Artigo Inédito

Relato de Prisão, por Alípio Freire | Parte 3: Na praça General Osório

Vítima da covid-19, Alípio Freire relatou, em 2002, as torturas e os anos na prisão durante a ditadura militar no Brasil

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Aos 23 anos, Alípio Freire foi sequestrado, torturado e passou cinco anos preso durante a ditadura militar - Cadinho Andrade/JU/UFRGS

O jornalista, escritor e artista plástico Alípio Freire faleceu na última quinta-feira (22), aos 75 anos, em decorrência da covid-19.

Um dos militantes da Ala Vermelha, grupo dissidente do PCdoB que combateu a ditadura militar, Freire foi preso aos 23 anos pela Operação Bandeirantes (Oban) e sofreu três meses de torturas e interrogatórios, permanecendo encarcerado entre 1969 e 1974 no Presídio Tiradentes, em São Paulo.

Alípio Freire, anistiado pelo Ministério da Justiça em 2005, é autor de diversos livros, entre eles “Estação Paraíso” e “Estação Liberdade”. 

Em "Relato de Prisão", Freire registra os dias que antecederam sua prisão, a rotina no cárcere e as sequelas sofridas pela tortura. O relato é o depoimento oficial entregue pelo jornalista à Comissão de Indenização dos perseguidos pela ditadura no Estado de São Paulo.

Brasil de Fato, que publica o material pela primeira vez, com exclusividade, dividiu o documento em quatro partes. A primeira, publicada na última quinta (22), descreve o sequestro por agentes do regime

:: Leia também: Parte 1 | Relato de prisão - 31 de agosto de 1969, por Alípio Freire ::

A segunda, publicada nesta sexta (12), descreve as sessões de tortura a que foi submetido por agendes do regime.

:: Leia também: Relato de Prisão, por Alípio Freire | Parte 2: Um quartel do Exército brasileiro ::

Na terceira parte, publicada neste sábado (24), Freire relata os dias na carceragem do Departamento de Ordem Política e Social (Deops) de São Paulo (SP). Confira:

Na praça General Osório, a Ordem Política e Social

Quando chegamos (os sete) no Deops, já era fim de tarde. Na carceragem, encontramos pela primeira vez Guida e Laís de modo a podermos trocar muito breves palavras, enquanto preenchíamos as fichas de identificação. Ambas levavam no rosto e no corpo sinais de que haviam sido muito constrangidas moral e fisicamente.

Fomos distribuídos por diversas celas:

Margarida e Laís foram trancadas numa das celas do “fundão”, local onde o corredor principal morria e se abria em forma de “T”. Ali estavam situadas as solitárias – que no entanto abrigavam sempre duas ou mais mulheres presas.

Takaoka foi posto na então cela 1; Misael na 4 ou 5 (não tenho certeza a este respeito), e Vicente, Renato e eu fomos colocados na então cela 2. Eram celas coletivas situadas no corredor principal. Neste, os xadrezes ficavam todos do lado esquerdo de quem ia em direção ao “fundão”; à direita, estendia-se uma parede cega. Os xadrezes tinham em regra pouco mais de 20 metros quadrados cada, mas ali se amontoavam sempre mais de dez presos.

Era noite quando Renato, Vicente e eu entramos na cela. Fomos recebidos por presos que já estavam ali havia mais tempo, como o gráfico José Paiva; um vendedor de bilhetes de loteria que chamávamos de Zé Bilheteiro; um metalúrgico de nome Amintas (baiano de Itapitanga que teria sido surpreendido com um panfleto no interior da fábrica onde trabalhava), e mais dois ou três outros acusados de algum nível de militância ou de algum outro tipo de ligação com organizações de esquerda. Todos haviam sido torturados. Além destes, havia também um belga – Joseph Coupé – preso por estelionato e à disposição da Delegacia de Estrangeiros. Também à disposição dessa delegacia estava um uruguaio, de sobrenome Araújo, detido por não possuir documentação atualizada para a permanência no país.

A primeira providência foi tomarmos banho – o que eu não fazia desde o dia em que fora seqüestrado. José Paiva arranjou umas roupas limpas e, em seguida, o médico Antônio Carlos Madeira entrou em nossa cela para nos examinar. Madeira era um preso político já com seus 35 a 40 anos, e a carceragem permitia que em determinados horários ele circulasse pelo corredor e atendesse os companheiros.

