Controle dos corpos

Projeto de Carlos Bolsonaro para proibir atletas trans de competir é barrado; entenda o debate

Para a antropóloga Bárbara Pires, o objetivo do proposta é reafirmar um posicionamento moral violento e regulador

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Em 2017, a polêmica em torno da competição de atletas trans efervesceu quando Tiffanny Abreu foi autorizada pela FIVB a jogar - Divulgação/ Bauru

A Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro considerou como inconstitucional a proposta do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), apresentada na última semana, com o objetivo de proibir que atletas transexuais participassem de competições esportivas na cidade. 

O Projeto de Lei foi barrado pela equipe de consultoria e assessoramento legislativo da Câmara de Vereadores, pois vai de encontro com três artigos da Constituição que definem a competência da União em temas como educação, cultura e esporte. A decisão foi publicada na última quinta-feira (23) no Diário Oficial do município. 

Apesar de não ter seguido em frente na casa legislativa, a proposta retomou o debate sobre o direito das pessoas trans de exercerem suas funções como atletas. Também sobre a intenção de Carlos Bolsonaro de reafirmar um posicionamento moral no debate político, através da negação da existência das pessoas trans.

Para explicar mais sobre o debate, o Brasil de Fato conversou com a antropóloga Bárbara Pires, pesquisadora de pós-doutorado no Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) que desenvolve pesquisas sobre ciência hormonal e intersexualidade, especialmente no que diz respeito a consensos científicos, protocolos médicos, atendimentos em espaços hospitalares e regulações esportivas.

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Segundo a pesquisadora, o objetivo do projeto de lei é reafirmar um posicionamento moral violento. O esporte, nesse sentido, serve como ambiente fértil para tentar regular as diferenças sociais. “Essa participação esportiva que hoje se preza pela inclusão social e igualdade de chances, na verdade, sempre foi um espaço de distinção e de privilégio”, explica.

Atualmente, o que decide sobre um atleta trans poder ou não competir é a medida hormonal. De acordo com regulamentação do Comitê Olímpico Internacional (COI), de novembro de 2015, mulheres trans precisam ter a quantidade de testosterona controlada para competir em equipes femininas em até 10 nanomol por litro de sangue nos 12 meses anteriores à competição.

Em 2017, a polêmica em torno da competição de atletas trans efervesceu quando Tiffanny Abreu recebeu da Federação Internacional de Vôlei (FIVB), a entidade reguladora do Vôlei, uma autorização formal para se inscrever em ligas femininas. No final daquele ano, se tornou a primeira atleta transexual a atuar na Superliga feminina pelo Bauru. 

“Faltam estudos comparativos de longa duração. Teríamos que ter estudos realizados de maneira ética por entidades e pesquisadores sem vínculo ou financiamento com as instituições esportivas que estabelecem essas políticas regulatórias. Então esses processos dizem mais, evidentemente, sobre as demandas sociais de organizar os sujeitos em categorias essencialmente masculinas ou femininas do que sobre a saúde esportiva dessas atletas”, complementa a pesquisadora.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato: O projeto de Carlos Bolsonaro é uma clara tentativa de criar normas que excluam e não aceitem os atletas/pessoas trans. Acredita que esse é um exemplo de que o esporte é o ambiente em que os discursos contrários à transexualidade encontram eco e se credibilizam pelas explicações biológicas?

Bárbara Pires: O esporte sempre foi um lugar de organização social. Historicamente o ambiente esportivo foi um espaço de cultivar sensibilidades ditas modernas. Aprender a estruturar o corpo e o comportamento para a vida na sociedade industrial.

Então, quando as primeiras instituições esportivas foram criadas, como COI, essas regras foram delimitadas por um grupo social bem rastreável. Homens, aristocratas, europeus. 

Inicialmente, a categoria feminina não foi incluída nesses eventos e, posteriormente, foi recebida influenciada por convenções sociais que ditavam as maneiras das mulheres aparecerem publicamente. Modalidades consideradas viris demais não eram permitidas para a categoria feminina. 

Ou seja, essa participação esportiva que hoje se preza pela inclusão social e igualdade de chances, na verdade sempre foi um espaço de distinção e de privilégio. 

Ao longo do tempo, as formas de inspecionar mulheres para serem elegíveis nesta categoria feminina foram mudando de acordo com os avanços médicos e científicos de cada época. As explicações supostamente biológicas de hoje, que buscam banir atletas trans do esporte, fazem o mesmo movimento de segregação e de desigualdade que conformou o histórico de institucionalização do esporte internacional. 

Então podemos dizer que a ansiedade em controlar corpos femininos sempre encontrou eco em explicações biológicas. O pânico moral ilustrado por esse projeto de lei não é diferente das exclusões anteriores.

O objetivo do projeto de Carlos Bolsonaro seria, então, reafirmar um posicionamento moral no debate político, através da negação da existência das pessoas trans?

