Entrevista

Pandemia demonstrou sofisticação política e institucional da China, diz pesquisadora

Melissa Cambuhy analisa os êxitos e as contradições do modelo chinês; país erradicou extrema pobreza, apesar da covid-19

Brasil de Fato | Florianópolis (SC) |
Trabalhadores no intervalo de almoço em uma fábrica de Wuhan, em 23 de março: China foi exitosa no controle da pandemia e conseguiu retomada econômica precoce - China OUT AFP PICTURES OF THE YEAR 2020

O governo da China cumpriu esta semana a meta de erradicar a extrema pobreza no país em 2020. O anúncio foi feito após a confirmação da retirada de nove condados da província de Guizhou da lista de regiões pobres, apesar das dificuldades impostas pelo coronavírus.

Enquanto a economia global enfrenta recessão, com perspectiva de retomada gradual a partir de 2022, a produção chinesa já ultrapassa os níveis de 2019 e mantém o crescimento. Em outubro, o gigante asiático desbancou os EUA durante a pandemia e tornou-se a maior economia do mundo sob o critério do tamanho de seu Produto Interno Bruto (PIB), por paridade de poder de compra (PPC).

A pandemia mostrou ao mundo a sofisticação política e institucional chinesa. Essa é a avaliação da professora Melissa Cambuhy, que estudou o desenvolvimento nacional chinês durante o mestrado em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie, entre 2017 e 2019.

Menos de 5 mil chineses morreram com covid-19 até a publicação desta reportagem. O Brasil, com uma população seis vezes menor, registrou cerca de 172 mil mortos. 

Cambuhy costuma publicar vídeos sobre a China em sua conta no Instagram e é uma das responsáveis pelo curso “Introdução ao socialismo de mercado chinês”, que será lançado com uma transmissão ao vivo no próximo dia 30, às 20h. A proposta é fazer um resgate histórico e teórico dos conceitos e práticas que dão corpo ao “socialismo de mercado” chinês.

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Em meio aos preparativos do curso, a pesquisadora conversou com o Brasil de Fato sobre as políticas que permitiram a superação da extrema pobreza e a retomada econômica precoce da China em 2020. Na entrevista, ela também analisa o 14º Plano Quinquenal, apresentado pelo governo da China em outubro, que definiu as metas para os próximos cinco anos.

Confira os melhores momentos:

Brasil de Fato: O crescimento econômico da China não pode ser compreendido dentro dos limites do capitalismo. Nos últimos anos, ouvimos várias tentativas de se definir ou caracterizar o modelo chinês, e parece difícil chegar a um consenso. Por que você considera o termo “socialismo de mercado” o mais preciso e adequado?

Melissa Cambuhy: Essa é uma polêmica, um dos grandes “bodes na sala”: como se referir à China? Quando a gente adentra nesse processo de desenvolvimento, logo percebe que as categorias com as quais a gente está familiarizado no Ocidente não dão conta dessa experiência.

Meus estudos sobre China começaram com a análise dos documentos do Partido Comunista e dos teóricos chineses. Então, meus pressupostos de análise foram mudando.

Na China, o socialismo de mercado surge, como conceito, com Deng Xiaoping [presidente do Chefe do Comitê Central do Partido Comunista Chinês de 1978 a 1990], que vem após a era maoísta, de 1949 a 1978. Ele traz a política das quatro modernizações e, a partir de então, começa a se desenhar no partido o socialismo com características chinesas, ou socialismo de mercado chinês.

O diferencial dessa categoria em relação ao socialismo centralmente planificado, da era maoísta, é o entendimento de que não há contradição entre os mecanismos de mercado e o socialismo. Deng Xiaoping inova ao dizer que o mercado, em si, não seria um modo de produção, mas um elemento que, sob o comando do Estado, poderia ser uma ferramenta utilizada no socialismo.

Vários outros autores se debruçaram sobre isso, e uma das concepções que eu adoto é a de que o mercado existia muito antes do capitalismo. Inclusive, muito antes de a Europa pensar em caravelas, a China era uma grande potência comercial – embora nunca teve uma postura colonizadora.