Um primeiro diagnóstico

No meu caso, Madeira diagnosticou (já naquele momento) perfuração do tímpano esquerdo e dilatação da trompa de Eustáquio do mesmo ouvido; fratura de uma costela superior esquerda, e quebra do primeiro molar inferior direito – além de necrose dos tecidos de vários dedos, artelhos e glande; hematomas e escoriações generalizadas. Um pouco desse quadro pode ser percebido na foto tirada no Deops dias depois de nossa chegada da Oban e que reproduzo neste dossiê.

Madeira me deu antidistônico e analgésico, e me enfaixou o tórax com ataduras para tentar curar a fratura de costela. Usei ataduras durante pelo menos até novembro – o que pouco inibiu as várias sessões de torturas, inclusive paus-de-arara – a que ainda seria submetido.

Na Praça General Osório, permaneceríamos seqüestrados e em cárcere clandestino por alguns meses.

Dado o longo período que ali permanecemos, a cronologia das diversas sessões de torturas a que fomos submetidos torna-se impossível. Elas se misturam na memória. Posso afirmar, porém, que a maior parte dessas sessões teve lugar até meados de outubro e na segunda quinzena de novembro. Isto porque, durante o período que se estende entre a segunda quinzena de outubro e a segunda metade de novembro, o Deops esteve totalmente mobilizado em torno das quedas da ALN que redundariam no assassinato de Carlos Marighella no dia 4 de novembro daquele ano.

Farei portanto um apanhado geral do período do Deops, ilustrando-o apenas com algumas situações que considero mais significativas. Chamo a atenção, porém, para o fato de que, embora as torturas na praça General Osório tenham sido menos intensas, não foram menos violentas ou menos cruéis que as que sofremos no quartel do Rec-Mec.

Escuderie LeCoq e outras societas celeris

Além de delegados como os doutores Vanderico, Tucunduva, Lessa, Ivahir, Raul Pudim, Edsel Magnotti, Romeu Tuma (hoje senador da República) e outros, circulavam nos corredores daquela instituição pública notórios membros da organização clandestina de ultra-direita Comando de Caça aos Comunistas – CCC, como Raul Careca; agentes do Centro de Inteligência da Marinha – Cenimar, com destaque para dois (particularmente cruéis) que nos torturaram e interrogaram várias vezes e que atendiam pelos codinomes de “Santiago” e “Marinheiro”, e sobretudo os membros da Escuderie Le Coq – o Esquadrão da Morte –, societas celeris chefiada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Este, alternando incursões no meio do narcotráfico e nos meios políticos, disputava com o delegado Tucunduva o comando do Deops: enfim, a eterna promiscuidade entre crime organizado, instituições do Estado e os setores de extrema-direita da elite política e econômica do País.

A maioria desses personagens participou diretamente das torturas contra presos e presas. Todos, porém, em algum grau, gerenciaram o método das sevícias.

A sala de torturas situava-se no quarto andar, no final de um longo corredor ladeado de salas de delegados. Freqüentei diversas vezes esse quarto andar.

Cadeira-do-dragão e choques de 1.200 volts

Numa tarde, fui conduzido àquela sala de torturas (certamente não foi a primeira vez) para ser interrogado por dois agentes do Cenimar que atendiam pelos codinomes de Marinheiro e Santiago. Não lembro exatamente do tema central deste interrogatório. Sei apenas que me perguntaram diversas vezes sobre Nobue Ishii. Nobue era uma militante da Ala Vermelha seqüestrada em maio daquele ano, violentamente torturada, e que conseguiu fugir da Santa Casa de Misericórdia, para onde fora levada em coma. Neguei conhecê-la. Durante esta sessão – comandada pelo Marinheiro, secundado por seu assessor – conheci dois novos instrumentos de tortura, aos quais fui submetido: a cadeira-do-dragão, chamada também de trono-do-dragão ou de “cadeira-elétrica”, e o choque de televisão. Alguns companheiros – entre os quais o Renato Tapajós – já me haviam descrito o trono-do-dragão, por haverem-no experimentado na Oban. Além dele, Vicente Roig também já o freqüentara no Deops. Para mim, porém, só vim a experimentá-lo pela primeira vez naquele dia.

