Coluna

Doxa, epistemé, techné

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Resumindo, doxa é a opinião do povo, epistemé é a opinião dos cientistas ou especialistas e techné é uma opinião ou parecer técnico ou artístico - Jornalistas Livres
A democracia não era domínio da techné ou da epistemé, e sim domínio da doxa

Por José Carlos Garcia*

 

Chega a ser absurdo que, a esta altura do campeonato, diante de crises sanitária, institucional, econômica, hídrica, e mais qualquer outra que se queira escolher – pois que o Brasil atual parece um pot-pourri de todas as crises, se tenha de discutir a racionalidade nas tomadas de decisão em sistemas democráticos, e o papel da ciência nisso tudo. Se retomo o tema depois do artigo nesta coluna em 01/07/2021, é porque ele segue em voga como cenário da peça rocambolesca, não sem tonalidades de tragédia, em que a conjuntura nacional se transformou. A simples negação da vacina, do uso de máscara e do distanciamento social, armas únicas e exclusivas contra o SARS-Cov-2, já seria motivo suficiente para a insistência, mas a crise energética que obviamente se avizinha, tocada pela crise hídrica, agravam o problema. O próprio achincalhamento das instituições democráticas em nome de uma suposta democracia e “defesa da liberdade contra o comunismo”, em que se finge confundir liberdade de expressão com pregação antidemocrática e incitação a atos violentos, tampouco se afasta do quadro geral: afinal, o que é democracia, o que é opinião e qual o papel da ciência nesse imbróglio?

Para enfrentarmos essa discussão, proponho um breve retorno a Sócrates e a Platão e à diferenciação entre três esferas de racionalidade: doxa, epistemé e techné. Grosso modo, a doxa é a opinião da pessoa comum, do comum do povo, do cidadão ou cidadã sem consideração de sua formação ou especialidade; epistemé é a opinião que deriva de uma racionalidade objetiva, a partir de um conjunto sistematizado de análises e informações, aquilo que, hoje, nós chamaríamos de pensamento científico; e techné é a racionalidade necessária para o desempenho de uma tarefa que demande conhecimentos específicos para sua realização, ou seja, a racionalidade ligada a uma arte ou técnica. Resumindo, doxa é a opinião do povo, epistemé é a opinião dos cientistas ou especialistas e techné é uma opinião ou parecer técnico ou artístico.

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O rigor das distinções socráticas e platônicas quanto à arte e à técnica, à ciência e à opinião corrente insere-se no debate com os sofistas, que sustentavam que, para cada questão, há sempre duas proposições que se contrapõem entre si, de tudo se podendo dizer validamente o contrário, e que a arte da polêmica pode ser ensinada a qualquer um, nada havendo propriamente de verdadeiro, justo ou certo. Em outras palavras, aos sofistas inexistia qualquer sentido de verdade nas coisas, tudo podendo ser afirmado sem que se pudesse provar a veracidade ou falsidade substancial de qualquer afirmação. Só o que interessa é a capacidade de persuadir, de convencer. É desse relativismo absoluto, inclusive, que decorre o uso corrente da expressão sofisma, que deriva dos antigos sofistas: um argumento sabidamente falso que pretende, ardilosamente, enganar ou calar o oponente em uma discussão.

Contra essa postura relativista, Sócrates e Platão sustentavam a possibilidade de demonstração da verdade de uma afirmação, ainda que cada esfera de racionalidade se articulasse internamente de formas diferentes e, portanto, envolvessem argumentações distintas.

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Ora, a democracia não era, para os antigos gregos, domínio da techné ou da epistemé, e sim domínio da doxa: é precisamente porque a opinião de todos os cidadãos é equivalente entre si que, após o debate, é preciso deliberar por maioria. Não há como sustentar o princípio democrático da maioria senão a partir da consideração de que, abstratamente, todas as opiniões são equivalentes, de que nenhuma é melhor do que a outra. Curiosamente, Platão foi, crítico da democracia e defensor da aristocracia que era, dos primeiros na História a sustentar uma epistemé política, e que apenas os especialistas deveriam governar (CASTORIADIS, Cornelius. Imaginário político grego e moderno. In As encruzilhadas do labirinto: A ascensão da insignificância. v. 4. São Paulo, Paz e Terra, 2002, p. 192).