Então, o período maoísta, de uma planificação central, foi excepcional na cultura e na formação social chinesa. Xiaoping, quando defende o mercado como ferramenta possível, inclusive menciona esses elementos históricos e propõe o socialismo de mercado com um nível altíssimo de planejamento, com ferramentas de planificação econômica.

É o caso, hoje, das estatais chinesas, que são a ponta de lança dos altos investimentos tecnológicos e, consequentemente, das subidas nas cadeias globais de valor.

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As adaptações feitas a esse modelo no século 21 representam algum tipo de rompimento com a teoria de Deng Xiaoping?

Uma análise sofisticada do processo chinês requer perceber movimentos de continuidade e descontinuidade. Em 1971, quando são retomadas as relações entre China e Estados Unidos, o próprio Mao Tsé-Tung, junto com Zhou Enlai [então primeiro-ministro chinês], reconheceu a necessidade de modernização do país.

Não existe ruptura. Existem continuidades e descontinuidades. Aceitar o mercado como mecanismo possível, quem traz é Deng Xiaoping, mas outros elementos do maoísmo continuam sendo reivindicados até hoje, tanto na Constituição quanto nos Congressos do partido.

Cada líder, cada presidente que veio depois, deixou suas marcas. A partir da década de 2000, houve uma virada estratégica no sentido de se falar na construção de uma “sociedade harmoniosa”. É quando as legislações protetivas do trabalho, por exemplo, começam a se sofisticar.

Adequar o marxismo à formação social chinesa, sem medo de encarar as contradições, é um fator-chave para o êxito desse processo.

Agora, com o presidente Xi Jinping, também há elementos novos, com a teoria da “nova era”, que também vai para a Constituição. Mas, ao mesmo tempo, essas novidades estão de acordo com o que propunha Deng Xiaoping, com a teoria das duas mãos: a necessidade do desenvolvimento das forças produtivas e do desenvolvimento de uma forma jurídica que desse conta de dotar o Estado de ferramental para executar seu planejamento.

Houve mudanças gradativas, por exemplo, no Direito chinês, que hoje se aproxima mais do Direito Ocidental, muito em função da entrada na OMC [Organização Mundial do Comércio], que exigiu adequações para garantir segurança jurídica.

Fazer uma análise apenas pós-1978 nos impede de compreender o poder estatal sobre as instituições, o mercado, o planejamento e sua execução. É preciso olhar para a totalidade desse processo.

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Muitos brasileiros, quando veem a etiqueta Made in China [“Feito na China”], associam o produto a relações de trabalho precárias, análogas à escravidão. Porém, desde 2013, mais de 93 milhões de chineses superaram a pobreza, segundo o governo. Qual a realidade do mercado de trabalho na China, em comparação com a de um trabalhador informal brasileiro, por exemplo?

A OIT [Organização Internacional do Trabalho] reconhece que os salários dos chineses foram os que mais subiram, com crescimento de mais de 280% [entre 2005 e 2016]. Porém, esse continua sendo um dos aspectos mais debatidos sobre a China.

O processo chinês é repleto de contradições, e encará-las é muito pedagógico para nós, que buscamos a superação do subdesenvolvimento no Sul do mundo. Ao mesmo tempo, é preciso ter clareza de que há diferença entre o que são contradições do desenvolvimento e uma política de Estado.

Muitas vezes, me parece que a narrativa da mão de obra barata dá a entender que haveria uma política de Estado que “escraviza” pessoas na China. Um dos termos mais usados nesse sentido é o dumping social, com a ideia de que a China rebaixaria propositalmente o custo da mão de obra para ter vantagem concorrencial sobre outros países. Esse argumento não se sustenta por cinco minutos com uma análise séria.

Um desenvolvimento econômico que se sustenta por tanto tempo não pode ser explicado por um único elemento.


Xi Jinping é presidente da China desde 2013 / Xinhua

O processo de recepção do investimento externo na China se deu pós-1973, em um contexto de crise no petróleo e de ruptura com o fordismo keynesiano dos EUA. No final daquela década, o avanço tecnológico no Japão e na Alemanha passou a representar uma concorrência, uma ameaça ao domínio estadunidense. Então, os Estados Unidos fazem uma série de políticas para enfrentar esse contexto.

