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A esquerda perdeu, mas não foi derrotada

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O PSOL obteve a maior vitória eleitoral de sua história, muda de lugar dentro da esquerda, e alcança outro patamar em escala nacional - Reprodução / Comunicação Guilherme Boulos
Bolsonaro tentou, mas não conseguiu organizar um partido para chamar de seu

A maioria da mídia comercial abraçou, entusiasticamente, a tese de que os extremos foram derrotados. Esta interpretação não é objetiva, não é neutra e não é séria. Mas como toda operação de manipulação ideológica ela precisa ter um grão de verdade para ser eficaz. O núcleo histórico da velha direita, o DEM, MDB e PSDB, premiados com uma cirurgia plástica como centro desde a eleição de Bolsonaro, venceram as eleições. Mas os outros dois blocos mais importantes não tiveram resultados simétricos. O bolsonarismo saiu enfraquecido, enquanto a esquerda manteve posições eleitorais, em comparação com 2016 e 2018, até com um viés de recuperação, e saiu intacta, politicamente.

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Há duas falsificações nesta narrativa. A primeira é nivelar o extremismo neofascista de Bolsonaro com o que seria um suposto extremismo da esquerda: PT, PSOL e PCdB. Qual é a régua? A esquerda brasileira tem uma longa e, até heroica, história de luta pelas liberdades democráticas. Aliás, uma das críticas que se pode fazer aos governos liderados pelo PT é que deveriam ter sido mais firmes, mas nunca de radicalismo. Aliás, quem articulou um golpe institucional para levar Temer ao poder, porque a operação do impeachment contra Dilma Rousseff foi construída sem que houvesse qualquer crime de responsabilidade, foi o bloco dos partidos de direita, em aliança com a agitação da extrema direita nas ruas.

É, também, falso igualar a derrota de Bolsonaro com o desempenho da esquerda. Não são equivalentes. O enfraquecimento de Bolsonaro foi político e eleitoral. A esquerda perdeu as eleições, mas saiu, politicamente, reforçada e, dentro da esquerda, o PSOL saiu vitorioso. A esquerda chegou ao segundo turno em cinco capitais, e o PT foi o partido com maior presença em cidades médias. Perdeu as eleições em São Paulo, Porto Alegre, Recife e Vitória, mas não foi derrotada. Venceu em Belém, e em quatro cidades médias. Quando comparamos com 2016, ter ido ao segundo turno em três das seis metrópoles estratégicas significa que a sangria foi estancada. A grande amargura foi o Rio de Janeiro. Já sabíamos das limitações incontornáveis em Belo Horizonte e Salvador. Portanto, ao contrário da narrativa da direita liberal, a esquerda não venceu, mas não saiu diminuída.

Os números não falam sozinhos. Os modelos de interpretação não podem ser simples. Devemos considerar o número total de votos de cada partido para prefeitos ou para vereadores, o número de prefeitos ou de vereadores eleitos, o número de prefeitos em capitais ou nas cidades com pelo menos duzentos mil eleitores, e até a dimensão de habitantes ou dos orçamentos que estarão sobre a gestão de cada partido. É preciso, também, estabelecer os parâmetros de comparação, por exemplo, com 2016 e 2018, para verificar as dinâmicas de evolução. Mas a análise não pode deixar de considerar que alguns dados, como as votações nas capitais e grandes cidades, ou a presença em segundo turno, são muito mais relevantes do que outros. Tampouco ignorar que a votação nos partidos só adquire pleno sentido considerando quem eram os candidatos. A conclusão é reconhecer com humildade que a avaliação de eleições municipais é complexa.

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Bolsonaro tentou, mas não conseguiu organizar um partido para chamar de seu. Bolsonaro saiu enfraquecido das eleições, se considerarmos o desempenho da extrema-direita em 2018, tanto para o Congresso Nacional como para governadores e deputados estaduais. A grande onda da extrema-direita refluiu. Bolsonaro se expressou através de uma variedade de partidos de aluguel. O PSL, partido pelo qual se elegeu e não conseguiu controlar,  não ganhou nenhuma das 100 cidades mais populosas Crivella chegou ao segundo turno, mas sofreu dura derrota no Rio. Russomano terminou com apenas 10% em São Paulo. Os candidatos bolsonaristas em Porto Alegre, Curitiba, Florianópolis e Belo Horizonte tiveram desempenho medíocre. O centrão governista, que se integrou no que podemos chamar o segundo ministério do mandato, depois da ruptura da ala lava-jatista com a saída de Moro, ganhou em sete capitais: Manaus e Rio Branco na região norte, Cuiabá e Campo Grande na centro-oeste, São Luis e João Pessoa no nordeste, e Vitória no sudeste. Nenhuma das cidades estratégicas, portanto. Mas levou Eguchi, em Belém, e Capitão Wagner, em Fortaleza ao segundo turno. Bolsonaro saiu derrotado das eleições, mas a extrema-direita está viva, e permanece uma das três correntes mais fortes do país, e em condições de disputar a reeleição em 2022, se não for detida até lá.