O trono-do-dragão (pelo menos o do Deops paulista) era uma cadeira grande, de estrutura de madeira (caibros) e com assento, encosto e parte superior dos braços de metal; uma trava móvel entre as duas pernas dianteiras permitia que as pernas do torturado fossem imobilizadas e presas para trás, na altura das canelas; nos braços (da cadeira), tirantes – com os quais eram atados e também imobilizados, pelos pulsos, os nossos braços. Os ancestrais históricos deste instrumento de tortura são as cadeiras de interrogatório, utilizadas na Europa pelo menos desde os séculos XVI e XVII. Essas cadeiras foram utilizadas pela Inquisição, que provavelmente introduziu seu uso nas Américas. São duas as diferenças básicas entre essas cadeiras e as nossas contemporâneas: as primeiras tinham assento e/ou encosto e/ou braços recobertos por pinos de metal pontiagudos, sobre os quais assentava-se o torturado/a; ao invés dos choques (não havia energia elétrica naqueles tempos), elas eram aquecidas com fogareiros ou tochas colocados sob o assento. (A este respeito ver Freire A. et alii, Tiradentes, um presídio da ditadura – Scipione Cultural, 1997 – SP, págs. 503 e 504 e Inquisition – Torture instruments from the Middle Ages to the Industrial Age – Qua Dárno Editorial, 1985 – Florença/Itália).

Utilizada fundamentalmente para torturas com choques elétricos, no trono-do-dragão voltei a experimentar as correntes puxadas de tomadas e de um telefone de campanha. A novidade veio em seguida: plugaram a cadeira num aparelho de televisão que emitia violentas descargas a partir de 1.200 volts, com baixa amperagem. Para se ter uma idéia do significado dessas descargas, é importante saber que em diversos momentos vi uma faísca/fagulha percorrendo minha pele, como se fosse um corisco. Também ali eles nos molhavam o corpo nu com água ou refrigerante e trabalhavam com um pólo fixo e outro móvel: o primeiro, acoplado à cadeira, e o segundo percorrendo os diversos pontos do nosso corpo. Durante as descargas mais violentas, a língua enrolava-se sobre si própria e tínhamos a sensação de que engasgávamos e não conseguíamos respirar. Durante algum tempo, fui ali torturado com um pólo amarrado entre a glande e o prepúcio, e o outro diretamente ligado à cadeira. Mas, o Marinheiro tinha predileção por aplicar choques na língua, o que conseguia tampando as nossas narinas até que abríssemos a boca, e enfiando em seguida a parte do fio descascada no seu interior. Com a descarga, cerrávamos os dentes, mantendo o pólo no interior da boca, queimando a língua. Porém, certamente a sensação mais terrível era a que resultava da ação de nos colocarem simultaneamente os dois pólos no interior dos dois ouvidos: travavam os maxilares, a língua se paralisava contorcida, o cérebro parecia tremer, e perdíamos totalmente o controle sobre os globos oculares que pareciam girar ou giravam descontroladamente nas órbitas. Além dos choques, imobilizado – e sempre despido – na cadeira, fui submetido a vários espancamentos e “telefones” nas orelhas. Em diversos momentos daquela sessão o Marinheiro sentou-se em uma cadeira frente a frente comigo, colocando seu pé calçado sobre meu pênis e testículos que pressionava – como se operasse um acelerador de automóvel, à medida que me interrogava. Ao mesmo tempo, deslocava sua dentadura dupla (postiça) com a língua para fora da boca, encaixando-a em seguida através de sucção. Saíamos muito arrebentados desses choques de alta voltagem e baixa amperagem, e por dias seguidos – vez por outra e quando menos esperávamos – tínhamos repentinos tremores convulsivos, como se estivéssemos recebendo um descarga elétrica. Percebi isto claramente em mim, e também em Vicente Roig que havia sido igualmente torturado na cadeira-do-dragão do Deops.

Penumbra e silêncio

De outra feita, também à tarde, levaram-me mais uma vez para interrogatório. Fizeram as ameaças costumeiras, mas nada me perguntaram. Na sala de torturas, tiraram-me a atadura que me prendia o tórax e fui pendurado no pau-de-arara. Apagaram quase todas as luzes, criando uma penumbra, e imediatamente saíram e fecharam a porta. Voltaram depois de uns 30 ou 40 minutos. Não falaram nada. Tiraram-me do pau-de-arara. Depois me fizeram sentar, ainda despido, numa cadeira em frente a uma escrivaninha. Um dos torturadores tomou o lugar do outro lado da mesa e começou a me fazer uma série de perguntas para o preenchimento de uma ficha burocrática, tipo um prontuário, cujos dados – diga-se de passagem – já possuíam: nome ...; data de nascimento ...; nacionalidade ...; natural de ...; nome do pai ....; nome da mãe ..., etc.

