de emergência social e humanitária. O grupo que reside na Venezuela também é responsável por atender demandas de Aruba, Bonaire, Curaçao e Trindade e Tobago, no caribe centro-americano.

Em março, a Cruz Vermelha duplicou seu orçamento para projetos na Venezuela, chegando a US$ 19 milhões (cerca de R$76 milhões) e 2500 colaboradores, todos venezuelanos. Prestam atendimento psicossocial, além de serviços de saúde e saneamento.

“Os voluntários vivem as mesmas dificuldades que vive a sociedade venezuelana, algo que vemos como uma fortaleza, como todos passam pelas mesmas vulnerabilidades e logo são preparados para prestar nosso serviço às comunidades”, assegura Luís Farias, encarregado de comunicação da Cruz Vermelha venezuelana.

A organização gere oito hospitais e 33 ambulatórios em todo o território nacional, que atendem desde medicina da família até cirurgias de traumatologia.

Apesar de ter suas próprias estruturas, em 16 de abril, a Cruz Vermelha enviou 14 geradores elétricos para hospitais públicos venezuelanos e kits médicos para 10 mil cidadãos. E em 17 de junho chegou um novo carregamento de 27 toneladas de medicamentos que serão distribuídos gratuitamente.


Cruz Vermelha tem mais de 2,5 mil colaboradores atuando na Venezuela, todos venezuelanos | Foto: Michele de Mello

“Saúde é nossa prioridade número um nesse momento. O mais importante é que nosso pessoal está capacitado não só para prestar atendimento em nossos centros de saúde, mas para fazer o contato com as comunidades que cumprem com nossos requisitos de vulnerabilidade e oferecer atenção em Jornadas Comunitárias de Saúde”, conta Farias.

Cada atividade atende cerca de 300 pessoas, com medição de sinais vitais, entrega de medicamentos, consultas médicas e indicação de acompanhamento gratuito para casos mais complexos, como de hipertensão, em hospitais da Cruz Vermelha.

Fatores como dificuldade de acesso à água ou de manutenção de atividade de subsistência são levados em conta na hora de definir quais localidades receberão ajuda da Cruz Vermelha. “Existem comunidades pesqueiras, por exemplo, que pela seca ou por muitos outros fatores não podem pescar, então aí buscamos meios para gerar diversificação da atividade econômica. As vulnerabilidades são distintas em cada projeto”, complementa Farias.

Por ter como lema a imparcialidade e neutralidade, a Cruz Vermelha precisa de autorização do governo local para trabalhar e atua em cooperação com o Estado, mas não se nega a dialogar com setores da oposição. “É importante inclusive para garantir a segurança do nosso pessoal”, atenta o colaborador da CV, Luís Farias.

No entanto, também no episódio do dia 23 de fevereiro, o organismo condenou o uso político da ajuda humanitária por parte da oposição, assim como o uso não autorizado de roupas com símbolo da Cruz Vermelha nas atividades realizadas, no lado colombiano e brasileiro pelos militantes de partidos opositores venezuelanos.

Enquanto por um lado, os meios hegemônicos de comunicação tratam de criar uma imagem de que a Venezuela vive uma crise generalizada e que as autoridades se negam a receber ajuda, por outro, há uma série de organismos oficiais prestando apoio há décadas e um governo que insiste em atrair mais ajuda para superar o bloqueio econômico.

Edição: Rodrigo Chagas