Ideologia

Artigo | Notas sobre o comunismo do Brasil

O anticomunismo é uma força impressionante e se reveste de outras mascaras para disputar a sociedade

Brasil de Fato | São Paulo (SP)* |
João Goulart era chamado de comunista por propor uma reforma agrária, assim como as reformas de base, todas dentro dos marcos do capitalismo, e foi derrubado por um golpe de estado - Arquivo Nacional / Correio da Manhã / EBC

Em meio a uma pandemia terrível, um texto sobre o comunismo pode parecer extravagante. E esse texto poderia ter sido escrito por qualquer pessoa nas últimas dez décadas somente alterando alguns fatos e citações. Sobre a possível inoportunidade do tema, quem mais fala da “ameaça comunista” são os setores conservadores.

E não só não arrefeceu nesses tempos de pandemia, como piorou. É caricato, mas merece nossa atenção e isso motivou esse artigo.

O anticomunismo é uma força impressionante e se reveste de outras máscaras para disputar a sociedade. Do temor da ameaça comunista ao extremo de tratar quase tudo vindo do povo como parte dessa ameaça maior.

Não é despropositado que o comunismo seja um tema recorrente nas redes sociais. Sem novidades por aqui já que desde a vitória do povo russo naquele outubro - em 25 de outubro do calendário Juliano ou no dia 07 de novembro de 1917 o povo russo, liderado pelos bolcheviques, tomou o poder na primeira revolução chamada de comunista da história - o tema é assunto nas rodas, bares, missas, cultos e na mesa posta da família brasileira. E como no passado corre solto nesses tempos.

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O pavor dos despossuídos

O Brasil “não é para principiantes”, a frase atribuída ao maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, ou simplesmente Tom Jobim, permanece atual.

Um país resultado de um negócio moderno, que dizimou povos autóctones, destruiu a economia natural, transplantou escravizados em massa para tirar-lhes tudo, em suma uma colônia, que pra fazer-se destruiu o que por aqui havia e as mãos do trabalho sempre foram usadas até o esgotamento. Em uma síntese genial o mestre Darcy Ribeiro chamou essa história de “moinho de gastar gente”.

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Um colonialismo brutal e “gastador” de gentes, especialmente indígenas e africanos escravizados, por aqui não se construiu uma nação soberana. As classes dominantes por essas terras assumiram o projeto do colonizador, posteriormente do imperialismo inglês e no último século o imperialismo dos EUA.

E esse quadro dramático tem uma síntese: o Brasil é uma nau à deriva, sem projeto para o conjunto que não seja apenas nascer, se reproduzir, trabalhar muito e morrer.

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Uma classe dominante subalterna, formada para ser dirigente de um negócio violento e que assumiu essa condição colonial na sua “utopia”, resumida a ser uma sócia minoritária das classes dominantes dos EUA e Europa Ocidental.

Para isso precisa sufocar qualquer risco vindo das classes em buscarem enfrentar os problemas causados por essa história e escolha. Sufocar com violência real e simbólica, com uma máquina de convencimento absolutamente intolerante, tudo para garantir seu projeto de contornos antinacional, antipopular e antidemocrático sempre foi um desafio.

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Por aqui toda forma do povo se organizar e lutar foi transformada em ações contra o rei, contra o império, como uma ameaça à jovem República e desde primórdios do século passado se resumiu a ser a terrível ameaça comunista.

A exceção dessa regra é a margem de ação social chamada de caridade. Afora isso, toda ação do povo, de um simples mutirão, uma greve, uma passeata e ato de rua, uma barba por fazer, um lenço ou bandeira vermelha são tratados como parte da ameaça comunista. Ações de absoluta luta pela sobrevivência não passaram em vão também.

A depender da historiografia que se utilizar, é possível afirmar que o Brasil está sob ameaça do comunismo desde sempre.

Indígenas querendo uma terra livre (de mercado e do poder de estado); escravizados sequestrados na África e nascidos aqui lutando pelo fim da escravidão e do escravismo como uma ameaça terrível; desempregados, sem terra, sem teto, direito ao voto, igualdade de gênero e luta por necessidade básicas da vida dentro do capitalismo passaram a ser parte da grande comunista.

As bandeiras de luta mais singelas ou até feitos da burguesia pelo mundo como a reforma agrária e o direito de trabalhar com regulação por aqui se convertem em ameaças terríveis. Isso não é uma deformação nacional, uma esquisitice, uma perversão ou algo assemelhado.

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Isso é o resultado de uma formação econômica colonial e subalterna e, como já nos legou Celso Furtado há mais de 70 anos, essa condição não é uma etapa no desenvolvimento nacional, mas uma condição que tende a perpetuar-se. E assim sabemos, a duras penas, que Furtado estava correto.

