ENTREVISTA

Como a manipulação da economia serve de arma eleitoral na Venezuela

A economista Pasqualina Curcio detalha mecanismos de "guerra econômica" contra o país e propõe reativar a produção

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Tentativas de desestabilização do governo bolivariano ocorrem por meio de manipulação cambial e inflacionária - Michele de Mello/Brasil de Fato

A flutuação de indicadores econômicos tem sido uma das características do cenário pré-eleitoral na Venezuela. Somente na última semana o valor do câmbio do bolívar soberano, moeda nacional venezuelana, para o dólar estadunidense subiu cerca de 20%. Esse seria um reflexo da chamada "guerra econômica" empreendida por agentes externos e internos.

Segundo especialistas, um dos principais mecanismos de desestabilização do governo de Nicolás Maduro é a  manipulação cambial. Para a economista venezuelana Pasqualina Curcio, a desvalorização do bolívar é a base para todas as outras medidas adotadas dentro da "guerra híbrida" empreendida pelos Estados Unidos e União Europeia contra a Venezuela.

Assim como o ingresso de moedas estrangeiras nos cofres públicos caiu 99% nos últimos quatro anos, segundo Curcio, o poder aquisitivo da classe trabalhadora venezuelana diminuiu igualmente 99%. Já a moeda nacional perdeu 866.567% do seu valor entre agosto de 2018 e setembro de 2020. Como resposta, os comerciantes aumentaram o preço dos produtos em 1.708.388%. 

Essas deformações na economia venezuelana, geradas pelo bloqueio imposto pelos Estados Unidos, são o objeto de estudo de Pasqualina Curcio, economista graduada pela Universidade Central da Venezuela (UCV), doutora em Ciência Política pela Universidade Simón Bolívar(USB) e autora de livros como "A mão invisível do mercado: guerra econômica na Venezuela", "Hiperinflação: arma imperial", "A economia venezuelana: mitos e verdades".

Faltando menos de um mês para as eleições legislativas, que serão realizadas no dia 6 de dezembro desse ano, e com a campanha eleitoral nas ruas, Pasqualina é uma das centenas de venezuelanas que atendeu ao chamado das alianças partidárias para propor novas políticas que deverão ser analisadas pelos próximos parlamentares.


"A única maneira de combater esses ataques é avançar para um sistema socialista", afirma economista venezuelana Pasqualina Curcio / Ultimas Noticias

Brasil de Fato: Você lançou a série "antologia econômica" com propostas direcionadas aos candidatos à Assembleia Nacional, entre elas está a criação de uma lei de orçamento em dólares. Qual a importância dessa legislação? 

Pasqualina Curcio: A proposta é a criação de uma lei orgânica de gastos e ingressos em moedas estrangeiras, porque já temos uma lei de orçamento anual em bolívares. Queremos fazer esse exerício que já fazemos em bolívares, agora em moedas estrangeiras.

Dessa forma, a Assembleia Nacional deveria aprovar o orçamento e o uso dessas moedas estrangeiras. Além da guerra econômica contra a Venezuela, esse é um aspecto estrutural da economia venezuelana.

Desde 1976, com a nacionalização da indústria petroleira, boa parte dos nossos ingressos em moedas estrangeiras vem daí. De lá pra cá, cerca de US$ 900 bilhões foram evadidos do país através das empresas privadas ou transnacionais. 

Não são propostas socialistas, são propostas que buscam aumentar a participação do Estado. Temos que garantir ingressos para poder redistribuir a riqueza

A proposta é que todo esse dinheiro que entre no país pelo Estado ou pelo setor privado passe pelo Legislativo, que poderá estimar um gasto e uso anual. Assim poderemos determinar qual será o uso dessas divisas, porque elas são dos venezuelanos. 

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O Legislativo têm essa função constitucional de analisar e fiscalizar os orçamentos do Estado. Esperamos que os novos deputados eleitos em dezembro, independente de quem sejam, ajam como patriotas.

Reconhecemos que há uma guerra econômica, que existem problemas estruturais que essa guerra deixa ainda mais evidente. Entendemos que o aspecto estrutural faz parte do que estamos sofrendo com essa guerra. A maioria dessas propostas já foram apresentadas de alguma maneira, o que faremos agora é sistematizá-las, principalmente porque fazem parte das competências do Legsilativo.

 


No último 23 de outubro, os venezuelanos realizaram um simulacro eleitoral para se preparar para as legislativas de dezembro. / Michele de Mello / Brasil de Fato

 

Outra proposta sua foi a diminuição da alíquota do Imposto de Valor Agregado (IVA), de 14%, que incide sobre o consumo, e aumento da tributação sobre a renda e sobre a indústria petroleira. O discurso de economistas liberais é de que essas medidas espantam os inverstidores - algo tão necessário para a recuperação econômica da Venezela. Como você responderia essa questão?

O assunto tributário é um dos mais contraditórios de qualquer sociedade porque expressa a luta de classes. E como o nome já diz, é algo imposto. 

Não são propostas socialistas são propostas que buscam aumentar a participação do Estado. Temos que garantir ingressos ao Estado para poder redistribuir a riqueza.

Você considera que a economia venezuelana está dolarizada?

Há que diferenciar: uma coisa é a decisão de um Estado de dolarizar a economia, como aconteceu no Equador. Isso gera um problema, porque é a Reserva Federal quem emite dólares e determina qual quantidade de moeda circulará. Nesse caso já não é o mais o banco central do país. Isso não aconteceu na Venezuela. 

O que existe é o aumento da circulação do dólar, que se tornou uma moeda de reserva de valor e de troca, diante do ataque ao bolívar soberano.

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Em quatro anos, os venezuelanos perderam 99% do seu poder de compra por conta da hiperinflação. / Michele de Mello / Brasil de Fato

 O Petro, criado há quase três anos, parecia ser essa alternativa à desvalorização do bolívar, como uma espécie de segunda moeda nacional, como fez o governo cubano, mas com a vantagem de ser uma criptomoeda, que poderia ser utilizada também para o comércio exterior. Apesar de a Venezuela ser o terceiro país no ranking mundial de transações em criptomoedas, ainda falta muito para que o Petro se popularize. Por que o Petro não funcionou? 

Para saber o porquê exatamente teria que questionar as autoridades do banco central, no meu caso poderia especular. Por isso vou apresentar algumas das minhas análises sobre os prós e contras do Petro. 

O Petro surge como uma criptodivisa num primeiro momento e surgiu como uma forma de driblar o bloqueio estadunidense. Poderia ser usado para o comércio exterior sem passar pelo sistema swift, que os Estados Unidos usam para chantagear, bloquear.

O Petro surge como uma criptodivisa num primeiro momento e surgiu como uma forma de driblar o bloqueio estadunidense

E surgiu como uma criptomoeda centralizada, somente o Estado tem o direito de miná-la, e isso porque está ancorada nas reservas de petróleo venezuelanas. Mais tarde, além de ser uma moeda de intercâmbio, o Petro assume a função de unidade de conta. O que significa que os preços dos produtos seriam marcados tanto em Petros como em bolívares. Já no final de 2018 ele assume uma terceira funcionalidade, que é o Petro como instrumento financeiro. 

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Quanto à decisão de que o Petro seria a moeda de circulação nacional há várias questões. A primeira é que você não pode ter duas moedas em circulação, porque a moeda mais forte sempre vai tirar o lugar da moeda mais fraca, essa é uma lei econômica. Mas além disso, se buscamos que o Petro circule, ele deveria ser usado para pagar os salários. 

Quando o Petro foi criado um dos anúncios do Executivo era de que o salário mínimo seria ancorado à criptomoeda e valeria sempre meio Petro. Algo que não se cumpriu. Hoje o salário mínimo de 400 BsS, o equivalente a menos de um dólar, segundo o câmbio oficial, enquanto o Petro vale 29,6 milhões de BsS, equivalente a aproximadamente US$60. Como o Estado poderia atuar para evitar esse processo de ataque ao bolívar e evitar a dolarização de fato no país? 

O ataque ao bolívar é uma das armas mais potentes do imperialismo, quando quer atacar países que não estão alinhados aos seus interesses. 

Foi utilizada na Nicaragua, contra a Revolução Sandinista, na União Soviética contra o rublo. E é uma das armas mais silenciosas, entre todas elas: bloqueio, escassez de alimentos, outros tipos de embargos, essa é a mais escondida.

Eles posicionam um preço, que não é o preço real do bolívar, e isso incide sobre um aspecto econômico importante, que é a expectativa.

