Contra a maré

Dia da Mulher Negra Latino-americana: seis histórias atuais que representam esta luta

No Pará, Maranhão, São Paulo, Venezuela e França: conheça seis depoimentos sobre o que é ser mulher negra

Belém (PA) | Brasil de Fato |

Ouça o áudio:

(da esquerda para a direita): Pamela Rocha, de Sorocaba (SP); Solcire Pérez, Caracas (Venezuela); Ruth Guichard, Bordeaux (França); Elionete Silva (MA); Thamires Vieira, Salvador (BA); Vanuza Cardoso, Ananindeua (PA). - Brasil de Fato

O cabelo, a cor da pele, o modo de se vestir. O início do preconceito vivido pela mulher preta é sentido, pela primeira vez, em sua maioria, na infância, momento em que muitas vezes não é possível se dar conta do racismo. Neste sábado (25) é celebrado o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. A data instituída pela Lei nº 12.987/2014 é uma forma de reconhecer a força dessa liderança quilombola, que resistiu à escravidão junto a comunidade negra e indígena por quase duas décadas.

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A luta das mulheres negras vêm de muito tempo. O Brasil de Fato ouviu seis mulheres pretas que, apesar de terem histórias de vida diferentes, têm coisas em comum, como a luta contra um preconceito que é combatido diariamente, a criminalização pela cor das suas peles e uma eterna a luta por igualdade de direitos.

Do Maranhão ao Pará

Elionete Silva é auxiliar de contabilidade e nasceu em Apicum-Açú, município localizado no estado do Maranhão. Aos 10 anos, ela sofreu o seu primeiro ataque racista. Naquele momento, ela sentiu tristeza, mas anos depois se deu conta de que era um mal estrutural da sociedade em que vive.

"Na época eu não entendi como racismo. Hoje eu compreendo. Eu estava na escola e falaram que meu cabelo não era bonito e eu tinha que alisá-lo. Isso no ensino fundamental e eu era apenas uma criança. Quando saí da escola senti como se eu tivesse a obrigação de alisar o cabelo para ficar igual às minhas coleguinhas", lembra. 

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Atualmente, Elionete mora em Belém e diz que os atos de racismo não são combatidos somente todo dia, mas a toda hora, porque as dificuldades vão desde entrar em uma loja e ser ignorado pelo atendente, até ser considerado suspeito de furtar algo pela cor da sua pele. 

Outro país, o mesmo preconceito

Do outro lado do mundo, Ruth Guichard, brasileira, administradora e cientista política, que mora há 3 anos em Bordeaux, na França, lembra que também vivenciou o racismo pela primeira vez na infância. 

Eu tinha tanta vergonha do meu cabelo que meu primeiro alisamento químico foi aos 11 anos e segui com esses processos até os 27

Ela conta que os comentários também eram relacionados com a sua aparência. Falavam tanto do seu cabelo que ela se sentia feia.

"Isso me fazia tão mal que gerou em mim uma imensa necessidade de mudar minha aparência. Eu tinha tanta vergonha do meu cabelo que meu primeiro alisamento químico foi aos 11 anos e segui com esses processos até os 27. Era como se eu procurasse ter outra identidade física. Percebi, apenas, que era racismo quando comecei a ler e ouvir palestras do movimento negro no período em que participei da pastoral da juventude", lembra. 

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Para ela, ser mulher negra em qualquer parte do mundo é muito desafiador e muitas vezes doloroso. "Eu sou negra de pele clara, hoje com cabelos de cachos mais soltos, então sou, digamos 'mais aceita', mas o racismo sempre está presente. Preciso constantemente estar atenta ao que visto para não ser sensual demais, cuidar da maquiagem para não ser vulgar demais", diz ela.

Para além do preconceito, Guichard diz que foi bastante criticada por casar com um homem branco. "Sou casada há nove anos. Quando eu o conheci, sofri diversas críticas. Por um lado, diziam que eu não poderia estar com ele porque era uma forma de branqueamento da minha descendência. De outro lado, falavam que ele só estava comigo porque 'esses estrangeiros gostam de mulheres como você'. Já no campo profissional nós, mulheres negras, precisamos estar atentas o tempo todo e nos esforçar muito mais do que as mulheres brancas para mostrar nossos valores e capacidade intelectual. Precisamos, inclusive, estar atentas para mostrar ou dizer tudo o que temos de importante porque não teremos uma segunda chance, se não aproveitarmos a primeira". 

O orgulho de ser quilombola

A lei que institui o dia 25 de Julho como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra homenageia uma liderança quilombola que viveu onde atualmente é o estado do Mato Grosso, durante o século XVIII. 

Tereza era companheira de José Piolho, um líder do Quilombo do Piolho também conhecido como Quariterê, localizado entre o Rio Guaporé e a cidade de Cuiabá (MT).
 
Depois que José Piolho foi assassinado, ela se tornou a rainha do quilombo — o maior que o estado do Mato Grosso já teve. Há quem diga que Tereza de Benguela cometeu suicídio depois de ser capturada por bandeirantes a mando do governo da então capitania, por volta de 1770. Outros dizem que ela foi assassinada e teve a cabeça exposta no centro do quilombo. Fato é: ela resistiu à escravidão por duas décadas. E sua história, até hoje.  

