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Os 30 anos do ECA: mais do que celebrar, discutir criticamente nossos rumos

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É possível sonhar e lutar para que o ECA seja cumprido e que haja melhores condições de vida às crianças e adolescentes no Brasil. - Tomaz Silva / Fotos Públicas
O que queremos é que crianças e adolescentes sejam assumidas como prioridade do Estado Democrático

Por Assis da Costa Oliveira*

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O Estatuto da Criança e do Adolescente, ou simplesmente ECA, como é mais conhecida a Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, chega ao trigésimo aniversário de existência.

Simbolicamente, podemos dizer, alcançou a fase adulta, ultrapassando os 29 anos que ainda mantinha na juventude, como é legalmente definido.

Mas a relação simbólica é menos para apontar um sentido de madurez, do que avaliar a contemporaneidade da implantação deste documento jurídico e das políticas públicas relacionadas às crianças e adolescentes, além de projetar as tendências para o futuro.

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Não custa lembrar do contexto histórico de elaboração do ECA, pois ele se insere num duplo movimento social e institucional de, ao mesmo tempo, romper com as dicotomias jurídicas entre o menor e a criança que fundamentavam a doutrina da situação irregular, e, com isso, anunciar uma filosofia distinta de tratamento de crianças e adolescentes, pautada nos preceitos da proteção integral, da prioridade absoluta e da corresponsabilidade entre Estado, família e sociedade, assim como de inovação institucional, com o surgimento dos conselhos tutelares e de direitos. 

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Mas o discurso do antes e depois, ou da mudança de paradigma nos direitos de crianças e adolescentes – da chamada doutrina da situação irregular para a doutrina da proteção integral – não revela toda a complexidade que há neste campo e nas interpenetrações que, na prática, é feito entre a ideia de criança como menor (ou sujeito-problema) e como sujeito de direitos, esta última própria do novo paradigma. 

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É por isso que precisamos, cada vez mais, celebrar o avanço jurídico trazido pelo ECA, assim como pela Constituição Federal e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, e também identificar e problematizar as contradições sociais, institucionais e normativas desencadeadas com o uso ou não deste repertório jurídico. 

Em outro artigo que escrevi em alusão ao dia 18 de maio (dia nacional de combate ao abuso e à exploração sexual contra crianças e adolescentes), fiz referência à presença cada vez maior de uma onda conservadora na aplicação/interpretação dos direitos de crianças e adolescentes e de ocupação dos serviços da rede de proteção.

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Com isso, tornou-se plenamente possível usar do repertório jurídico do ECA para justificar a adoção de três tipos de medidas: punitivista, especialmente em relação aos corpos de adolescentes negros e negras, com a intensificação da aplicação de medidas de internação e do extermínio sumário pela polícia; discriminatória, em que se uso da lógica universalista do “ser criança” ou do “ser adolescente”, quase sempre reproduzido no texto normativo do ECA, para interditar ou disciplinar a diversidade étnica, racial, sexual, de gênero, religião, classe, entre outros marcadores, que constituem as infâncias e adolescentes (existentes no plural), e que, por isso mesmo, padece de inúmeras adversidades, cada vez mais apoiadas por discursos de pessoas ligadas à concepção ideológica da extrema direita, a começar pelo atual presidente da República; e, o terceiro, de tutelar, aqui, fundamentalmente, pautado “na desconsideração à opinião, participação e mobilização social de crianças e adolescentes, cada vez mais atuando um discurso de criminalização das ações sociais promovidas por grupos organizados de crianças e adolescentes”, como observei no artigo referido anteriormente. 

Assim, concordo inteiramente com Emílio García Mendez – aliás, celebrado como um dos “pais” do ECA e da internalização da proteção integral no Brasil – quando, numa live recente feita em alusão aos 30 anos do ECA, apontava a preocupação com o fato de nunca, como hoje, estarmos mais imersos numa valoração positiva da discricionariedade paternalista no uso dos direitos de crianças e adolescentes, e, como ele bem aponta, contra a qual se buscou confrontar e apontar o ECA e a doutrina da proteção integral como inovação disruptiva ao “velho” modelo.

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É este uso discricionário com viés paternalista ou, como aponta, com viés conservador, que precisa ser debatido em relação à contemporaneidade do ECA e da avaliação sobre seus rumos futuros. Primeiro, para apontar que sua presença dominante torna visível o paradoxo de que, em muitos casos, aplicamos o Estatuto da Criança e do Adolescente com lentes (ou ideologias) menoristas e adultocêntricas.

E, segundo, que isto não é propriamente uma relação entre nós e eles – como se fossem sempre os reconhecidos por conservadores que aplicassem um viés conversador de uso do repertório jurídico – mas, fundamentalmente, ideias e ideários que circulam entre todos nós e do qual fazemos usos em determinados momentos, mesmo que não queiramos ou aceitemos que estamos usando, inclusive os chamados progressistas.

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Não quero parecer pessimista com esta análise, antes sim crítico e realista. É preciso lembrar que são 30 anos de vigência de um novo paradigma jurídico contra, pelo menos, três séculos de frutificação de um ideário moderno de infância de caráter universalista e disciplinador, surgido no exato momento em que emerge a infância moderna no século XVIII, em países europeus e depois ao redor do mundo.

Mas, até por isso, temos que continuar a lutar pela aplicação dos direitos de crianças e adolescentes alinhado à dimensão ética e jurídica do reconhecimento de tais pessoas como sujeitos de direitos em suas complexidades, diversidades e adversidades. 

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O que queremos, para o futuro, é que crianças e adolescentes sejam efetivamente assumidas como prioridades absolutas do Estado Democrático de Direito brasileiro. Não somente a primeira infância, como hoje se quer privilegiar no orçamento público federal e nas próprias ações do Executivo e do Legislativo nacional, mas de todas as crianças e adolescentes em suas diversas configurações sociais e identitárias, e que isto precisa estar refletido no ECA, tanto quanto ser protegido e promovido pro ele. 

Não nos resta outro caminho que não seja o de acreditar que é possível esta mudança, mas que ela é difícil e conflitante com diversos outros interesses políticos e econômicos, o maior deles, hoje em dia, da bancada da bala no Congresso Nacional e do próprio presidente da República, ambos defensores da redução da maioridade penal. Em todo caso, é possível sonhar e lutar para que o ECA seja cumprido e que haja melhores condições de vida às crianças e adolescentes no Brasil, e isto vinculado às lutas contra a desigualdade social, o patriarcado, o racismo e o adultocentrismo.

Professor de Direitos Humanos da Faculdade de Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará, Campus de Altamira. Doutor em Direito pela Universidade de Brasília. Coordenador do Grupo de Trabalho Direitos, Infâncias e Juventudes do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais. Advogado.

Edição: Leandro Melito