Coluna

O bolsonarismo como anti-mundo ou projeto distópico de institucionalização do absurdo

Imagem de perfil do Colunistaesd
O bolsonarismo tem adentrado os mais diversos níveis da administração pública e da vida sociopolítica - Evaristo Sa/AFP
Coisas que nos pareciam absurdas de serem ditas ou defendidas passam a ser entoadas à luz do dia

Por Priscylla Joca* e Luciana Nóbrega**

Continua após publicidade

Um dos últimos trabalhos da artista Usha Velasco, “Doente de Brasil”, nos captura como um grito mudo e lágrimas não contidas. Em uma de suas foto-colagens, lemos “Eu não aguento mais”, junto a um fragmento de bandeira de um Brasil esvaziado de cores e de sentido, ainda mais em tempos pandêmicos-genocidas-cataclísmicos.

Em meio às tantas mortes por covid-19 no país, o bolsonarismo – que não se limita à figura do Chefe do Executivo nacional – tem mesmo tentado corroer nosso imaginário e a nossa capacidade de projetar o amanhã, nos provocando a sensação de destruição e esvaziamento de sentidos e do Estado brasileiro. Assim, vai nos habitando como um anti-mundo – a hipotética anti-matéria de um mundo a qual pode produzir sua aniquilação.

Em busca de compreender melhor os tempos presentes e seguir resistindo-imaginando melhores e possíveis futuros, temos investigado sobre desmontes e processos de institucionalização de políticas estabelecidas no atual governo federal, com foco em direitos socioambientais. 

Através da pesquisa, em curso desde 2020, temos refletido que o desmonte e o desrespeito a direitos e a políticas existentes – muitos deles, desde a Constituição de 1988 – têm caminhado cada vez mais junto a regulações infralegais, políticas e modos de atuação de órgãos públicos que buscam institucionalizar anti-direitos coletivos, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais.

Assim, o bolsonarismo vai constituindo projetos distópicos que engendram a institucionalização de absurdos no Brasil.

Como exemplo de desmontes e desrespeitos, lembramos da primeira medida provisória do presidente Bolsonaro. A medida determinava uma nova estrutura de governo cujos efeitos têm contribuído para, de fato, desestruturar políticas públicas previamente existentes.

O dossiê “Cronologia de um Desastre Anunciado: Ações do Governo Bolsonaro para Desmontar as Políticas de Meio Ambiente no Brasil” (2021), organizado pela Associação Nacional dos Servidores da Carreira Especialista em Meio Ambiente-ASCEMA, demonstra como “a narrativa de destruição e o repetido desrespeito ao arcabouço legal”, executados pela Presidência da República e pelo Ministério do Meio Ambiente, têm contribuído para a prática de uma política de destruição ambiental.

Por sua vez, na perspectiva da institucionalização, o professor Pedro Cardoso (UEA) tem demonstrado como as políticas de morte do governo Bolsonaro são contrárias às vidas e aos direitos de povos indígenas. Enquanto Luísa Molina, doutoranda em Antropologia (UnB), tem indicado a crescente ofensiva contra terras e vidas indígenas. Contudo, como ela nos lembra, “não podemos reduzir o problema apenas à perversidade de Bolsonaro”.

Seguem ainda outros exemplos de como o bolsonarismo tem instituído discursos e práticas do absurdo.

Em 24 de março de 2021, Bolsonaro e o presidente da Funai participaram de uma reunião com indígenas Kayapó e não-indígenas interessados em explorar terras indígenas via agronegócio e mineração.

Embora a mineração nessas terras seja proibida no país, o presidente da Funai orientou os não-indígenas presentes na reunião a entrar com uma ação popular contra uma associação indígena que não concordava com a exploração minerária em seus territórios tradicionais.

Poderíamos ainda trazer exemplos do Ministério do Meio Ambiente o qual, dentre outras desmedidas administrativas, tem questionado a atuação da Polícia Federal em ações de proteção da Floresta Amazônica.