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Quem importa insumos para o setor produtivo e vê uma constante desvalorização do bolívar vai esperar que isso siga ocorrendo. Então ele primeiro vai calcular os custos em cima dessa desvalorização e estabelecer seu preço em função dessa expectativa de desvalorização induzida. Isso gera a perda do poder aquistivo, um choque de oferta e a contração do setor produtivo.

A proposta é levantar essas reservas. Como fazemos? Recuperando a produção petroleira

Essa arma de guerra funciona junto ao ataque às reservas internacionais, porque não é a mesma coisa que você diga que o bolívar não vale nada com US$100 bilhões de reserva ou dizer isso com US$ 6 bilhões de reserva. 

Com a queda das nossas reservas internacionais, nossa proposta é levantar essas reservas. Como fazemos? No nosso caso recuperando a produção petroleira.


A cadeia de lojas Traki foi uma das primeiras a aceitar o Petro e outras criptomoedas no lugar dos bolívares soberanos. / Reprodução

A outra maneira é através do ouro, que conta como uma reserva internacional, de acordo a normativas do Banco Mundial. A proposta é monetizar o ouro. 

Temos cerca de 7 mil toneladas de ouro nas minas. A proposta não é extrair todo o ouro. Para ter uma ideia, a China, que é uma das maiores potências mundiais, possui 600 toneladas de ouro no seu banco central, nós temos hoje cerca de 160 toneladas no Banco Central. 

Manter reservas em ouro, no nosso caso, não significa ceder a outras moedas estrangeiras, porque o ouro está aqui, é nosso. 

A proposta é que a moeda, que circule e estabeleça os preços dos produtos e do salário, seja respaldada por um ativo comprovável e quantificável, como o ouro

A outra proposta seria fixar o preço da moeda, já seja o Petro ou o bolívar, em um ativo que seja comprovável. Nós propomos que seja o ouro. 

O fato de que as moedas a nível mundial dependam da confiança relacionada a uma economia, algo estabelecido unilateralmente pelos Estados Unidos nos anos 70 com [o presidente] Richard Nixon, o que faz com que as moedas possam ter seu valor manipulado de acordo com a desconfiança ou confiança em uma economia. E aí nesse caso contam com o apoio dos meios.

Por isso que a proposta é que a moeda, que circule e estabeleça os preços dos produtos e do salário, seja respaldada por um ativo comprovável e quantificável, como o ouro. Essa proposta tem a ver com o que a China tem feito com o Yuan, com as reservas de ouro e com o Yuan digital.

Fazendo isso não signica que vamos conseguir parar os ataques, mas diminuiremos o seu efeito.


O preço da cesta básica alimentar é 18 vezes o valor do salário mínimo na Venezuela (400 mil BsS), segundo levantamento de Pasqualina Curcio. / Michele de Mello / Brasil de Fato


Você lançou um documento com dúvidas relacionadas à lei antibloqueio nos dias prévios a sua aprovação na Assembleia Nacional Constituinte. Uma das suas críticas é sobre a previsão de medidas de compensação do salário. Você afirma que o salário deveria ter seu valor real defendido e não ser compensado. Qual poderia ser a alternativa para defender o valor do salário? E como diminuir as diferenças entre os salários do setor privado, que já está dolarizado, e o setor público, que continua fixando sua tabela salarial em cima do valor do salário mínimo, que como já comentamos, equivale a menos de um dólar? 

O fato de que a administração pública não tenha ajustado os salários, além de afetar o trabalhador e seu lar, também tem um efeito sobre o desempenho do serviço público. E estamos falando de saúde, educação, transporte, água, luz, o que afeta toda a população. 

Os preços se ajustam aos aumentos inflacionários, enquanto os salários se ajustam em uma proporção menor. Essa diferença representa ganhos para a burguesia

Parte da deterioração do salário é fruto do incremento dos preços. Os preços se ajustam aos aumentos inflacionários, enquanto os salários se ajustam, mas em uma proporção menor. Essa diferença representa ganhos da burguesia. (Karl) Marx já disse isso há muito tempo: qualquer depreciação, incide em maior exploração se o salário se mantém o mesmo. 

O setor privado, de alguma maneira, veio ajustando o salário, longe de ser um valor digno. E como você diz a administração pública não o fez e precisa ajustar o salário. Esse discurso de que o aumento do salário gera inflação é falso e é usado pela direita.

