EMERGÊNCIA SANITÁRIA

Países que concentram maioria das vacinas atravessam 4ª onda de covid-19 causada pela delta

Concentração de vacinas criou "ilhas" de pessoas imunizadas, mas não contribuiu para frear a pandemia no mundo

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Centro de vacinação no Missouri. Apenas 4 em cada 10 habintates do estado dos EUA tomaram vacina contra a covid-19. - Spencer Platt/Getty Images via AFP

A covid-19 infectou 218,5 milhões de pessoas e causou 4,5 milhões de mortes em todo mundo, ainda assim a Organização Mundial da Saúde (OMS) adverte que a pandemia está longe de terminar. Apesar do desenvolvimento de vacinas e do maior conhecimento científico sobre o vírus sars-cov2, o surgimento de novas variantes dificulta estabelecer uma previsão de fim da crise sanitária global.

Na última semana de agosto foram contabilizados 4,4 milhões de novos casos e 67 mil mortos, mantendo uma tendência de diminuição de contágios e mortes. No entanto, a concentração de imunizantes nos países ricos não colabora para frear os contágios.

Desde o início da emergência sanitária, a OMS defende a distribuição equitativa de vacinas, mas a verdade é que os países ricos concentram 70% de todos os imunizantes produzidos no mundo. Até o momento foram aplicadas 5,2 bilhões de doses em todo o planeta, cerca de 27% da população global foi imunizada, porém algumas nações ainda não tiveram acesso a nenhuma dose.


Ranking dez países mais afetados pela pandemia de covid-19 / Fernando Bertolo / Brasil de Fato

Os Estados Unidos concentram a maior quantidade de fórmulas, com mais 200 milhões de doses de reserva de mercado para 2022, e possuem 51,9% da população completamente imunizada. No primeiro semestre do ano, as autoridades estadunidenses tiveram que descartar 60 milhões de doses da fórmula da Pfizer que iriam perder a validade e não haviam sido aplicadas. 

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Desde julho o país enfrenta um quarta onda de contágios, na qual crianças e adolescentes são os mais afetados, com uma média de 300 infectados por dia, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC – siglas em inglês).

Os EUA também continuam liderando o ranking mundial da covid-19, com 39,3 milhões de casos confirmados e 638 mil falecidos. Em segundo lugar está o Brasil, com 20,8 milhões de casos, mais de 518 mil falecidos e cerca de 30% da população imunizada. 

“Os países ricos se imunizarem e não haver imunização para os países periféricos cria sim um problema de descontrole. Algo que a OMS alerta desde o começo. Enquanto não houver controle da pandemia em todos os países, também não haverá nos países ricos”, afirma o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado.

Na Europa a situação não é diferente. O continente vive a quarta onda de contágios desde julho, que coincide com a temporada de verão e a flexibilização do isolamento social para incentivar o turismo. Ainda que a média de imunização supere 50% da população, entre os dez países mais afetados no mundo, seis são europeus.

A Rússia é a 4º do ranking, com 6,9 milhões de casos e apenas 25% da população completamente imunizada, apesar de ter desenvolvido cinco fórmulas próprias. Em seguida, está o Reino Unido, com 6,8 milhões de contaminados e 64% da população vacinada, a França, com 6,5 milhões e 60% de imunizados, e a Turquia, com 6,4 milhões de casos e 45% de imunizados. Já a Espanha é o 9º país do ranking, com 4,8 milhões de infectados e 71% de vacinados, enquanto a Itália é o 10º, com 4,5 milhões de doentes e 60% da população com ciclo completo de vacinas.

“A circulação do vírus continua muito alta, o que dá condições para o surgimento de novas variantes. Na Europa é isso que está acontecendo com a introdução de uma nova variante altamente contagiosa, como a delta”, analisa a médica doutora em imunologia e professora da Universidade do Chile, Mercedes López Nitsche.


O Brasil seria um dos países mais capacitados para promover um polo de produção de vacinas na América Latina, segundo especialistas / Marcos Nascimento / Fotos Públicas

No continente asiático, a Índia é responsável pelo envasamento de 32% das vacinas de todo o mundo, no entanto só conseguiu imunizar cerca de 11% da sua população e permanece como o segundo país com mais infectados em todo planeta: 32, 8 milhões de doentes e o terceiro em mortes com 439 mil decessos.

