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Artigo | Implosão do sistema partidário no Brasil: da bipolaridade à multipolaridade

A dinâmica política que prevaleceu nas últimas décadas foi implodida e transitamos para uma nova configuração

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Finalizada a apuração das eleições municipais, entramos em um período de balanço sobre o saldo político que as urnas apresentaram: fim do bolsonarismo? - Alan Santos / Fotos Públicas

Finalizada a apuração das eleições municipais, entramos em um período de balanço sobre o saldo político que as urnas apresentaram. Diferentemente de outras eleições, o atual pleito tem se notabilizado pela divergência das análises. Algumas abordagens sentenciam a morte do bolsonarismo, enquanto outras avaliam que os partidos que lhe dão sustentação saem fortalecidos. No polo oposto a mesma incompreensão: a esquerda saiu derrotada ou se recompôs nesta eleição? Ao observar o desempenho da direita a confusão é tamanha que não há acordo nem mesmo nas categorias de análise: “centrão”, “centro político”, “direita tradicional”, “liberais” são alguns dos termos utilizados para tentar nominar essa faixa do espectro político.

As dificuldades para se encontrar uma mínima coerência nas análises são em parte explicadas por um fenômeno que se acentuou neste pleito. As eleições de novembro confirmaram uma tendência que já vinha se desenhando desde 2016: está em curso uma reorganização do sistema partidário brasileiro. A dinâmica política que prevaleceu nas últimas décadas nos embates eleitorais foi implodida e estamos acompanhando a transição para uma nova configuração que ainda não está plenamente consolidada.

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Desde os anos 1990 o sistema partidário brasileiro estava estruturado a partir de dois polos políticos bem delineados: o PSDB e o PT. Tal como hoje, o sistema partidário era extremamente fragmentado, contando com uma profusão de legendas com distintos níveis de grandeza. No entanto, havia dois grandes partidos em torno dos quais orbitavam as demais legendas que tinham um peso político significativamente menor. Não por acaso, eram estas legendas que polarizavam o embate político nacional através das candidaturas presidenciais. PT e PSDB não apenas encabeçaram a disputa eleitoral entre os anos de 1994 e 2014, como durante o exercício destes mandatos, alternaram posições: enquanto um dirigia o governo, o outro dirigia a oposição.

Esse confronto contava com contornos ideológicos relativamente nítidos. De um lado, o PSDB defendendo um programa neoliberal, baseado na diminuição do papel do Estado seja na capacidade de intervenção econômica, seja em termos de regulação social. De outro lado, o PT apresentando um programa reformista de baixa intensidade, que podemos chamar de neodesenvolvimentista, propondo uma ação estatal mais destacada na indução desenvolvimento econômico, e uma intervenção social, através da promoção de direitos e ampliação de serviços públicos. O alinhamento político das demais legendas em torno desses dois polos evidentemente não foi baseado somente na identidade programática. Tanto PSDB, quanto o PT buscaram dar sustentação aos seus governos atraindo forças políticas fisiológicas tais como o MDB, o PP, PTB, entre outras siglas.

Essa bipolaridade era frequentemente expressa nos mapas eleitorais pintados com áreas azuis e vermelhas, representando a predominância de um polo e outro, tal como o bipartidarismo norte-amerciano se evidencia na divisão entre republicanos e democratas. Contudo, essa estrutura partidária que organizava o conflito político no Brasil foi implodida a partir de 2016 pela Lava Jato. A operação política orquestrada numa triangulação entre setores do judiciário, Ministério Público e os grandes meios de comunicação no esforço de desconstrução do PT, e de viabilização do golpe, acabou atingindo os pilares do sistema partidário brasileiro. Aqui cabe uma diferenciação entre sistema político e sistema partidário.

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A forma de financiamento do sistema político, através doações empresariais e caixa 2, era uma pratica institucionalizada entre todos os partidos de maior relevância, sendo que estes ainda subfinanciavam as campanhas dos partidos menores. De modo que, apesar da seletividade da Lava Jato que tinha o PT e a esquerda como alvos preferenciais, não era possível puxar o fio dessa trama sem atingir em alguma medida o PSDB, o DEM, o PMDB, entre outros. O ódio contra o PT, alimentado pela mídia na população, acabou transbordando para o conjunto do “sistema político”. Em meio à nuvem de poeira dos escombros dessa estrutura política emerge Jair Bolsonaro como baluarte da moralidade. O último obstáculo para essa vitória foi encarcerado em abril de 2018, e teve seus direitos políticos cassados no curso da eleição daquele ano.

