Retrospectiva 2020

Covid-19, informalidade e trabalho escravo: o ano dos imigrantes no Brasil

Sem auxílio emergencial e ações efetivas do poder público, imigrantes sobreviveram da solidariedade em 2020

Brasil de Fato | São Paulo (SP) | |
Suzana Campos hoje costura pela metade do valor que ganhava nas peças antes da crise. Hoje tem meses de aluguel atrasados. - Pedro Stropasolas

O capítulo quinto da Constituição Federal de 1988 garante que brasileiros e estrangeiros tenham os mesmos direitos fundamentais no país. 

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No entanto, o ano de 2020 e a pandemia da covid-19 vieram para agravar ainda mais as desigualdades e as violações a que os imigrantes estão submetidos.

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A começar pela doença, esta população tem um risco de infecção “ao menos duas vezes maior” do que o resto da população, segundo análise da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

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A covid-19 entre os imigrantes

No Brasil, porém, ainda não se tem dados precisos de quantos imigrantes morreram pelo vírus. Isso porque, a nacionalidade não é um dos itens obrigatórios no preenchimento da declaração de óbito e da Autorização de Internação Hospitalar (AIH).

A situação foi denunciada por médicos e especialistas desde o princípio da crise sanitária, pois impedia que os estrangeiros fossem incluídos nos planos nacionais de resposta a emergências da covid-19 no Brasil. 

Em maio, a inclusão da população migrante nos planos de prevenção e enfrentamento à doença foi uma recomendação do Relator Especial sobre os Direitos Humanos dos Migrantes da Organização das Nações Unidas (ONU).

No mesmo mês, o Projeto de Lei 2726/2020 foi apresentado no Congresso Nacional pelo deputado federal Alexandre Padilha (PT), solicitando a inclusão da nacionalidade nos formulários do Sistema Único de Saúde (SUS). Houveram também outras mobilizações sobre o tema, como um abaixo-assinado organizado pela Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados.

Mas só em outubro, surgiram as primeiras respostas. A partir dos dados dos formulários do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), excluindo os campos marcados como brasileiros ou deixados em branco, o Ministério da Saúde chegou a 2.950 notificações de infecções pela covid-19 em estrangeiros até o final de julho.

Dos 953 casos que se confirmaram, 715 mortes foram computadas - o que representa uma surpreendente mortalidade de 75% pela doença entre os estrangeiros.

Para especialistas, porém, os dados alarmantes, que vieram à tona após solicitação do Projeto de Promoção dos Direitos dos Migrantes (ProMigra), não poderiam ser considerados pela evidente falha nos registros de estrangeiros no SUS.

Dificuldades com o Auxílio Emergencial

Além da doença, os imigrantes foram condenados ao empobrecimento por não conseguirem receber o auxílio emergencial. O auxílio que não chegou para muitos, também fará falta para os poucos que receberam, já que a renovação do benefício não está prevista para 2021, conforme anúncio do Governo Federal.

No caso dos imigrantes, haviam impeditivos reais para o recebimento dos R$ 600, como a obrigatoriedade do CPF e do Registro Nacional de Estrangeiro (RNE) para o cadastramento, que muitos não tinham por conta da situação migratória ainda não regularizada. A Caixa Econômica Federal também não aceitou documentos dos países de origem para o recebimento.

Uma nota técnica enviada aos gerentes de agências da Caixa pela Defensoria Pública da União (DPU), ainda em abril, chegou a sugerir a mudança de parâmetros para o acesso ao benefício, que incluía a proposta de aceitação dos documentos estrangeiros. As sugestões, no entanto,  não foram aceitas pela Caixa.

Meses depois, no fim de setembro, a Caixa, a União e a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência (Dataprev) foram alvo de uma ação civil pública exigindo que os imigrantes e a população em situação de rua tivessem acesso ao benefício. 


Imigrantes buscando apoio no Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (Cami) / Pedro Stropasolas

A ação, realizada em conjunto pela DPU, a Defensoria do Estado de São Paulo, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) se ampara na Lei de Migração, que garante o direito à assistência social independentemente da situação migratória irregular  - o que contempla o recebimento do auxílio.

No total, segundo a Caixa Econômica Federal, o Auxílio Emergencial pago pelo Governo Federal beneficiou 149.019 estrangeiros que vivem no Brasil. Quase um terço deles são venezuelanos. Das 10 cidades com mais beneficiários, 8 estão em Roraima. Os dados foram obtidos pelo portal Poder360.

Desde o ano de 2000 até o dia do fechamento das fronteiras terrestres, em 19 de março, um total de 1.504.735 estrangeiros entraram com pedido de cadastro para a emissão do Registro Nacional Migratório (RNM).

O número, que não inclui os solicitantes de refúgio ou pessoas sem os documentos regularizados , é o mais próximo de uma estimativa da quantidade de estrangeiros que hoje vivem no Brasil. 

O levantamento é feito por pesquisadores do Observatório das Migrações em São Paulo e do Núcleo de Estudos de População "Elza Berquó" (Nepo), da Universidade de Campinas (Unicamp), por meio dos registros administrativos da Polícia Federal. A última atualização do Ministério da Justiça é de 2018. 

Solidariedade

Sem ações efetivas do poder público, a atuação de Associações de Migrantes e de organizações da sociedade civil foi o que se destacou no auxílio a essa população.

A distribuição de cestas básicas, kits de higiene e de proteção individual e o apoio para realização de cadastros para o recebimento do Auxílio Emergencial foram fundamentais durante o ano.

De março até julho, somente o Centro de Acolhimento e Pastoral do Migrante (Cami) distribuiu 4.515 cestas básicas e atendeu mais de 1.500 imigrantes e refugiados apenas no setor de regularização migratória.