O Japão viveu um boom de casos logo após a realização dos Jogos Olímpicos de Tóquio, com médias de 21 mil casos diários, um total de 1,5 milhão de infectados, 16.123 falecidos, e pouco mais de 46% de japoneses imunizados. A China voltou a adotar lockdown em regiões que tiveram o pior surto de covid-19 desde o início da pandemia, em Wuhan. Depois da suspensão de voos e a realização de 9 milhões de testes, o governo chinês conseguiu conter o avanço do vírus.  

“Estamos vivendo um dos maiores níveis de incerteza desde o início da pandemia, porque ainda não sabemos como será o comportamento da variante Delta”, afirma Mercedes López.

Novas variantes

A combinação vacinação lenta, alta circulação de pessoas e convivência entre vacinados e não imunizados confere o ambiente perfeito para o surgimento de novas variantes. A OMS alerta que a variante delta não será a última a surgir. Com a alta capacidade de mutação do vírus, podem ser identificadas novas cepas, inclusive mais resistentes e contagiosas.

A taxa de reprodução das primeiras cepas identificadas do vírus sars-cov2 era de 2,5, o que significa que uma pessoa infectada poderia transmitir a doença para duas ou até três pessoas. No caso da variante delta, o número sobe para até sete.

“Essas taxas de imunização atuais não são suficientemente altas para controlar a variante. Para isso, você deveria vacinar 100% da população e ainda assim é possível não conseguir atingir essa meta de 85% de imunizados.”, comenta o médico e advogado sanitarista, Daniel Dourado.

A nova variante já é a mais presente nos Estados Unidos e no Brasil, e, segundo a OMS, deverá ser a cepa predominante no mundo até o final de 2022.

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“É natural que a delta seja predominante porque é assim que o agente infeccioso se propaga: aquele que estiver melhor adaptado será o dominante e as outras variantes tendem a sumir”, comenta Dourado.

Além disso, alguns estudos apontam que algumas vacinas podem perder sua efetividade após seis meses da aplicação, levantando a hipótese da necessidade de uma terceira dose. Para os especialistas, nenhum país está livre de viver novas ondas de contágios.

Na última semana foi identificada a variante “mu”, que causou 4600 infecções e está presente em 39 países, entre eles a Colômbia. A OMS ainda estuda o comportamento da nova cepa.

"O coronavírus está mais forte e mais rápido, mas isso não muda o plano para controlá-lo, já que ele funciona. Só precisamos ser mais rápidos e distribuir as vacinas de maneira equitativa. Se não fizermos assim, estamos lutando contra nós mesmos", declarou em coletiva de imprensa Mike Ryan, diretor executivo da OMS.


A OMS prevê que a variante Delta seja predominante no mundo até o final de 2022, podendo estender a emergência sanitária global até final de 2023 / Carlos Bassan / Fotos Públicas

América Latina

Apesar da quarta onda na Europa, a América Latina continua sendo uma das regiões mais afetadas pela pandemia. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), somente uma em cada quatro pessoas na região foi vacinada, com uma média de 20% da população latino-americana recebendo ao menos uma dose. Cerca de 1/3 das mortes por covid-19 notificadas em todo o mundo estão na América Latina, sendo o Peru a nação com maior taxa de letalidade do mundo, cerca de 5,9 mil mortos a cada milhão de habitantes.

O Chile e o Uruguai são as únicas nações com quase 70% de imunizados, porém a alta circulação de pessoas no território nacional faz com que as taxas de hospitalização continuem altas. Cerca de 81% dos hospitais chilenos estão ocupados com pacientes de covid-19.

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“Devemos conter rapidamente a circulação do vírus, já que caso o vírus continue se dispersando pelo mundo, sempre teremos a possibilidade do surgimento de uma nova variante que coloca o mundo em xeque outra vez”, alerta López.

A Opas fez um novo chamado por doações internacionais para reunir 540 milhões de doses para vacinar pelo menos 60% dos latino-americanos até o final de 2021.