É de Dom Helder a melhor síntese dessa história: “Se dou pão aos pobres, todos me chamam de santo. Se mostro por que os pobres não têm pão, me chamam de comunista e subversivo”.

A ameaça comunista que nunca existiu

A fórmula adotada pelas classes dominantes por aqui sempre foi muito eficiente e eficaz. A capacidade de controlar uma sociedade como a nossa, com tamanhas contradições, por tantos séculos, é um feito terrível e incrível.

Obviamente que não se trata da capacidade de resolver os problemas sociais, econômicos e nacionais, mas sim de perpetuá-los mantendo as classes populares sem voz, sem vez e sem configurar uma ameaça real. As maiorias.

Há nessas histórias uma diversidade de estratégicas, mas uma delas é presente durante todo o tempo: a violência como chave para compreender a dominação social. Ela não é apenas a reação diante da rebeldia popular, mas sim, e especialmente, de uma violência preventiva e antecipada.

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Ante os sinais mais singelos de rebeldia, a pronta resposta sempre foi desproporcional, pedagógica e com traços de crueldade.

As fugas dos indígenas e negros escravizados, os territórios de quilombos, a exemplo de Palmares, as lutas contra a Colônia, como Tiradentes, contra o Império, na República, como Belo Monte (a repressão chamou de Canudos) e Contestado e as lutas pelo direito ao voto, a terra, ao trabalho, a igualdade elementar entre homens e mulheres, contra o racismo, outras formas de discriminação, assim como o direito a educação, saúde, moradia, cultura, tudo foi tratado como ameaças terríveis, e, como regra, massacradas. Literal e efetivamente.

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O momento de destaque para essa verdadeira paranoia foi a justificativa para o Estado Novo, o famoso plano Cohen, que de plano e real não tinha nada, mas embalou os pesadelos de muita gente ante a uma ameaça comunista.

O PCB (Partido Comunista Brasileiro) foi cassado por ser uma organização do comunismo mundial e representante maior dessa ameaça. O governo do Getúlio, que havia aprovado a CLT para regular a relação capital e trabalho, nos marcos do capitalismo, foi tratado quase como um revolucionário.

Quando construiu as empresas estatais dos setores estratégicos, o mesmo caminho trilhado pelos países centrais, também sofreu acusações de intervencionista Estatal, sinônimo de comunismo. A carta testamento é um registro histórico das pressões que sofreu desse Brasil.

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Juscelino foi atacado durante todo o governo, mesmo tendo sido responsável por representar interesses importantes do mercado, especialmente com o setor automobilístico, e fora atacado o tempo todo como um intervencionista e corrupto. A corrupção é um dos temas centrais dessa turma.

Os anos seguintes com João Goulart foram de mais surrealismo. O gaúcho era chamado de comunista por propor uma reforma agrária nas cercanias de estradas federais, nos moldes do que os países chamados de desenvolvidos fizeram com muito mais efetividade, assim como as reformas de base, todas dentro dos marcos do capitalismo, e foi derrubado por um golpe de estado, uma contra revolução preventiva, antecipada, ansiosa e violenta.

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O movimento sindical dos anos 1970 com a figura do Lula não passou incólume. Taxados de uma ameaça, mesmo sendo de um movimento direcionado para pressionar e negociar com o mercado e não para destruí-lo. A campanha eleitoral de 1989 o medo do comunismo foi um dos eixos de combate.

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Os anos 1990, com a queda do chamado “socialismo real” essa “ameaça” não arrefeceu. Nas eleições de 2002 um dos momentos simbólicos foi o vídeo da Regina Duarte com a mensagem “tenho medo”. Medo da esquerda e do comunismo. Mesmo com um industrial como candidato a vice, carta aos brasileiros, etc.

Os anos recentes de governos progressistas do Lula e Dilma, programas como Bolsa Família, leis trabalhistas para a vergonhosa situação das empregadas domésticas, cotas para negros e pobres na universidade, um setor que não se via nesses espaços, incentivo à agricultura familiar e outros foram tratados como projetos comunistas em pleno curso.

O anticomunismo: anti-petismo, anti-América Latina e anti-medidas contra a covid-19

Os governos liderados pelo PT foram tratados como uma experiencia de comunismo no Brasil, algo digno de uma grande risadaria. A votação do impeachment na Câmara é um exemplo também disso. Um exemplo foi o projeto para dar maior organização dos Conselhos Sociais consultivos do Estado e foi tratado como ameaça bolchevique e bolivariana.