Na verdade, voltei à sala de torturas do quarto andar do Deops umas quatro vezes, além destas a que me refiro nos parágrafos anteriores. Os interrogatórios comportavam sempre a utilização da cadeira-do-dragão e/ou o pau-de-arara. Uma tarde, voltei juntamente com Carlos Takaoka. Fomos outra vez torturados juntos. Nada de muito diferente do modo como o fizeram na Oban.

Caveiras, tíbias e acareações

Mas no Deops paulista não era apenas na sala de torturas do quarto andar que a Ordem Política e Social se implantava pelo terror –  embora aquela fosse o local tecnologicamente mais preparado para este fim.

As acareações eram momentos de muita violência, mas costumavam ocorrer em salas de delegados, mesmo quando era necessária a utilização do magneto. Enfim, os telefones de campanha são portáteis.  

Várias vezes fui acareado ou interrogado em conjunto com outros companheiros ou companheiras. Sempre com muita  pancadaria. As acareações eram feitas geralmente em salas de delegados ornamentadas sem qualquer pudor pelo símbolo da Escuderie Le Coq/Esquadrão da Morte: a caveira com as duas tíbias cruzadas.

Uma das acareações, presidida diretamente pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, e para a qual foram levados também Misael e Margarida (Guida), consistiu, entre outras coisas, no reconhecimento de fotos de supostos militantes (do movimento estudantil, da greve de Osasco ou de organizações clandestinas) que constavam de diversos álbuns. Havia um álbum também sobre o Projeto Rondon – programa oficial que reunia estudantes voluntários e de férias para atendimento às populações carentes dos chamados “grotões” de todo o país.

Como insistíssemos os três em não identificar qualquer das fotografias, passamos a levar todo tipo de bordoadas, tapas, socos, pontapés e “telefones”. A irritação dos celerados contra Margarida era particularmente grande: além do entendimento que tinham da condição feminina, ficava clara uma indisfarçável misoginia que se tornava óbvia através dos gritos e xingamentos daquela mais de uma dezena de tiras. “Mulher tem que cuidar da casa e dos filhos”; “vou enfiar o cano de uma metralhadora em sua b... para ver se refresca a memória”; “na cama essa daí deve se lembrar de tudo”; “puta”, “putana”, “vadia”, “vagabunda”, “biscate”, “vaca de terrorista”, “galinha” eram apenas alguns e dos mais leves xingamentos que couberam a Guida naquela noite. Fomos ainda ameaçados de ser levados para “dar uma volta na estrada de Santos” e sermos “encontrados no dia seguinte com a boca cheia de formigas” – clara alusão à maneira como operava o Esquadrão da Morte na eliminação dos seus desafetos. Por ordem do delegado Sérgio Paranhos Fleury, a sessão se encerrou com Margarida sendo espancada e arrastada pelo corredor do quarto andar – os tiras ameaçavam raspar-lhe os cabelos “para evitar piolhos e outras doenças”, e/ou estuprá-la.

Numa outra noite fomos interrogados e acareados – Margarida (a Guida) e eu – durante horas, pelos dois agentes do Cenimar (Santiago e Marinheiro). Nessa ocasião, além dos acontecimentos semelhantes àqueles descritos no parágrafo anterior, houve também a aplicação de choques elétricos (magneto). A partir de um determinado momento, fui retirado da sala, onde Guida permaneceu.

O terror do cotidiano

Poderia descrever diversas outras cenas escabrosas das quais fui objeto ou que presenciei contra meus companheiros e companheiras nas salas daquela casa especializada em Ordem Política e Social ao longo dos três meses que permanecemos ali seqüestrados. Pouco acrescentariam, no entanto – em termos de novidade – ao que já está escrito.

O dia a dia no Deops comportava sempre uma grande tensão e no tornávamos a cada instante testemunhas de violências indescritíveis:

Todos os dias da semana (sábado e domingo eram geralmente exceções – naquela repartição pública se obedecia quase que com perfeição às normas burocráticas) sempre havia um ou mais dos companheiros ou companheiras presos que eram levados para interrogatório, nos mais diversos horários. Nessas ocasiões, a espera era uma angústia interminável, pois não sabíamos o que lhes aconteceria, ou mesmo se voltariam com vida. A regra era que chegassem cada vez mais arrebentados.

Numa tarde, pouco depois de nossa chegada (provavelmente ainda no mês de setembro) Renato Tapajós foi levado para o quarto andar. Algumas horas depois, quando desceu, além de novas escoriações, estava ensangüentado: haviam-lhe desferido uma coronhada numa das orelhas que sangrou, molhando-lhe parte do rosto, pescoço e encharcando sua camisa.

Por volta do final de setembro, chegou à cela 2 um jovem de cerca de 24 anos. Chamava-se Sérgio (não me recordo o sobrenome). Ele e sua mulher (que – se não me engano – chamava-se Ana) haviam sido presos sob a suspeita de manterem algum vínculo com a Ação Popular (AP). Sérgio foi levado para a tortura diariamente durante uns dez dias. No final, já não conseguia andar, precisávamos carregá-lo para ir ao banheiro ou para tomar banho, e seus lábios estavam totalmente queimados e secos dos choques. O casal foi solto em pouco tempo e nunca mais soubemos deles.

Durante a segunda quinzena de outubro eram sobretudo os militantes presos da Ação Libertadora Nacional (ALN) que subiam para o quarto andar. O delegado Sérgio Paranhos Fleury cuidou pessoalmente do caso. Na cela 2, estava conosco naquele tempo Paulo de Tarso Venceslau, militante daquela organização. Durante a última semana de outubro ele foi levado quase todas as noites para ser interrogado. Voltava sempre e cada dia mais arrebentado. Contra ele – além do pau-de-arara e choques – utilizaram diversas vezes o afogamento, introduzindo-lhe um tubo (ligado a uma torneira) na boca ou nas narinas. Em várias ocasiões chegou carregado e molhado. Certa feita, sangrava por uma das narinas.

Ainda que estivessem em outras celas, presenciamos várias vezes a chegada de, entre outros, Maria Aparecida dos Santos, Manoel Cyrillo de Oliveira Netto e Carlos Eduardo Fleury (três militantes da ALN) que desciam arrebentados depois de serem torturados, quando passavam pelo corredor em frente à nossa porta, rumo aos seus xadrezes. É importante chamar a atenção para o fato de que Carlos Eduardo Fleury continuou sendo tortuardo mesmo depois de haver tentado suicídio, cravando uma tesoura no peito.

Uma mulher presa naquele mesmo período, de apelido (não era nome-de-guerra) Tiana e acusada de manter ligações com a ALN, não resistiu: transpôs o limiar da razão. Delirou diversas vezes.

Foi também no mês de outubro que chegou ao Deops Hilda Gomes da Silva. Seu marido, Virgílio Gomes da Silva – o Jonas, acabara de ser assassinado sob torturas na Operação Bandeirantes e seus quatro filhos menores lhe haviam sido tomados e permaneciam desaparecidos.

E assim era o dia a dia.

Além disto, muitos dos delegados e tiras costumavam descer à carceragem do Deops e fazer uma forte gritaria (às vezes com armas nas mãos), dando murros, coronhadas e chutes nas portas das celas, xingando e ameaçando os presos e presas.

No final de novembro fui chamado e levado à sala do delegado Edsel Magnotti. Enfim, chegara o meu dia de fazer o chamado depoimento em cartório. Em cartório, mas sob a ameaça permanente de voltar a ser torturado. Em cartório, mas regado de gritos e alguns tapas. Esses depoimentos em cartório eram enviados à Justiça Militar e serviam de base para a decretação formal de nossas prisões preventivas, quando nos tornávamos sub judice, tendo fim portanto a condição de seqüestrados e desaparecidos. Aliás, foi nesta condição de seqüestrados que muitos desapareceram para sempre.

(Sobre as torturas a que fui submetido, consultar – entre os documentos anexados a este processo – os depoimentos das testemunhas Misael Pereira dos Santos, Renato de Carvalho Tapajós e Vicente Eduardo Gómez Roig, com os quais estive preso na Oban, Deops, Tiradentes, Carandiru e Penitenciária do Estado. Ver também a minha foto tirada cerca de uma semana depois da chegada ao Deops, e também anexada).

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Esta é a Parte 3 de "Relato de Prisão", depoimento oficial entregue por Alípio Freire à Comissão de Indenização dos perseguidos pela ditadura no Estado de São Paulo. No relato, o jornalista registra os dias que antecederam sua prisão, a rotina no cárcere e as sequelas sofridas pela tortura.

Brasil de Fato, que publica o material pela primeira vez, com exclusividade, dividiu o documento em quatro partes. A parte 4 será públicada no próximo domingo (24).

Edição: Poliana Dallabrida