O projeto de lei é uma peça de propaganda. Não conseguimos descolar o posicionamento moral da ação política, mas nesses últimos anos abandonamos certos consensos morais em torno da liberdade ou da integridade da pessoa humana para disputar politicamente as versões dessas categorias que fazem mais sentido para cada grupo social. 

Infelizmente, o Estado brasileiro foi dragado pelo pânico moral que influencia as mais diversas violações dos direitos humanos consolidados. Então, sim, o objetivo é reafirmar esse posicionamento moral a partir de ações coordenadas – institucionalmente e em rede – que reafirmam em discurso a validade dessas concepções sociais.

Só que são compreensões de mundo muito violentas. 

Essas concepções sociais negam a existência de pessoas trans, a possibilidade de autonomia e de reconhecimento social a qual todos temos direito perante o Estado brasileiro e, mais além, fomentam um discurso de apagamento e de violação dos seus corpos e identidades. É algo para se combater com seriedade.

Quais são os critérios utilizados para instituir que os corpos de pessoas trans podem ou não podem praticar esportes no gênero assumido por elas? 

O critério é unicamente hormonal. Temos diferenças entre homens e mulheres em relação às taxas e aos efeitos dos hormônios esteroidais com a vinda da puberdade. Então especula-se que atletas trans, no caso das mulheres trans, mantenham vantagens fisiológicas por terem passado por uma virilização hormonal durante a adolescência. Mesmo com as hormonioterapias em dia e possivelmente com as cirurgias de redesignação também realizadas. 

Então veja: esse critério é clínico. Parte de um olhar (e de um aprendizado desse olhar) sobre qual corpo feminino devemos aceitar e celebrar. 

Só que as mulheres existem com muita diferença. Assim como as taxas hormonais variam mesmo entre as mulheres cis. Esperar que uma atleta seja sempre “fêmea-mulher-feminina” é manter uma coerência normativa que nem sempre encontramos na vida biológica e material. 

Podemos mencionar também a expectativa de que as atletas sejam heterossexuais, um critério de elegibilidade e de visibilidade que só foi abandonado nas últimas décadas pelas instituições esportivas, pelas mídias, pelos estados-nacionais e por grande parte da sociedade. Mesmo assim, com muito custo, e claro que esse marcador ainda é um ponto sensível em vários contextos. 

Então o debate de hoje, sobre a inclusão de pessoas trans no esporte, nos ajuda a evidenciar outra categoria em disputa: o sexo. 

A concepção que temos do corpo – e consequentemente das definições de sexo e de gênero – precisa ser expandida e repactuada porque ele definitivamente não é binário nem imutável. O esporte é um cenário positivo precisamente por ilustrar a plasticidade do corpo humano em performar o que não era esperado. 

Devemos, então, abrir nossas categorias para incluir cada vez mais atletas que se qualifiquem para as competições em vez de restringir com base em concepções defasadas do que é a ciência hormonal, o corpo biológico e a identidade política dos sujeitos.

O que esse processo de verificação de gênero, enquanto determinação do sexo de um atleta, diz sobre os corpos de pessoas trans? Há ainda mais no esporte um processo de verificação e validação desse corpo?

O que ficou conhecido como “política de verificação de gênero” já foi nomeada, em outros momentos, de testagens sexuais. Atualmente, algumas instituições esportivas chamam de regulação de elegibilidade para a classificação feminina. São regulações diferenciadas para a população trans, por um lado, e para a população intersexo, por outro lado, apesar de serem similares na estabilização de uma taxa de normalidade hormonal. 

Todas as regulações mais recentes se estruturam pelo uso da testosterona endógena como marcador biológico que faz essa diferenciação dos tipos de corpos femininos e masculinos, assim como os rendimentos atléticos esperados para cada categoria. 

Mas a biologia não é tão binária assim. 

Nem em relação aos corpos naturais das pessoas intersexo, que borram a todo momento essas fronteiras rígidas do dimorfismo sexual, nem mesmo com o tipo de normalidade hormonal imposta para pessoas trans a partir de critérios de funcionalidade das pessoas cis.

Explico de outro modo, quero dizer que essas definições clínicas e científicas ainda estão sendo produzidas por pesquisadores de várias disciplinas. Ainda não podemos afirmar nada sobre diferenças no desempenho esportivo de pessoas trans ou intersexo em relação às pessoas cis porque faltam estudos comparativos de longa duração.

Teríamos que ter estudos realizados de maneira ética por entidades e pesquisadores sem vínculo ou financiamento com as instituições esportivas que estabelecem essas políticas regulatórias. 

Então, esses processos dizem mais, evidentemente, sobre as demandas sociais de organizar os sujeitos em categorias essencialmente masculinas ou femininas do que sobre a saúde esportiva dessas atletas. 

O que vemos, na verdade, é um pesado processo de debilitação dos corpos e de humilhação pública das atletas trans e intersexo que buscam inclusão social a partir do esporte.

Fonte: BdF Rio de Janeiro

Edição: Eduardo Miranda