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Novamente isso tem a ver com o ataque imperialista ao bolívar. O fato é que ainda que não aumentemos os salários, o imperialismo seguirá atacando. 

De 2012 para cá, tivemos uma depreciação de 500.000.000.000% (500 bilhões por cento), que ainda que aconteceram muitas coisas na nossa economia, jamais encontraremos uma justificativa para essa cifra. É um ataque e é parte de um plano.

Um Estado, ainda mais em uma guerra econômica e em um processo socialista, deve se auto financiar para poder agir 

A proposta é ajustar o salário de acordo com o aumento dos preços. Alguns apontam que a administração pública não teria condições de subir os salários. No entanto, em qualquer processo hiperinflacionário, quando aumentam os preços, é necessário contar com maior circulação da moeda. Então há que aumentar a impressão de dinheiro, mas não para dar à burguesia, senão canalizá-lo pela administração pública, que deverá usar na compra de insumos, no aumento dos salários. 

Outro aspecto é aumentar os impostos sobre essas empresas, quando se verifica, que apesar da contração de 60% do PIB, estão aumentando seus ganhos em cima de mais exploração.

Um Estado, ainda mais em uma guerra econômica e em um processo socialista, deve se auto financiar para poder agir. 


Nas manifestações populares, o anti-imperialismo está sempre presentes nas reivindicações venezuelanas / Michele de Mello / Brasil de Fato

Aumentando os ingressos do Estado, você acredita que seria possível diversificar a economia, aumentar a produção de bens de consumo e diminuir a dependência de importação de produtos básicos na Venezuela?

Sim, tudo depende para onde serão destinados esses ingressos. Se novamente se destinam para uma burguesia que historicamente obtem esses recursos e os envia para o exterior, não vamos conseguir investir nem na recuperação e nem na diversificação. Então depende da política para canalizar esses recursos, que deve ser elaborada em cima do Plano da Pátria, que entre outras coisas, prevê a nossa soberania. 

Enquanto não resolvermos o ataque ao bolívar, não estaremos mirando no estratégico

Aumentando os ingressos o que poderíamos conter é essa queda de 60% do PIB, que segundo nossas pesquisas, tem duas razões centrais: 60% pelo ataque ao bolívar e 40% pela queda das exportações petroleiras.

São medidas conjunturais, entendendo que o estratégico é combater o ataque. O fato é que enquanto estamos combatendo não podemos permitir que os assalariados tenham esse nível de consumo, não podemos permitir que diminuam tanto os níveis de produção, temos que fazer algo para pelo menos conter esses efeitos.

No entanto, enquanto não resolvermos o ataque ao bolívar, não estaremos mirando no estratégico.


O ex-presidente Hugo Chávez foi responsável por reduzir a pobreza de 49,4% para 21,2% na Venezuela / Michele de Mello / Brasil de Fato

Nos últimos anos de bloqueio e da chamada guerra econômica, podemos observar, pelo menos de maneira empírica, um aumento da desigualdade na Venezuela. Você acredita que apesar dos ataques e da precarização das condições de vida das pessoas, é possível avançar numa melhor distribuição da riqueza, avançar num horizonte socialista?

Acredito que não só é possível, como necessário. A única maneira de combater esses ataques é avançar para um sistema socialista. 

Cada vez que vivíamos um processo hiperinflacionário, (Chávez) ajustava os salários por um lado. E por outro lado, as divisas que entraram pelas medidas de controle cambiário foram utilizadas para criar as missões [programas sociais], para diminuir a dívida histórica social 

Se analisamos a distribuição do ingresso, podemos analisar quanto vai para o capital e quanto vai para remunerar o trabalho, e comparamos tudo que se produziu em um ano com o que foi repassado para a remuneração vemos uma maior desigualdade, ainda que esses dados foram publicados até 2017.

Por isso precisamos perguntar para onde estão indo as moedas estrangeiras que ingressam pela indústria petroleira. Por que se elas entram e logo são evadidas pela burguesia ao invés de ser reinvestidas na produção nacional, então se contribui para essa desigualdade.

O comandante Chávez atuou nessas duas vias. Cada vez que vivíamos um processo hiperinflacionário, ajustava os salários por um lado. E por outro lado, as divisas que entraram pelas medidas de controle cambiário foram utilizadas para criar as missões [programas sociais] para diminuir a dívida histórica social. 
 

Edição: Rogério Jordão