2020

Depois dessa breve retrospectiva, voltamos ao resultado das eleições municipais. Para amparar essa tese do desmonte em curso da bipolaridade do sistema partidário brasileiro vamos utilizar os dados do G-96, grupo de cidades com mais de 200 mil eleitores. Sabemos a complexidade de mensurar a correlação de forças em eleições municipais, por isso a necessidade de selecionar alguns parâmetros de análise dadas as inúmeras variáveis em jogo. O quadro do G-96 permite identificar as forças dominantes nos principais centros políticos e econômicos do país, deixando em segundo plano os processos eleitorais dos pequenos e médios municípios que tem uma dinâmica muito particular, muitas vezes desvinculadas da lógica de atuação nacional das legendas.

Partindo do critério dos maiores colégios eleitorais, o PT hegemonizou o campo progressista de 1996 até a eleição de 2016. Em 1996, foram 9 cidades; em 2000 foram 22; em 2004 foram 21; chegando à 25 em 2008; regredindo para 18 em 2012. A eleição de 2016 é o momento da implosão do pilar esquerdo do sistema partidário. Esta eleição ocorre algumas semanas após a destituição de Dilma Rousseff da presidência da República, momento de maior criminalização do PT. Das 18 grandes prefeituras que detinha, o PT termina o pleito de 2016 com 1.

Passados dois anos, nas eleições de 2018, é a vez da ruína do pilar direito do combalido sistema partidário. O PSDB sofre a sua maior derrota, ficando de fora do segundo turno, com o desempenho sofrível da candidatura de Geraldo Alckmin, que termina a eleição com 5%, pior marca da história do PSDB.

Voltando ao recorte do G-96, o PSDB tinha em 1996, primeira eleição municipal após a posse de FHC, 22 cidades. Em 2000, no segundo mandato de FHC caiu para 18. Em 2004, já na oposição foi para 20. Ficou atrás do PMDB em 2008 com 14 cidades, recuperando a liderança na direita em 2012, depois de conquistar 19 cidades. O ápice do desempenho tucano é em 2016 com o domínio sobre 29 municípios entre os maiores do Brasil.

As eleições deste ano confirmaram a tendência de perda de tração política do PSDB expressa em 2018. O partido conquistou 10 cidades, e irá para o segundo turno em outras 13. Isto significa que provavelmente terá uma queda de, pelo menos, 30% na comparação com 2016. Se analisarmos pelo volume total de votos em prefeitos, o PSDB havia recebido 17.633.653 de votos em 2016, este ano caiu para 10.701.951, uma regressão de 39%.

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Se os mapas eleitorais antes poderiam ser lidos pelo contraste entre azul e vermelho, a desestruturação do sistema partidário produziu um mosaico de cores que exigem uma complexidade muito maior das nossas análises. Primeiramente é preciso levar em conta que em 2018 emergiu um terceiro campo político. Além do campo de esquerda/centro-esquerda (PT, PSOL, PC do B, PSB, PDT, Rede) e do campo da direita/centro-direita (PSDB, DEM, MDB, Cidadania), consolidou-se um campo de extrema-direita (Republicanos, Patriota, PSL, PRTB, PSC). A ascensão de Bolsonaro deslocou uma parcela das forças que orbitavam em torno do PSDB para a conformação de um novo polo político, que hoje é o núcleo de sustentação do governo.

Para além desses 3 campos, há ainda um agrupamento de partidos conhecido como “centrão” (PSD, PP, Avante, PTB, PL, Podemos). Esse agregado não se conforma como um campo, pois não opera segundo um projeto próprio, mas como força auxiliar dos demais campos políticos de acordo com as circunstâncias locais. Dependendo da situação política, ele pode estar associado ao campo bolsonarista, à direita tradicional ou até mesmo ao campo progressista. Atualmente, em âmbito nacional, ele cumpre o papel de base de sustentação do governo Bolsonaro.

Partindo dessas categorias de análise, veremos agora o desempenho de cada um desses campos no G-96. O campo bolsonarista teve um desempenho tímido, partindo de duas grandes prefeituras em 2016, para uma no primeiro turno de 2020, disputando mais 12 no segundo turno. Como este campo não existia como tal nas eleições anteriores, certamente representará um crescimento, ainda que modesto frente ao potencial que o executivo federal proporciona. Isso sem contar as derrotas simbólicas que sofreu especialmente em São Paulo, Belo Horizonte e provavelmente no Rio.