O bloco dos partidos de direita que são a representação tradicional dos interesses da burguesia conquistou uma vitória eleitoral. Ganhou força para a disputa de 2022, recuperando boa parte da base social, especialmente na classe média, perdida para o bolsonarismo em 2018. Venceu em quinze das vinte e cinco capitais em disputa, inclusive, as principais: São Paulo (PSDB), Rio de Janeiro (DEM), Belo Horizonte (PSD), Salvador (DEM), Curitiba (DEM) e Porto Alegre (MDB). Neste bloco, o destaque foi o DEM de Rodrigo Maia e ACM Neto que venceu em quatro capitais importantes, e disputa ainda Macapá. Além disso, ampliou de modo significativo sua participação no eleitorado governado (de 7,9 para 17,7 milhões de habitantes) e receita orçamentária (de 32,5 para 91 bilhões) e ganhou 10 dos 100 maiores municípios. O PSDB caiu em número de prefeituras, em termos de eleitorado governado (de 34,6 milhões de habitantes para 24,8 milhões) e receita orçamentária controlada (de 183,2 bilhões para 155,1 bilhões), mas compensou em São Paulo, vencendo na capital e em mais 170 cidades, dezenas delas de dimensão media no interior. O PSDB ganhou 16 dos maiores 100 municípios. O MDB fez cinco capitais, sendo Porto Alegre a mais importante e ganhou em 18 das cem maiores cidades, mais caiu em número de prefeituras e eleitorado governado (de 21 milhões para 18,9 milhões).

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O PT não elegeu prefeito em nenhuma capital, pela primeira vez, desde 1988, e diminuiu o número de prefeituras em relação a 2016, caiu de 254 para 183 prefeituras. Mas aumentou a votação nas cidades com pelo menos duzentos mil eleitores, foi ao segundo turno em quatorze delas, além de Recife e Vitória. A sangria de 2016 foi interrompida, e o PT permanece o maior partido pela sua capilaridade e, sobretudo, pelo respeito nos setores organizados da classe trabalhadora, ainda que a derrota em São Paulo tenha um profundo significado. O PSOL obteve a maior vitória eleitoral de sua história, muda de lugar dentro da esquerda, e alcança outro patamar em escala nacional, apesar do recuo nas eleição para prefeitura no Rio de Janeiro. Passou a ser o partido de esquerda com maior influência na juventude, expressão nos movimentos de mulheres, influência no movimento negro e LGBT, parceiro dos movimentos por moradia, ambientalistas, e antiproibicionistas. O PCdoB foi quem perdeu votos, prefeituras e vereadores, mas conquista com a presença de Manuela D’Ávila no segundo turno em Porto Alegre uma liderança de referência nacional. Mas a derrota de Flávio Dino em São Luis pesa, e tem razões para se preocupar com a cláusula de barreira em 2022.

Ciro Gomes não perdeu muito, mas não ganhou nada, o que é um desastre para seu projeto de uma candidatura presidencial, eleitoralmente, viável para poder alcançar um segundo turno. O PDT e PSB tiveram que suar muito a camisa para vencer em quatro capitais, todas no Nordeste: Recife, Fortaleza, Aracajú e Maceió, mas não avançaram no sudeste, sul e norte.  Tiveram oito vitórias entre os cem maiores municípios, contra doze em 2016, uma variação desfavorável. O PSB perdeu prefeituras e caiu de 11,7 para 6,9 milhões de governados. O PDT manteve patamar de prefeituras, mas caiu de 8,4 para 7,8 milhões de governados. Esprimido entre três blocos muito maiores, e depois de anos tentando incidir em uma divisão da esquerda, flertando com setores do PT e PCdB, não deveria surpreender a necessidade de Ciro Gomes se deslocar para um cortejo da direita tradicional para tentar algum fracionamento.

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Resumo da ópera: ainda estamos em uma uma situação reacionária, portanto, são os capitalistas que estão na ofensiva, mas há uma inflexão positiva na situação com o enfraquecimento relativo do governo Bolsonaro, em função dos impactos da pandemia, e suas consequências. A representação tradicional da burguesia  foi quem se fortaleceu mais, porém a esquerda esboça uma recuperação relativa.

O desgaste mais acentuado, e a dinâmica de maior rejeição de Bolsonaro nas principais capitais, com destaque para a juventude, mulheres, negros e trabalhadores com contrato, abre espaço para lutas mais fortes em 2021. Ainda que a retração deste ano tenha sido a maior da história, não teremos recuperação importante, dependente de massivos investimentos externos, pelo menos, enquanto não se conquistar imunidade coletiva com a vacinação, que permanece desorganizada. O fim do auxílio emergncial, os níveis estratosféricos de desemprego e a continuidade da crise sanitária, abrirão a oportunidade para a esquerda assumir uma maior papel na luta pelo Fora Bolsonaro. Estivemos este ano com os punhos fechados, mas com as mãos nos bolsos. Em 2021, vamos ter que levantar nossas bandeiras nas ruas.  

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rogério Jordão