“Convocamos todos os países com doses excedentes a compartilhar rapidamente esses imunizantes com a nossa região, onde teriam um impacto para salvar vidas”, declarou a diretora geral da Opas, Carissa Etienne.

Para os organismos multilaterais, a América Latina tem sido afetada de maneira “desproporcional” por aspectos políticos e econômicos que impedem a aceleração da imunização e da aplicação de quarentenas radicais.

Para isso, a Organização Pan-Americana da Saúde anunciou a criação de uma plataforma para fabricar imunizantes na América Latina. A primeira iniciativa seria transferir tecnologia para que os países possam replicar fórmulas existentes.

“A proposta é interessante, mas vai depender da suspensão das patentes que está em discussão na Organização Mundial do Comércio. Não só a vacina, mas toda a cadeia produtiva está protegida pela propriedade industrial. Então os países dependem disso para não sofrer sanções”, explica o advogado sanitarista Daniel Dourado.

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Para a médica infectologista. a proposta de criar uma plataforma regional deveria fazer parte das políticas públicas de saúde de governos latino-americanos.

“Não basta que as indústrias farmacêuticas instalem suas estruturas nos nossos países. Devemos criar um polo regional. Do ponto de vista geopolítico, essa questão é estratégica. Avançar nesse aspecto nos permite descolonizar a produção de conhecimento. Nós temos condições de fazer isso no Chile, no Brasil, no México, Colômbia, Peru e outros lugares”, ressalta.

O levantamento das patentes entrou em debate em outubro de 2020 na OMC, mas foi barrado três vezes pelo voto contrário dos Estados Unidos e da União Europeia.


A OMS prevê que a variante Delta, até 50% mais contagiosa que a cepa original do vírus sars-cov2, será predominante no mundo até final de 2022 / NIAID / Fotos Públicas

Novas plataformas

A pressão exercida pelos países ricos e a concentração de mercado das vacinas também influenciou na efetividade do Consórcio Covax, lançado pela OMS com a  Aliança para a Vacinação (Gavi) e a Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (Cepi). O objetivo é reunir fórmulas suficientes para imunizar ao menos 20% da população de cada país que assinasse o acordo.  

Segundo os últimos dados oferecidos, até julho, o Brasil e o México  foram os países mais beneficiados com doses, porém outras nações, como a Venezuela, ainda esperam pelo primeiro lote.

“O consórcio Covax depende da doação de países ricos. A ideia é muito boa, inclusive é anterior à pandemia, mas a lógica de distribuição é a lógica de mercado”, destaca Dourado.

O lobby das maiores farmacêuticas afetou o mercado global. Na Finlândia, em maio de 2020, cientistas desenvolveram uma fórmula contra o novo coronavírus, apelidada de "Linux", em alusão ao sistema operacional alternativo ao Windows, já que os pesquisadores da Universidade de Helsinki pretendiam distribuir a fórmula livremente, sem patentes.

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Porém o governo optou por comprar doses da Moderna ao invés de investir na vacina própria. O governo de Vladimir Putin também acusa a União Europeia de fazer pressão política ao negar o acesso de turistas que tenham se vacinado com a Sputnik V. 

No dia 1º de setembro, a Organização Mundial da Saúde inaugurou, em Berlim, um Centro de Inteligência para Prevenção de Pandemias e Epidemias, para, segundo o diretor geral, Tedros Adhanom, diminuir os problemas de "cooperação multilateral" diante de emergências sanitárias. 

Enquanto alguns países continuam esperando pelas doações, outros começam a aplicar terceira dose em pacientes com mais de 60 anos. Para os especialistas a prioridade deveria ser aumentar a taxa de vacinação em todas as regiões antes de aplicar doses de reforço. 

“Se devemos diminuir a dose viral no mundo, isso significa que a distribuição das vacinas deve ser equitativa. Deveríamos criar um sistema de pesquisa biomédica descentralizada, no qual Europa e EUA não sejam o centro, mas que outros países também tenham condições de desenvolver e produzir imunizantes, inclusive para pandemias futuras”, defende Mercedes López.

Edição: Arturo Hartmann