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Nesses anos de governo o anticomunismo se alojou no anti-petismo, ainda que uma pequena dimensão dele não seja anticomunista.

As crises – sociais e também as pessoais – são reveladoras do que há de melhor e pior em nós. A crise resultado da pandemia generalizou a discussão sobre proteção social, o quadro de desamparo de milhões, a necessidade de rever (por parte dos neoliberais) o papel do estado, nossa falta de soberania com a produção de medicamentos e insumos para a área, dentre muitos outros.

O que gostaríamos de chamar a atenção é para o quanto essa pandemia foi reveladora: solidariedade, iniciativas de cuidado, proteção e preservação da vida, iniciativas de quem pouco pode “dar”, mas estava ali ajudando, demonstram que somos um povo solidário e com muitos potenciais de ações comunitárias e sociais.

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Há uma beleza nessas ações, um encantamento, uma esperança. O Brasil pode ser outro com esse tipo de energia, hoje confinada na solidariedade, tão necessária, bonita e estratégica sempre, mas nessa crise adquiriu contornos de grande esperança.

Mas não só. A pandemia também ajudou a ver melhor a mesquinhez, pequenez, individualismo e indiferença. Para uma parte do Brasil a pandemia é apenas ter que passar mais tempo nas “casas grandes”, entre a TV, um pouco de trabalho, algum tempo para as redes, e essa turma trata os problemas de forma naturalizada.

Para esse setor temos que debater a pandemia considerando nossas dívidas históricas e problemas de séculos como características nacionais. O imenso volume de desempregados, subempregados, pejotizados, sem terra, sem teto, pessoas em situação de rua, e outros são uma situação brasileira. Esse quadro foi tratado no artigo anterior.

Entre as ações populares contra o impacto da covid-19 e as propostas dos setores progressistas para que o povo sobreviva, o debate na direita mesquinha tratou tudo como ameaça do avanço do comunismo. Aliás, é tão elástico esse enquadramento como comunista que a lista ganha novos integrantes a cada dia.

A loucura do anticomunismo não é condicionada a qualquer relação com a realidade. Quase sempre é com base na imaginação e em teorias da conspiração. Essa turma vê o comunismo a cada esquina. E isso, que aparenta ser uma paranoia, é mais complexo.

O movimento de denunciar conspirações internacionais, ameaças à vida, à família e à paz (ameaçar a propriedade privada é um acinte, já que a ampla maioria dos brasileiros não a tem) é forte.

O uso desse expediente para alimentar o medo resulta funcional, pois o medo é absolutamente útil para justificar ações de exceção (violência real e simbólica), ajuda a manter os grupos fanáticos mobilizados e cumpre uma função também no debate público diante de desastres, ameaças, crises, riscos, etc.

Diante de qualquer coisa vem logo o discurso para atiçar o time de malucos como se estivéssemos sob uma ameaça real.

A referida coerência com a violência sempre presente tem outro aspecto. A luta ideológica sempre foi um ponto forte dos setores conservadores e das classes dominantes.

Há uma discussão séria desde a afirmação de Marx de que as ideias dominantes são sempre as ideias das classes dominantes, essas ideias são difundidas sobretudo nas formas de viver: no cotidiano, no trabalho, nas relações dentre outros e também pelos instrumentos de disputa ideológica – escola, imprensa, judiciário, legislativo.

No campo das ideias o capitalismo do Brasil combinou sempre duas ideias força: o Brasil é o país do futuro, para alimentar a esperança de um futuro que nunca chegou, e de que precisamos enfrentar a ameaça comunista.

O país do futuro é uma eterna promessa não cumprida, que a cada geração fica alimentando como um porvir que nunca chega. Já a ameça comunista, como não é real e nunca foi, para alimentar o medo foi e segue sendo necessário lidar com a realidade paralela criada por essa turma.

Se não há ameaça real, vamos para a ficção. É o lema. Por isso é que todo santo dia tem gente falando das intenções dos comunistas de tomarem o poder.

Esse tema não é para desdenhar do problema do anticomunismo, ou tratar como paranoia. É um método de disputa ideológica de mais de 100 anos. A maior parte do nosso povo tem referências negativas sobre revolução, comunismo, socialismo, luta social e esquerda.

Isso é a expressão de uma hegemonia ideológica inédita na nossa história, a uma capacidade de construir um conjunto de teorias e manipulação histórica para causar temor em quem nada tem a perder com essas lutas. Mas, parafraseando Marx, só a perder os seus grilhões e um mundo a ganhar.

*Ronaldo Pagotto é advogado trabalhista e integrante da Consulta Popular

Edição: Leandro Melito