da dor à luta

Artigo | 500 mil mortos: o luto, as mulheres e a justiça

"A pandemia da covid-19 encontra o Brasil nas mãos de um governo que tem como plano deixar que as pessoas morram"

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
"Dor, sofrimento, raiva, desconsolo, inconformidade e saudade são os sentimentos que tomam conta de um país" - Rodrigo Zaim

Ultrapassamos a vergonhosa marca de 500 mil vítimas da covid- 19. Dor, sofrimento, raiva, desconsolo, inconformidade e saudade são os sentimentos que tomam conta de um país. Perdemos tanto e perdemos tantos. O luto toma conta dos que ficam e ganha novos contornos. Afinal, são milhares os que se foram, e milhões os que choram.

A pandemia encontra o Brasil nas mãos de um governo que tem como plano deixar que as pessoas morram. Além da falta de políticas de combate à pandemia, o projeto de morte se faz visível na falta de reconhecimento das perdas. O governo mata e não fala sobre as mortes.

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Sem o reconhecimento das perdas pelo Estado e de sua responsabilidade em preservar as vidas, a morte de um ente querido é tratada como uma casualidade frente ao vírus, portanto um tema privado e que deve ser resolvido de forma privada.

O mercado prontamente fragmenta nossas dores e lucra com medicamentos para apaziguar os nossos sofrimentos. Já imaginou quantos antidepressivos foram vendidos nesse último ano? O sofrimento certamente não deixaria de existir só por ser nomeado pelo governo, mas seria tratado como um problema coletivo, demandando ações para evitar outras mortes.

Trazer o luto para o espaço público é urgente. As análises feministas nos ajudam a politizar aspectos da esfera privada - em relação ao corpo, sexualidade, o trabalho doméstico e de cuidados - e trazem a noção de sustentabilidade da vida, ou seja, tudo que é feito para que a vida seja possível, incluindo o luto.

As medidas de isolamento social impedem que familiares e amigos realizem seus ritos e velórios, tão importantes, algo que reforça ainda mais a experiência privada da dor, que pode e deveria ser compartilhada.

No cotidiano mais precário da maior parte do povo, somos nós, as mulheres, que trabalhamos pelo bem estar da comunidade, gerimos as necessidades de familiares e vizinhos, sustentando vínculos comunitários.

Na pandemia, estamos sobrecarregadas pelo trabalho doméstico, pela necessidade de cuidado com as crianças e idosos, pelas longas horas de trabalho mal remunerado, mas também pelo cuidado emocional. Essa sobrecarga é ainda maior entre as mulheres negras, seja porque 63% das casas comandadas por elas estão abaixo da linha da pobreza, seja porque a taxa de letalidade da covid-19 é substancialmente maior entre não brancos (Proadi-SUS).

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As mortes dos que amamos desorganizam a vida de quem fica. Desde coisas simples, como não conseguir realizar tarefas cotidianas por um tempo, perda de apetite, dores físicas, até a perda de sentido vital. Essa realidade que muitos chamam de luto demanda cuidados que têm sido assumidos em geral pelas mulheres. É o cuidado da comunidade e das pessoas mais próximas que tem tornado a vida possível em meio a um regime de mortes.

Mas cuidar dos que choram suas perdas em um contexto de pandemia não é algo que pertence apenas ao âmbito da afetividade. O perigo de olhar apenas para essa dimensão é contribuir para o aprofundamento da invisibilidade do trabalho de cuidados e a desresponsabilização do governo pelas perdas no seu conjunto.

A solidariedade e o amor são partes essenciais de nossas relações e têm um enorme potencial rebelde para enfrentar regimes que promovem a morte

Não é a primeira vez que fazemos isso.

As Mães da Praça de Maio, na Argentina, os movimentos de Direitos Humanos ao denunciar os desaparecimentos de militantes que lutaram contra a ditadura, as Mães de Maio no Brasil, e muitas expressões de organização das mulheres negras nas periferias das grandes cidades. Todas nós respondemos à morte exigindo justiça. Não por que as perdas possam ser reparadas, mas porque a memória dos que se foram vive em paz em nós quando a justiça se torna realidade.

No dia 21 de junho, foram acesas 500 velas para lembrar as vítimas da pandemia no país, na escadaria do Largo da Memória, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo. Como parte da Campanha Nacional Fora Bolsonaro, pedimos “vacina no braço e comida no prato”. Esse ato é a triste sequência de outros dois, quando o Brasil chegou às marcas de 300 mil e 400 mil mortos.

Agora, com mais de meio milhão de vidas perdidas, atos semelhantes acontecem desde o dia 18 de junho em todo país, organizados pela Marcha Mundial das Mulheres, organismos ecumênicos e igrejas da articulação Respira Brasil.

Durante o ato, lemos os nomes de algumas das 500 mil pessoas que homenageávamos. Filhos das minhas amigas, maridos de pessoas que nos escreveram pelas redes sociais, professores de quem sentiremos saudades, artistas, amigos e amigas, irmãs e irmãos, pais e mães. Gente que faz muita falta.

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Quero lembrar de alguns entre tantos outros:

Cleonice Gonçalves – primeira pessoa a morrer de Covid no Brasil, em março de 2020.empregada doméstica, viveu trabalhando e morreu após contrair o vírus possivelmente na casa da patroa que havia testado positivo.

Paulo José de Paula Medeiros – o dia em que Paulo morreu foi o mesmo em que o Brasil atingiu 5.000 pessoas mortas por covid 19. Esse foi também o dia em que Jair Bolsonaro, quando questionado pelo número de vidas perdidas, respondeu: “E daí? Quer que eu faça o quê?”

Cuidamos para que a vida seja possível e lutamos para derrotar a morte e os que a promovem. Em memória dos que se foram e pela vida do povo.

 

*Sarah de Roure é militante da Marcha Mundial das Mulheres de São Paulo

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vinícius Segalla