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Rússia bate recordes de mortes por covid-19: por que a vacinação fracassa no país?

Com recorde de mortes na pandemia, campanha de imunização enfrenta consequências da falta da confiança da população

Rio de Janeiro (RJ) |

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Apenas 35,06% da população russa está completamente imunizada. - Kirill Kudryavtsev / AFP

A Rússia aumenta o tom para intensificar vacinação no país ao bater as mais altas taxas de mortes por covid-19 em toda a pandemia, mas o governo esbarra no negacionismo e na desconfiança da população.

Apesar de ter sido o primeiro país do mundo a registrar uma vacina contra o coronavírus, a Rússia enfrenta uma nova onda de casos e vem batendo recordes de mortes por covid-19. Apenas 35,06% (51,2 milhões de pessoas) da população russa completou seu esquema de imunização.

De acordo com dados oficiais, a Rússia registrou nesta terça-feira (16) 36.818 novos casos e 1.240 mortes por covid-19 em 24 horas, completando sete dias seguidos com uma taxa de mortalidade superior a 1.200 pessoas por dia.

Os números revelam a permanência de uma média recorde de óbitos em toda a pandemia na Rússia. No total, 255,6 mil perderam a vida por conta do coronavírus no país, somando 9,1 milhões de casos de infecção.

Mesmo com medidas como restrições de viagens, adoção de políticas de isolamento e, principalmente, a produção de uma vacina própria comprovadamente eficaz, os esforços do governo russo na promoção da imunização encontram dificuldades diante do negacionismo de parte da população e da desconfiança popular com as autoridades.

O biólogo químico e analista Alexei Kouprianov, em entrevista ao Brasil de Fato, destacou que a situação da pandemia na Rússia revelou uma complexidade política e cultural do país. O perfil anti-vacina está intrinsecamente ligado ao modo como o governo do presidente Vladmir Putin vem administrando o país nos últimos anos, criando um amplo cenário de falta de credibilidade, diz Kouprianov.

“Na realidade, a população não está representada nos seus interesses, e isso repercute em todas as sérias intervenções políticas para que as pessoas façam algo, e as pessoas simplesmente não acreditam no governo e não fazem isso”, acrescentou o biólogo.

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Apesar de destacar a importância de medidas como o desenvolvimento de uma vacina (a revista The Lancet comprovou que a Sputnik V possui uma eficácia de 91,6%) e a aplicação de medidas rigorosas de isolamento, o analista observou que o “primeiro erro foi a ausência de um plano concreto” de combate à pandemia, como o fato de não ter sido priorizada a vacinação de grupos de risco”.

População não desconfia apenas do Kremlin

A falta de confiança não está restrita ao Kremlin, a sede do poder governamental em Moscou. Instituições científicas e sanitárias também enfrentam críticas, o que abriu caminho para a disseminação de fake news e teorias da conspiração que minam a proliferação da vacina.

Uma das razões para esse descrédito seria a própria concentração de poder estatal, gerando uma precariedade na separação dos poderes no país.

“Nesta situação, imaginar que seja formado um centro de poder, como por exemplo, o Instituto Gamaleya [produtor da vacina Sputnik V], que na realidade é 100% estatal, é impossível. É tido como parte da máquina estatal”, argumenta Kuprianov, acrescentando que a comunidade científica sofreu um processo de desprestígio na Rússia em comparação com o período soviético.

Para tentar frear o aumento dos casos no final de outubro, o governo russo reagiu decretando um feriado remunerado em todo o país por um período de 11 dias. Apesar de surtir um efeito positivo, gerando uma queda no número de casos pela primeira vez em dois meses, a medida foi considerada modesta para reverter o número alarmante de mortes.

O demógrafo Alexei Raksha afirmou ao Brasil de Fato que as medidas de distanciamento adotadas no país foram “muito suaves” e pouco perceptíveis, mas que serviram para surtir algum efeito de desaceleração dos casos.

“O governo não quer fazer um lockdown por mais de uma semana não porque é impopular, mas porque não quer gastar dinheiro. Pois se é realizado um lockdown, é preciso gastar recursos. E existem recursos para isso. Mas não há vontade, por isso o lockdown é curto e muito suave”, destacou.

QR-Codes de vacinação e o paradoxo da polarização na Rússia

Na última sexta-feira (12), o governo apresentou no Parlamento dois projetos de lei sobre a obrigatoriedade de apresentação de QR-Codes de vacinação para o acesso da população a estabelecimentos e transportes públicos como trens e aviões. A expectativa é que as medidas possam ser aprovadas já em dezembro deste ano.

O anúncio dos projetos de lei gerou protestos contra as medidas em algumas regiões na Rússia, reunindo centenas de pessoas nas cidades de Ekaterinburgo, Irkutsk e Kamchatka.

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O demógrafo Alexei Raksha enfatizou que já é possível dizer que a “vacinação fracassou no país”. Segundo ele, “as pessoas não acreditam no Estado, e o Estado não acredita nas pessoas”. “Ninguém acredita em ninguém. Por isso, se o governo quer alcançar algo, ele precisa fazer apenas com o uso de recursos, não há alternativas”, completa.

Polarização

A presidência de Vladmir Putin costuma dividir a Rússia pelo o que se entende no país como “conservadores” e “liberais” - e isso também afeta a vacinação.

Os primeiros, comumente apoiadores do governo, compartilham dos valores tradicionais cristãos e nacionalistas defendidos pelo Kremlin, enquanto os liberais se unem às pautas progressistas mais disseminadas na Europa ocidental, além de defenderem como premissa a troca da presidência de Putin - que na prática está no poder desde 1999 e, segundo as recentes emendas na Constituição do país, pode ficar no cargo até 2036.

A singularidade que a crise da pandemia trouxe, desequilibrando as peças da relação da sociedade com a administração de Putin, foi de inverter os papeis de apoio ou não às medidas do governo.

Os tradicionais e mais ferrenhos críticos ao governo foram os primeiros a entrar nas fileiras da imunização, aderindo à campanha do Kremlin, enquanto os tradicionais e fiéis defensores de Putin se colocaram como críticos à campanha de vacinação.

O biólogo químico Alexei Kouprianov ainda destacou outro aspecto que caracteriza a anti-vacinação no país. Evitando cair em generalizações, ao lembrar que há rejeição da vacina e do uso de máscaras também entre os liberais, ele observa que há uma cultura conservadora e machista na Rússia que permeia o negacionismo em relação à pandemia. Segundo ele, é bastante disseminado o caso de pessoas que nunca querem demonstrar fraqueza diante da doença, por isso dizem "não vamos usar máscara, porque a doença não vai nos pegar".

“Junto com essa desconfiança do governo, existe uma coisa muito estranha, ligada a uma espécie de ‘última janela de liberdade’, porque liberdade política na prática não existe, então resta o próprio corpo – ‘meu corpo, minhas regras’, este slogan feminista que começou a aparecer aqui neste âmbito extremamente conservador e masculino”, completa o analista.

Edição: Thales Schmidt