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No Pará, uma das coordenadoras da Associação de Moradores e Produtores de Abacatal e Aurá (AMPQUA), Vanuza Cardoso sabe bem o significado de resistir e sente orgulho de ser negra e quilombola. "É uma gratidão muito grande aos meus antepassados, aos meus ancestrais que resistiram muito para que hoje tenhamos um mínimo de liberdade, porque a gente não é livre, embora a pátria, o estado queria apresentar isso, a gente não é livre", afirma. 

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Assim como as outras mulheres citadas na reportagem, Vanuza também viveu o preconceito racial ainda na infância. Na época um professor que lecionava em sua comunidade a convidou para morar na casa da mãe dele. Ela aceitou, com a perspectiva de ter uma vida melhor, mas ao chegar ao local foi destinada a ser empregada doméstica da família e uma das suas funções, aos onze anos de idade, era acordar antes de todos e limpar um pátio cheio de fezes de cachorros. 

Diante daquela situação, certa vez, ela caiu em choro e foi confrontada pela filha da dona da casa que tinha a mesma idade que ela. "Ela disse que eu não poderia chorar, porque eu tinha ido ao local para fazer o que eles não queriam. Foi quando retornei para a minha comunidade".

Para Cardoso, que luta de diversas formas pelos direitos da sua comunidade, um sonho seria que a mulher negra fosse vista pela sociedade com os mesmos direitos e deveres que os outros. "Meu maior sonho é que a gente possa alcançar essa equidade", diz ela. 

Imagine um mundo sem a arrogância eurocêntrica

Pamela Rocha é professora de educação infantil e mora na cidade de Sorocaba, em São Paulo. Para ela, ser mulher negra é um processo de construção e desconstrução diários. Questionada se consegue visualizar uma sociedade sem racismo ela responde:

"Não consigo visualizar um mundo sem racismo, mas com um pouco de esforço seria um mundo com estruturas completamente diferentes, porque a sociedade é calcada no racismo. Não tem como dissociar sociedade de racismo: riquezas, pobrezas, comportamentos, pensamentos, ensinamentos todos foram calcados no racismo".

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"No mundo de sonho seria algo como as pessoas viverem e serem o que são com paz e tranquilidade, sem a audácia do outro, do branco, sem o eurocentrismo de querer ensinar. De achar que são melhores, das pessoas terem liberdade religiosa, estética, financeira, autonomia. Seria um mundo completamente diferente", resume.

Na arte também, nada feito

De todas as mulheres ouvidas, Thamires Vieira, diretora e produtora de cinema, que mora na periferia de Salvador, Bahia, foi a que vivenciou o racismo mais tardiamente. Segundo ela, isso pode ser justificado pelo fato de que sempre circulou em espaços onde negros são maioria: escolas e transporte públicos. Mas quando começou a cursar cinema na universidade, a situação mudou. 

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"A primeira vez que eu me vi sendo alvo de racismo, com certeza foi lá. Não sei necessariamente qual a hora ou o dia, mas começar a fazer parte de um círculo social e intelectual me permitiu sentir o racismo e entender como ele era bizarro", conta.

Dentro do seu universo de arte e audiovisual, ela pontua que é por vezes difícil desenvolver temas que não sejam a bandeira do movimento negro. Isso porque várias tomadas de decisões e processos de criação são feitos por brancos. É difícil se ver representada de verdade na arte.

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Ela sente e sabe que inúmeras possibilidades se perdem por conta do racismo seja de vida, de história, de poder, de escolha. 

"A gente tem conseguido se reinventar em muitas esferas, seja no empreendedorismo, na arte. Acho que hoje a gente já consegue ser dona de muita coisa da nossa própria história. Meu maior sonho como mulher negra é não precisar enfrentar violências tão grandes, principalmente estruturais. Esse seria meu sonho de libertação", diz ela.

E na Venezuela?

Solcire Pérez, professora de Letras na Universidad Central de Venezuela, desde pequena  enfrenta os preconceitos por seu tipo físico e traços afro venezuelanos. Ela acredita que é preciso lutar contra as marcas do racismo, porque é ainda na infância que as discriminações começam. 

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Ela conta que estudou em uma escola com muitos filhos de estrangeiros, italianos, portugueses e sempre falavam algo racista sobre ou para ela. Apesar de lidar com isso desde muito criança, ela diz que isso a fortaleceu sua identidade, seus traços, seu espírito indomável, rebelde e lutador. Apesar das dificuldades ela tem orgulho de ser mulher negra e diz que cotidianamente busca inspirar outras mulheres pretas a terem orgulho da sua história.

"Ser mulher negra para mim é uma celebração, porque estou em comunhão permanente com o que sou, de onde vim e para onde devo ir. Além disso é um compromisso, porque sinto que ser mulher negra hoje me coloca na tarefa de convidar outras mulheres negras a terem consciência de que ser uma mulher negra é uma fortaleza".

"Quando você se assume mulher negra, você está assumindo as suas tradições". 

Edição: Rodrigo Durão Coelho