:: Leia também: Chefe da PF no Amazonas encaminha ao STF e ao MPF notícia-crime contra Ricardo Salles ::

Há ainda vários outros exemplos que envolvem a ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos, Damares Alves, a qual tem atuado, em âmbito nacional e internacional, para impedir o reconhecimento e o livre exercício de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Esses exemplos precisam ser interpretados de modos interligado e contextual. O bolsonarismo tem adentrado os mais diversos níveis da administração pública e da vida sociopolítica. De modo aparentemente incompetente-caótico, a administração bolsonarista tem inviabilizado a efetivação de direitos pela precarização e desmonte de órgãos públicos, ao tempo em que tem instituído normas e fazeres políticos contrários à direitos fundamentais.

Compreendemos, portanto, que os discursos e as práticas bolsonaristas, por parte do governo federal e de bancadas parlamentares aliadas, seguem determinados projetos econômicos, sociais e políticos que os impulsionam. Nesse sentido, o governo Bolsonaro tem buscado institucionalizar políticas autoritárias, neoliberais e ultraconservadoras, aliadas ao capitalismo neoextrativista (trans)nacional. Como bem sabemos, o capitalismo neoextrativista necessita aliar-se ao Estado.

Tudo isso tem afetado o enfrentamento à covid-19, potencializando violências e vulnerabilidades já existentes na sociedade extremamente desigual brasileira.

Por exemplo, o dossiê “Pandemia da Covid-19 na vida dos povos indígenas”, editado por Braulina Baniwa, Felipe Cruz Tuxá e Luiz Eloy Terena, demonstra os efeitos de políticas bolsonaristas sobre as vidas dos povos.

Como outro exemplo, os resultados da pesquisa da professora Deisy Ventura (USP) têm revelado “a estratégia institucional de propagação do vírus”. Assim, a incompetência governamental se alia a escolhas políticas e econômicas, de caráter genocida, que, ultimamente, têm causado a morte de mais de 4.000 pessoas por dia no Brasil, sem que vejamos um teto para essa curva acelerada e ascendente de mortes.

:: Leia também: Brasil registra 3.459 mortes por covid em 24h e ultrapassa marca de 360 mil vítimas ::

Esse quadro distópico nos lembra a obra “1984”, publicada em 1949 por George Orwell, e que retrata um governo totalitário e despótico fundado na manipulação da história e da verdade.

Na obra, o autor apresenta-nos o lema do Partido IngSoc, que governava Oceania, um país fictício onde a narrativa se desenvolve: “Guerra é Paz. Liberdade é Escravidão. Ignorância é Força”.

Um dos ápices da distopia de Orwell é a descrição do Ministério da Verdade, que manipulava os fatos ao interesse do Partido, e do Ministério da Paz, que era responsável pelas políticas de guerra. Oceania está em guerra permanente e incessante com outras duas potências citadas em 1984, Eurásia e Lestásia, sendo esse o motor da vida sociopolítica.

As comparações entre a distopia de 1984 e a vivida desde 2019 no Brasil, com o advento do bolsonarismo, não são à toa.

O bolsonarismo se pauta por uma guerra permanente contra inimigos reais e imaginários. No contexto da pandemia da covid-19, essa guerra demonstra a sua face mais perversa, já que esses inimigos não são externos ao país, mas seus próprios nacionais. A principal proposta do governo federal para fazer frente ao novo coronavírus é, além de medicamentos ineficazes e sabidamente prejudiciais, a chamada imunidade de rebanho. No entanto, essa falácia parece se articular com políticas de promoção da desigualdade socioeconômica...

:: Leia também: Associação Médica Brasileira defende banimento de "kit covid" e pede isolamento ::

Por um lado, uma parcela rica da população tem viajado para os EUA para se vacinar. Ademais, recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei (PL 948/2021) que autoriza a compra de vacinas por empresas privadas a fim de imunizar seus diretores e funcionários.

Ou seja, estamos falando da possibilidade de uma lei que, se aprovada, vai "legalmente" permitir a já praticada “fura-filas”. Desse modo, por exemplo, um banqueiro saudável de 40 anos poderá ser vacinado primeiro que um trabalhador de 50 anos que faça parte de um grupo considerado de risco.