Em 1985, houve uma desvalorização tamanha do dólar, que provocou uma fuga de capitais do Japão para outros países da Ásia. Nesse momento, com uma análise de conjuntura excepcional do Partido Comunista Chinês, que percebeu que estava ruindo o fordismo-keynesiano, introduziu-se a política de “portas abertas”.

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A China olhou para aquele momento histórico, aquele processo de ruptura, e conseguiu aproveitá-lo – tal qual o Brasil deveria ter feito no período de “boom” das commodities, e não aproveitou. Todas as vezes que o Brasil teve inserção no comércio internacional foi de forma subordinada, primarizada.

A China produziu equipamentos de proteção individual e respiradores para o mundo todo na pandemia, enquanto os EUA fizeram o “papelão” de desviar respiradores que iam para outros países.

Enfim, uma das consequências daquela ruptura foi a descentralização produtiva: a grande massa do setor produtivo estadunidense industrial migrou para países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. A China observou isso, conseguiu construir uma estrutura jurídica e, graças ao poder centralizado no Estado, pensou de forma planejada uma política de abertura que garantisse inserção internacional de forma não subordinada.

A ideia de que a China só teria conseguido se desenvolver em função da mão de obra barata ignora o fato de que os salários – embora mais baixos que nos países do capitalismo central – já não eram inferiores a muitos países da África e da Ásia. A China tinha outros diferenciais: uma política muito bem planejada de recepção do investimento externo, alta produtividade e melhor preparo técnico. Afinal, durante o período maoísta, houve um processo inicial de industrialização, que garantiu educação e certa sofisticação técnica da mão de obra.

É claro que a China, inicialmente, exportava principalmente “quinquilharias”, mas o nível de sofisticação já era superior ao de países com o mesmo nível de desenvolvimento das forças produtivas.

A regulação dos marcos protetivos [da mão de obra] sempre existiu. Houve uma mudança após 1978, quando o mercado de trabalho passou a se constituir, e na década seguinte foram feitas novas adaptações, com uma política nacional de regulação dos contratos de trabalho. Desde 1986, a regulamentação do trabalho na China vem se aproximando do que nos é familiar.

É evidente que um processo tamanho de desenvolvimento econômico tem as suas contradições. Notadamente, durante os anos 1990, as exportações – junto com os investimentos estatal e externo – puxavam o crescimento do PIB. Nesse período, focou-se no desenvolvimento da força produtiva, e essas contradições da relação capital-trabalho se exacerbaram. Houve reações, greves, e o Estado acolheu parte dessas demandas.

A nacionalização da Lei do Trabalho na China, em 1994, trouxe elementos semelhantes ao que era a CLT antes da reforma trabalhista. Há comitês de fábrica, sindicatos, trabalhos de fiscalização.

Não podemos "idiotizar" o trabalhador chinês nessa análise. São disputas políticas. A China é uma sociedade milenar, que tem uma tradição camponesa que já derrubou muito governo. Várias dinastias foram derrubadas por movimentos camponeses, e o Partido Comunista Chinês sabe muito bem disso.

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A pandemia de covid-19 parece ter antecipado os planos da China de se tornar a maior economia do mundo. A que você atribui a resiliência do país durante esse período, e qual você considera o principal mérito do governo chinês ao enfrentar o coronavírus?

A pandemia nos ajuda a ter noção do que é o poder estatal chinês. Ela demonstra o nível de sofisticação, não só política, mas institucional. Chamou atenção do mundo inteiro os hospitais sendo construídos em menos de dez dias, o lockdown de 11 milhões de pessoas em Wuhan – que a própria OMS [Organização Mundial da Saúde] classificou como uma política sanitária sem precedentes.

Ficou claro o poder de mobilização do Estado e de articulação dos setores estratégicos. O Estado capitaneou as políticas sanitárias e econômicas. A pandemia, enfim, colocou o neoliberalismo em xeque, forçando países a aumentar seu déficit para garantir liquidez na economia e possibilidade de investimento do Estado.

A China também abriu um déficit gigantesco, o que garantiu uma retomada produtiva e econômica muito precoce. Hoje, a China participa com 17% do PIB mundial, e os Estados Unidos com pouco mais de 15%. Sem os números da China, o crescimento mundial estaria no negativo, segundo números do FMI [Fundo Monetário Internacional].