O campo progressista saiu com 13 grandes prefeituras nas trágicas eleições de 2016, este ano levou uma no primeiro turno, e disputará 33 no segundo turno. Deve apresentar um crescimento sutil em relação ao último pleito. Porém o desempenho em Porto Alegre, Belém, Vitória e especialmente em São Paulo, deram-lhe um novo fôlego. Cabe destacar o crescimento do PSOL nas eleições majoritárias pelo feito de levar Boulos ao segundo turno, mas principalmente nas eleições proporcionais. O PSOL cresceu significativamente nas bancadas de vereadores dos grandes centros urbanos, fazendo 1,5 milhão de votos nesta eleição, quando havia feito 1,1 milhão em 2016.

A direita tradicional detinha 57 grandes prefeituras em 2016, mais da metade do G-96, nesta eleição já levou 22, e disputará mais 35. Ou seja, deverá provavelmente diminuir o seu tamanho. O destaque neste campo fica para o desempenho do DEM que tinha 7 prefeituras, já levou 5, sendo 3 capitais, e disputará mais 8 cidades, sendo uma delas o Rio, onde está praticamente eleito. No entanto, o setor que realmente vai apresentar um crescimento expressivo nesta eleição é o agregado do “centrão”, que detinha 15 cidades em 2016, já conquistou 12 e disputará mais 31. Nesse bloco, o destaque fica para o crescimento do PSD e do PP.

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Para além de observarmos o desempenho de cada campo político, identificando as tendências para 2022, é necessário produzirmos uma análise mais estrutural para dar conta das mudanças do sistema partidário brasileiro. Esta eleição municipal consolida uma nova configuração da cena institucional no país. Não há mais lugar para o “bipartidarismo à brasileira”, PT e PSDB não são mais os polos estruturantes da luta política nacional. Isso significa que essas legendas morreram? Evidentemente que não. Continuam sendo duas máquinas eleitorais potentes, com capilaridade, quadros e militantes em todo território nacional, e inclusive não está descartada a possibilidade de polarizarem em 2022.

Mas é importante observarmos que essas duas legendas já não hegemonizam seus campos políticos da mesma forma que antes. Existe uma tendência para uma relação mais equilibrada de forças. No campo da direita, o PSDB terá que compartilhar mais espaço com DEM e MDB. No campo progressista, onde antes o PT dirigia de modo soberano, configura-se um novo polo na aliança PDT/PSB e outro no PSOL, ainda muito atrás das demais siglas, mas progressivamente assumindo a referência política nos setores médios progressistas. Paralelamente, ainda temos o agregado do “centrão” cada vez mais reivindicando espaço político, na medida em que seu capital aumenta.

Portanto, está em curso uma transição da bipolaridade para a multipolaridade no quadro político nacional. Essa análise não deixa margem para interpretações de que estaria em curso o fim da polarização política entre esquerda e direita. Ao contrário, a disputa de projetos políticos permanece com contornos ideológicos, contudo, se antes havia uma força que dirigia de modo absoluto os diferentes campos, agora temos múltiplos polos em cada um dos campos. Também não se trata de diluir as grandezas de cada legenda. Elas não são equivalentes, mas a distância entre elas diminuiu significativamente. Dessa análise também não se depreende que esse cenário de multipolaridade se mantenha daqui pra frente. Estamos acompanhando um processo de reestruturação do sistema partidário que está em aberto. A eleição de 2022 pode consolidar uma nova hegemonia em cada campo; contudo, a tendência de médio prazo é um cenário de maior fragmentação política.

Diante desse quadro o desafio da unidade política das forças progressistas se torna ainda mais necessário, porém, complexo. O caso da eleição do Rio de Janeiro deve servir de alerta para o que pode se desenhar como cenário para 2022. A fragmentação entre PDT/PSB, PT/PC do B e PSOL inviabilizou a presença no segundo turno do campo de esquerda/centro-esquerda, deixando a polarização entre direita e extrema-direita se impor. Não há garantias de que essa tragédia não se repita nas eleições presidenciais, a não ser que haja uma estratégia minimamente coordenada das forças progressistas.

*Lúcio Centeno é militante da Consulta Popular.

Edição: Rogério Jordão