Por outro lado, para a imensa maioria da população faltam vacinas, leitos de UTI, medicamentos básicos para intubação e oxigenação e auxílio emergencial, que garantiria condições mínimas para que as pessoas pudessem ficar em casa.

Enquanto isso, em meio ao caos-tragédia sanitária reconhecida mundialmente, o Ministro da Economia anuncia a investidores que espera que a imunidade de rebanho seja alcançada em poucos meses.

Milhares de pessoas morrerão, mas o Presidente já havia declarado que ele não poderia fazer muito quanto a isso, já que não é coveiro. Além disso, seu governo afirma que a culpa do atraso das vacinas não é do Ministério da Saúde, mesmo que a legislação determine que este seria o administrativamente responsável... Um tipo de ironia necrófila nos acompanha diariamente.

Compreendemos que a utilização do aparato estatal e do direito para criminalizar e desarticular lutas sociais de povos, comunidades e movimentos não é algo novo, assim como a institucionalização da desigualdade e de violências sociais, através de políticas públicas e legislações.

Exemplos disso são muitos e vêm desde os tempos coloniais, continuando a se reproduzir no país por uma lógica operante de colonialismo interno (Pablo González Casanova) e de colonialidade do saber e do poder (Aníbal Quijano). Citando apenas um, há pouco mais de 50 anos – um piscar de olhos no tempo da história – o Ato Institucional n. 5 (AI-5) embasou a institucionalização da tortura no país.

No entanto, desde o sopro dos ventos da redemocratização, parecia que o país tinha (ao menos) institucionalizado a garantia de direitos humanos e socioambientais e de políticas públicas que serviriam (e têm servido, de certo modo) de base para, sob o influxo de lutas sociais e políticas, avançar. Ou para, ao menos, resistir a retrocessos. Ledo engano?

Até mesmo a ditadura vivida no Brasil não passa desapercebida do bolsonarismo, chegando a ser enaltecida. Mas, como disse o filho do Presidente, não se faz necessária uma nova ditadura, “porque o poder já está em nossas mãos”.

Se voltarmos, pois, o olhar para o período iniciado pela redemocratização, o nível de institucionalização de práticas bolsonaristas parece indicar um momento assombroso-novo no Brasil. E tudo isso vem se agudizando gradual e rapidamente desde 2019. Assim, situações que antes eram vistas como resultantes da não-atuação estatal e da não-efetividade de direitos (ex., lentidão nos processos de demarcação de terras indígenas) têm sido agora articuladas como ações estatais institucionalmente "aceitas".

Diante de tudo, (quase) nada mais nos assombra, embora devesse nos assombrar, porque todo dia é um passo adiante no progressivo esvaziamento de sentido que nos comunica Usha Velasco. Coisas que ontem nos pareciam absurdas de serem ditas ou defendidas passam a ser entoadas à luz do dia, sem nenhum pudor, em um ambiente de conivência entre os poderes estatais e a sociedade empresarial-midiática.

Em meio a tanto, movimentos sociais e populares no Brasil seguem resistindo à institucionalização de políticas de morte e criando caminhos.

Por fim, retornamos ao trabalho artístico de Usha Velasco. Porque habitar uma distopia não tem sido uma tarefa fácil. Esse exercício nos faz encurtar horizontes e não enxergar saídas.

Por isso a arte-grito de revolta é tão importante para, antes de tudo, nos fazer lembrar que o amanhã não está à venda (Ailton Krenak), nem para empresas furadoras de filas, nem para bolsonaristas de plantão à espreita de novas ditaduras. O amanhã há de ser e será outro dia.

É preciso, pois, seguir politizando cotidianamente em imagens e palavras, insurgindo-nos em ações-resistências sociais, políticas e acadêmicas. Lutar por futuros possíveis é a única maneira para voltar a contar com tempos em que já não estejamos adoecidas de Brasil.

 

*Priscylla Joca é Doutoranda em Direito pela Universidade de Montreal. Integrante do IPDMS. Estudante associada ao Cridaq (Centro de pesquisa interdisciplinar sobre diversidade e democracia)

**Luciana Nóbrega é Doutoranda em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará. Pesquisadora-militante no campo dos direitos humanos

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Poliana Dallabrida