Crianças almoçam em uma escola na província de Hubei, meses antes da pandemia / AFP

É preciso lembrar que Wuhan é um dos centros industriais da China. Se em outros países os governos tiveram resistência ao isolamento social, o Estado chinês colocou a ciência em primeiro lugar e topou o custo do isolamento. Menos de 5 mil pessoas morreram, e a economia foi preservada, na medida do possível.

Geopoliticamente também foi uma lição. A China produziu equipamentos de proteção individual e respiradores para o mundo todo, enquanto os EUA fizeram o “papelão” de desviar respiradores que iam para outros países.

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Assim como o Brasil deixou o Mapa da Fome e vive o risco de voltar a essa realidade, sabemos que o próximo desafio da China será impedir a volta da extrema pobreza. Considerando o 14º Plano Quinquenal, que define as metas para os próximos cinco anos, você avalia que o governo chinês enxerga esse desafio como permanente, ou há risco de retrocessos sociais em nome do estímulo ao crescimento?

Em tudo que li até agora sobre a superação da extrema pobreza, um dos pontos centrais que o governo frisa é a necessidade de não se abandonar a pauta. Ou seja, garantir a continuidade desse processo.

As políticas de alívio à pobreza, como se referem os documentos, foram implementadas mais objetivamente a partir da década de 1990. É dialético: essas políticas foram uma resposta às pressões políticas que me referi anteriormente, mas também respondem a um planejamento para a transição da dinâmica de acumulação.

Se entre as décadas de 1950 e 1980 a dinâmica de acumulação era sustentada pelo mercado consumidor interno e pelos investimentos, e na 1990 o crescimento do PIB foi puxado por investimentos e exportações, desde 2000 o foco é novamente o mercado interno, com a demanda agregada puxada pela inovação.

A inovação tecnológica deve gerar um aumento gigantesco de produtividade, agregando cada vez mais valor aos bens produzidos na China.  

Então, as políticas de redistribuição de renda, o investimento bilionário em infraestrutura, o aprimoramento institucional do trabalho e da Previdência são, em última instância, políticas de incremento de renda. E tudo isso converge com o cumprimento das metas do Plano Quinquenal.

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O modelo chinês não foi implantado da noite para o dia, se adaptou a diferentes conjunturas e dialoga com uma visão de mundo e uma formação cultural específica. Quais aspectos desse modelo poderiam ser aplicados ou servir de exemplo para a América Latina, África e outros países da Ásia, e quais têm a marca registrada da China e só se aplicam àquela realidade?

Quando o Partido Comunista Chinês rompe com a União Soviética, em 1960, Mao Tsé-Tung – que tinha a experiência soviética como referência – formulou uma série de documentos em que pensa o processo de desenvolvimento a partir da formação social do país. Então, a primeira lição para a gente, no Sul do mundo, é a necessidade da soberania teórica e política.

A gente precisa conhecer o Brasil para pensar o desenvolvimento brasileiro. Não adianta conhecer o processo chinês de cabo a rabo sem olhar para o nosso país, nossa formação e nosso passado colonial. Tivemos séculos de trabalho escravo, e a questão racial é determinante – o que não aparece da mesma forma no caso da China.   

A Revolução Chinesa foi, antes de tudo, anti-imperialista. É claro que precisamos falar sobre as contradições internas de classe, formular e se debruçar sobre a burguesia brasileira. Porém, é importante a clareza de que, se a gente não “endogeneizar” os centros decisórios – que inclusive é uma categoria que o Celso Furtado usa –, não há saída para o subdesenvolvimento.

Mao Tsé-Tung compôs uma frente política com os nacionalistas, apesar das diferenças de projeto para o país, porque compreendia o imperialismo como principal inimigo. Essa pode ser considerada uma segunda lição.

Quanto às marcas da política e da prática chinesa, eu chamaria atenção para a forma como eles olham para o marxismo sem mecanizá-lo. Adequar o marxismo à formação social chinesa, sem medo de encarar as contradições, é um fator-chave para o êxito desse processo.

Edição: Vivian Fernandes