Já, a União Social dos Imigrantes Haitianos (USIH), entidade que hoje corre risco de despejo por falta de verba, distribui mais de 600 cestas básicas aos haitianos.


Ações de solidariedade da USIH atendeu mais de 600 famílias haitianas durante a pandemia / Tácito Shimato

Regularização Já

A urgência da regularização migratória em tempos de pandemia também foi um tema defendido por diversos coletivos e organizações no Brasil com a campanha Regularização Já.

A ação foi inspirada em iniciativas de outros países, como Portugal, que concedeu anistia e regularizou a situação dos estrangeiros indocumentados para que pudessem ter acesso a direitos básicos - como ao sistema de saúde.

O Projeto de Lei 2.699/2020, da deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS) foi apresentado no Congresso Nacional em maio e previa a regularização imediata de documentação para todos os imigrantes que vivem no Brasil ou ingressaram até o início da pandemia. O PL, porém, ainda aguarda despacho na Câmara dos Deputados.

Enquanto não viam avanços, os estrangeiros enfrentavam filas e dificuldades para conseguir atendimentos na Polícia Federal. 

Deportações

A morosidade nos atendimentos, porém, não foi a mesma em relação às deportações. Nesse quesito, a polícia federal bateu recordes. Entre abril e julho, as deportações cresceram 9.200% em relação a 2019.

A nacionalidade mais afetada foi a boliviana, responsável por 70% dos registros. Parte dos estrangeiros expulsos do Brasil entraram no país justamente para buscar tratamento para a covid-19, segundo o MPF.

“O fechamento das fronteiras se deu quando já tínhamos transmissão local. Isso demonstra que a primeira vítima institucional e política desse enfrentamento desorganizado e preconceitos da covid no Brasil foram justamente os imigrantes nas suas possibilidade de seguir migrando, de seguir buscando formas de trabalho e de reprodução de suas existências em outros países”, avalia Luiz Felipe Aires Magalhães, coordenador-adjunto do Observatório das Migrações em São Paulo. 


Imigrantes da etnia Warao, da Venezuela, em abrigo na cidade de Pacaraima, em Roraima / Luis Robayo/AFP

No mês de maio, a suspensão temporária de deportações durante a pandemia foi uma recomendação da Organização das Nações Unidas, que incluía também proteção a essa população, independentemente da situação migratória irregular.

A falta de renda, impulsionada pela diminuição do comércio ambulante - principal alternativa econômica dos imigrantes no país -, também tornou a população migrante ainda mais suscetível ao aliciamento para o trabalho escravo contemporâneo.

“Nós temos no Brasil uma dificuldade muito grande de acesso e de regulamentação migratória. Isso por um lado impede o acesso a direitos e a cidadania, e por outro lado entrega os imigrantes de bandeja para as estratégias de exploração das forças de trabalho”, aponta Aires, que foi um dos organizadores da pesquisa "Impactos da Pandemia de Covid-19 nas Migrações Internacionais no Brasil", lançada no início de outubro.

Informalidade e escravidão contemporânea

Na cidade de São Paulo, o setor têxtil é onde o trabalho análogo à escravidão, a informalidade e as violações trabalhistas estão mais presentes entre os imigrantes e se acentuaram durante a crise sanitária. 

Em outubro, um levantamento organizado pela Repórter Brasil, a partir dos registros de fiscalizações do Ministério da Economia, revelou que  93,1% das mulheres resgatadas de situações de trabalho análogo à escravidão na capital paulista são imigrantes.

Já, o último levantamento da Secretaria de Inspeção do Trabalho, realizado entre 2010 e 2019, revelou que em média são feitos três resgates por mês de trabalhadores. Hoje, são cerca de 10 mil oficinas de costura somente na grande São Paulo.

Em resumo, a pandemia ‘confinou’ as famílias nas oficinas, trabalhando por mais de 14h ao dia e recebendo menos que um salário mínimo.

No Brás, a boliviana Suzana Campos mora onde confecciona as peças, com seis crianças mais o marido, também operador das máquinas.

Durante os meses da pandemia, não houve produção. Primeiro a falta de vendas, e depois a gestação que precisou de uma cesárea. A filha de 17 anos também costura e amamenta uma criança, lado a lado com Suzana, as duas com a mesma dedicação para as crias e ao pano, às vezes até às 3 da manhã.

“Antes da pandemia era muito melhor, porque todos os meus filhos iam para escola, eu conseguia pagar aluguel, pagar luz e quando começou cortou os serviços, as pessoas que nós trazíamos serviços, cortaram. Ficamos três meses sem costurar, sem nada. Só fazíamos máscara que pagavam 25 centavos. Tem cinco meses de aluguel atrasado. A moça já falou que tem que sair e não temos para onde ir”, revela.

Segundo a Subsecretaria de Políticas Públicas de Trabalho da Secretaria de Trabalho, 5.998 Carteiras de Trabalho foram emitidas para estrangeiros até agosto de 2020, o que equivale a 1,1% do total de emissões no país. Em 2019, foram 109.410 carteiras emitidas para estrangeiros, de um total de 4.832.752.

“A informalidade no trabalho migrante oferece uma possibilidade de reprodução do capitalismo em tempos de crise. Sempre foi muito bom para o capitalismo contar com força de trabalho indocumentada. Sempre foi muito útil para a economia super explorar os imigrantes”, finaliza Aires. 

O cenário leva incertezas para 2021, já que a inserção dos imigrantes no mercado brasileiro é uma realidade longínqua. 



 

Edição: Michele Carvalho