Rotina

Dia do Orgulho Autista: o desafio das mudanças na rotina durante a quarentena

Com a pandemia, famílias tiveram que se adaptar aos cuidados para manter a saúde dos seus parentes

Brasil de Fato | Belém (PA) |
Bruna Guerreiro, mãe de Carlos, de 6 anos, relata que dificuldades surgiram com a volta às aulas: "ele começou a rejeitar as atividades em casa, falou que queria ir para escola" - Bruna Guerreiro/Arquivo Pessoal

Eliane Quaresma, 57 anos, é mãe do Lucas Quaresma, que amanhã completa 27 anos. Lucas tem autismo e publica quadrinhos. Com a pandemia, a rotina do Lucas, que inclui acompanhamento com psicólogo, terapeuta ocupacional e fonoaudióloga, mudou. E não apenas a dele, mas a de todos os autistas que precisam passar pelo isolamento social.

Algumas das coisas que Lucas mais gosta de fazer são desenhar e ir ao cinema. Com a pandemia, apenas a rotina de desenho se manteve. A mãe conta que foi preciso recorrer à tecnologia, por meio de videochamadas, para manter outras atividades.


Eliane Quaresma, 57 anos e o filho Lucas Quaresma. Lucas tem autismo e publica quadrinhos.  Eliane Quaresma/Arquivo Pessoal

Desde que foi diagnosticado, aos três anos, a mãe mantém uma rotina de cuidados junto ao filho, que frequentou a escola e cursou universidade. A entrevista foi feita com Eliane porque Lucas verbaliza pouco. Sua forma de expressão são, de fato, os desenhos.

"O Lucas estudou, apesar do autismo severo, mas com o tratamento que nós conseguimos fazer com ele, através de estimulação pelo método Gleen Doman, ele continua se desenvolver e participar da vida acadêmica, naquela época era bem mais complexo, menos pessoas especializadas, menos condições de interação dessas especialidades também", conta ela. 

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A escritora paraense Bruna Guerreiro, mãe do Carlos, de 6 anos, conta que o filho autista a surpreendeu e está reagindo ao isolamento melhor do que imaginava. 

"Ele está há três meses isolado em casa. Nesse período todo ele só saiu uma vez para ir à casa dos avós e isso foi esta semana. Ou seja, quase três meses sem sair de casa para nada – e no meio desse período, completou 6 anos, com festinha em casa, só nós três. Ele só veio a ficar mais estressado agora já neste terceiro mês", conta ela. 

Ele não estava preparado para que as aulas retornassem ainda nesse formato. Começou a rejeitar as atividades em casa, falou que queria ir para escola.

Bruna diz que durante as primeiras semanas de isolamento, a rotina foi mais tranquila, porque o volume de aulas virtuais não era grande, mas agora em junho em decorrência da volta às aulas, o volume de atividades estressou a criança.

"Acho que ele não estava preparado para que as aulas retornassem ainda nesse formato. Começou a rejeitar as atividades em casa, falou que queria ir para escola. Além disso, a escola tinha se organizado melhor, ou seja, tinha mais atividade. Em vídeo e online", pondera.

"Para ele, o vídeo é legal, mas o online é difícil demais. As outras crianças online, o barulho de muitas vozes ao mesmo tempo, a instabilidade da conexão, o vídeo que trava, várias telas ao mesmo tempo. No primeiro dia ele ficou feliz de ver os amigos, mas hoje em dia já é sofrido. Da última vez, quando ele pediu pra sair, eu simplesmente deixei. Procuro recompensá-lo quando ele identifica com maturidade o que o incomoda", explica a mãe.

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A importância da rotina

A psicóloga Cláudia Nogueira, trabalha com pessoas autistas há mais de dez anos, sobretudo, crianças. Ela atua na área de neurodesenvolvimento e também junto a pessoas com paralisia cerebral. Nogueira avalia que a quarentena impôs a necessidade de se reinventar.

As pessoas com autismo, muitas vezes, estão acostumados a uma rotina e essa quebra não necessariamente é fácil.

"Pessoas que estavam acostumadas a frequentar a escola, um centro de tratamento de prevenção, terapia tiveram o dia a dia modificado. Então, desse ponto de vista para a pessoa com autismo – e eu convivo muito com famílias com crianças com autismo –, agora têm de permanecer em casa, em um espaço limitado, e não necessariamente com todos os acessos aos recursos que estão acostumados. Isso impõe a necessidade de se reinventar. As pessoas com autismo, muitas vezes, estão acostumados a uma rotina e essa quebra não necessariamente é fácil", diz ela. 

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Apesar disso, a psicóloga afirma que com base na experiência que teve nos últimos três meses com as famílias com as quais interage, a habilidade de adaptação foi surpreendente. Entretanto, há pessoas que tiveram grandes dificuldades. 

"O meu nervosismo, a minha apreensão no início desse processo é que fosse ainda mais difícil do que tem sido. O que eu tenho visto é uma resiliência grande das famílias. Um esforço grande por parte dos pais e muitas crianças conseguindo se adaptar. Muitas vezes foi sugerido inicialmente o atendimento online com treinamento parental. Esse tipo de intervenção ajuda parte das famílias, é um recurso que a gente lançou mão com utilidade, porém não resolve as necessidades de todos", explica a especialista.

A minha apreensão no início desse processo é que fosse ainda mais difícil do que tem sido.

"Outras famílias, por exemplo, a gente achou necessário intervenção domiciliar e algumas crianças tiveram profissionais indo à casa, considerando todo um balanço de risco/benefícios para manter o desenvolvimento e o bem estar da criança", completa ela.

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O que é o autismo?

O dia 18 de junho foi instituído como Dia do Orgulho Autista para informar a sociedade sobre as características das pessoas diagnosticadas com algum grau do Transtorno do Espectro Autista (TEA). A data busca evidenciar que o autismo não se trata de uma doença. 

Segundo a psicóloga Cláudia Nogueira ainda não há uma causa determinada para o autismo, mas uma das principais apontadas por estudos é a genética.

"Não tem a identificação de um gene específico que causa o autismo, mas hoje em dia já se encontra uma diferença em um conjunto de genes relacionados ao autismo. As pessoas com autismo têm diferenças genéticas, mas essas diferenças variam entre as pessoas com autismo. Ou seja, nem todo mundo com autismo têm o mesmo perfil".

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Ela explica que, com o passar dos anos, foram utilizadas diversas denominações. Atualmente, utiliza-se Transtorno do Espectro Autista com níveis diferentes de comprometimento. Isso significa dizer que a pessoa é analisada com base na sua capacidade de desenvolver ou não desenvolver habilidades verbais, o quanto consegue ter uma sociabilidade independente e de quanto suporte ela necessita. 

Nem todo mundo com autismo têm o mesmo perfil.

Nogueira destaca que houveram mudanças nas abordagens científicas sobre a o autismo e que há uma frequência cada vez maior de diagnósticos. A psicóloga cita um dado de 2016 do Centro de Controle de Doenças e Prevenção do governo dos EUA que estima que 1 a cada 54 crianças no país tinham diagnóstico de autismo.

"Eu me lembro na faculdade, década de 1980, 1990. Quando estudei sobre autismo pela primeira vez. Lembro claramente do professor dizendo: – É uma condição rara. Vocês provavelmente não encontrarão isso na clínica de vocês e se encontrarem será um caso ou outro."

Edição: Rodrigo Chagas