Dentre as distinções entre o imaginário político dos gregos antigos e o do Ocidente moderno, Castoriadis lembra que muitos, hoje, também defendem algo impensável para os antigos: a consolidação de uma techné ou epistemé política, e que apenas os especialistas deveriam decidir os rumos das sociedades, num modelo variado, múltiplo, contraditório, que nós poderíamos genericamente chamar de tecnocracia – poucas coisas podem ser mais expressivas deste modelo do que a defesa intransigente da autonomia dos bancos centrais sob o neoliberalismo, e poucas contradizem mais a democracia do que isto.

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Há um gigantesco caminho a ser explorado entre as concepções gregas antigas da democracia como reino da doxa e as concepções atuais sobre democracia como mecanismo procedimental de decisão baseado no uso público da razão, e esse caminho fugiria demais dos limites deste texto. O que nos cabe dizer, aqui, é que numa sociedade digital e pós-industrial em que o conhecimento é o valor mais importante de todos, inclusive na produção, e em que a propriedade imaterial vale mais do que a material, a ciência se apresenta, ainda que problematicamente, como uma onipresença em todos os temas sensíveis do mundo, do aquecimento global às formas de enfrentamento de pandemias, como a de covid-19.

Esta onipresença, contudo, não se pode expressar como a de um “governo dos filósofos ou especialistas” platônico, no sentido de que os cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima da ONU, o IPCC, governassem a Terra, ou onde técnicos da Organização Mundial de Saúde – OMS e dos Ministérios da Saúde governassem os países em meio à pandemia. Ao contrário, trata-se de informar e qualificar a doxa, permitir que o cidadão comum compreenda as informações técnicas e científicas e o conjunto de riscos envolvidos nos processos de decisão, de modo que a opinião politicamente relevante seja uma opinião qualificada, ainda que de pessoas comuns ou não especializadas.

É por isso que, no mundo todo, grupos de trabalho ou painéis de cientistas foram formados pelos governos responsáveis e prudentes para informar as tomadas de decisão quanto às políticas sanitárias a serem adotadas para o controle e prevenção do contágio na pandemia. Não são os cientistas que tomam as decisões, e sim os governos democraticamente eleitos pelo voto, mas estes não o fazem a partir de seu achismo irresponsável, e sim do diálogo constante com as evidências científicas mais relevantes e recentes.

No outro extremo dessa tensão política não está a opinião ou doxa, e sim o relativismo sofista de que nada é verdade ou mentira. Fantasiada de liberdade de expressão, a ideia de que as pessoas têm o direito de decidir por si mesmas o que é ou não eficaz para impedir o contágio ou como tratar os doentes é tão ridícula quanto delegar a cada ser humano uma opinião sobre se o planeta é plano ou esférico. É não apenas uma distorção, mas a própria negação do que seja opinião e liberdade de expressão, a própria fake news das fake news. As opiniões incidem sobre fatos, não sobre quimeras.

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A ciência ocupa um lugar central nas sociedades contemporâneas, não porque os cientistas devam dirigir o planeta, mas porque suas descobertas qualificam os processos deliberativos democráticos, a formação da opinião pública e o funcionamento da esfera pública. A liberdade possível num mundo em constantes perigos não é a de decidir, sem qualquer qualificação, se um dado científico é ou não verdadeiro, mas sim a de traduzir essa informação para pessoas comuns e analisar o nível de risco que as comunidades estão ou não dispostas a correr diante de tais perigos, a partir do conhecimento científico e técnico que deles se têm, o que poderíamos chamar de exercício de autonomia política dos povos.

O contrário é apenas uma corja de canalhas e imbecis dizendo, sob o falso manto rasgado da liberdade de expressão, cretinices e sandices de todo tipo que os cientistas descartaram inteiramente. A ignorância será sempre inimiga da sabedoria. A sabedoria está em, admitindo as limitações de cada um, integrar os ensinamentos da epistemé e da techné na soberania popular da doxa.

 

*José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo