Ancestralidade

Baianas de acarajé: um ofício que resiste ao tempo

Com forte referência histórica, o trabalho das mulheres que encantam com aromas e sabores chega também a outros países

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“No tabuleiro tem acarajé, abará, cocada, bolinho de estudante, passarinha, tem outras que botam bolo”, exemplifica Rita Ventura, presidenta da Associação Nacional das Baianas de Acarajé - Associação Nacional das Baianas de Acarajé
Simbolizam a preservação de uma essência africana que se tornou uma das marcas da miscigenação

Fruto de um saber tradicional já consagrado na cultura popular brasileira, o ofício das baianas de acarajé é pura ancestralidade.

Das referências históricas aos tempos atuais, essas mulheres que encantam as ruas com aromas e sabores da Bahia simbolizam a preservação de uma essência africana que se tornou uma das marcas da miscigenação brasileira. E a culinária é, claro, um ponto forte dessa mistura de raças e culturas.  

A presidenta da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Rita Ventura, resgata que a atividade surgiu há mais de 300 anos, no contexto da escravidão.

Na época, mulheres negras escravizadas comercializavam acarajé e compravam a alforria com o dinheiro das vendas. Depois, o comércio da iguaria acabou se reinventando ao longo da história.

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“Com o passar do tempo, houve a abolição, elas foram ficando ‘desempregadas’, continuaram fazendo, e o acarajé é uma oferenda de terreiro de candomblé. Então, antigamente, só quem vendia eram as mulheres de terreiros. Com o passar do tempo, foi-se vendo também que se poderia manter as famílias, aí o acarajé tomou um rumo muito maior”, narra.

Foi assim que, nas palavras de Rita Ventura, as baianas de acarajé se tornaram “as primeiras mulheres empreendedoras do Brasil”. A dirigente conta que em todo o estado da Bahia existem 7 mil delas, sendo 3.500 somente em Salvador.

Em 2010, elas ganharam até uma data própria no calendário brasileiro, o Dia Nacional das Baianas de Acarajé, comemorado no último dia 25.  

E o cardápio de opções das baianas, famoso especialmente pelo acarajé, costuma trazer também outros quitutes.

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“No tabuleiro tem acarajé, abará, cocada, bolinho de estudante, passarinha, tem outras que botam bolo”, exemplifica Rita, explicando que a quantidade de opções varia de acordo com o grau de locomoção das vendedoras.

O alcance dessa cultura é outro ponto de destaque. Engana-se quem pensa que elas se restringem ao universo cultural da Bahia. O caso da carioca Eleonora Aparecida Alves, conhecida como “Doné Eleonora”, ajuda a ilustrar isso.

Nascida no Rio de Janeiro e criada em Brasília e em São Paulo, onde vive atualmente, ela conta que se encantou pelo ofício aos 35 anos. Hoje com 58, ela expõe os produtos em Hortolândia, interior do estado, de onde se inspira no que aprendeu com a mãe, uma cozinheira de mão cheia.

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“Pra minha felicidade, aqui em Hortolândia e aqui em São Paulo, as pessoas gostam muito do acarajé, então, eu fui criada com muita moqueca, cozido, mocotó, tinha muito cuscuz. Eu tinha já essa relação gastronômica com essa comida. Acho que a gente precisa preservar os nossos bens, assim como os nossos ancestrais preservaram pra hoje eu poder me beneficiar”.

A cultura das baianas de acarajé chegou também a lugares mais longínquos, talvez até inesperados. Segundo a associação nacional que reúne as trabalhadoras do ramo, Portugal, França, Itália, Estados Unidos, Áustria, Suíça e Austrália estão entre os pontos do globo por onde elas se espalham.

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Em geral, são mulheres brasileiras que foram morar nesses lugares e levaram a cultura pra lá ou mesmo se encantaram com a possibilidade de se tornar uma baiana de acarajé somente anos depois.

Foi o que ocorreu com Jussara Ribeiro Navarro de Andrade, que vive na Itália há quase três décadas e passou a vender acarajé nos últimos anos.

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“A culinária era mais por paixão à cozinha, mas eu nunca tinha tido tempo material pra me dedicar à culinária. Só que, quando uma coisa vira um desafio pra mim, fica na cabeça o tempo todo. Eu fiz e começou a dar certo, aí comecei a acertar a massa do acarajé e disse ‘vou começar a lançar’”, conta.

Jussara começou, então, a vender acarajé para festas privadas e também a expor a iguaria num restaurante brasileiro no Centro de Roma. A iniciativa veio a convite do dono do estabelecimento, que apostou no prato baiano para incrementar o cardápio do local.

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“Foi um ‘boom’, porque, inclusive, muitos brasileiros que nunca tinham comido acarajé provaram pela primeira vez comigo. Teve gente que chorou depois de ter comido porque se sentiu no Brasil, com saudade do Brasil. Emoção total”.

A empreitada tem rendido uma série de prêmios para a baiana. Em 2020, por exemplo, ela foi a vencedora do “Focus Brasil Veneza” na categoria “arte culinária”. Nos últimos anos, ela também foi agraciada com o prêmio “Comunicação & Destaque” na categoria “gastronomia internacional”.  

Edição: Douglas Matos