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Saindo da colônia penal

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Hoje em dia tem sido comum que críticos tanto apressados, quanto ignorantes, ataquem estas fórmulas, como se elas apenas protegessem marginais e bandidos perigosos. “A polícia prende, o juiz solta” - Arquivo/Agência Brasil
A passagem é sintética e didática na dimensão dramática de seu alcance

Por José Carlos Garcia*

O princípio segundo o qual tomo minhas decisões é: a culpa é sempre indubitável. Outros tribunais podem não seguir esse princípio, pois são compostos por muitas cabeças e além disso se subordinam a tribunais mais altos. Aqui não acontece isso. (Franz KAFKA, Na colônia penal)

Em sua monumental pequena obra Na colônia penal, de 1914, Kafka, um dos maiores escritores de todos os tempos e lugares, descreve um mecanismo capaz de aplicar aos condenados o pior dos suplícios: funcionando quase autonomamente, um intrincado conjunto de agulhas, polias, engrenagens e roldanas imprimia em sua pele, com rebuscada caligrafia, a ofensa por eles causada, em lento, demorado, dolorosíssimo processo que culminava com a morte do apenado e o descarte de seus sangrentos dejetos.

Celebrado pelo oficial responsável pela aplicação de tão severa pena, o aparelho é visto com horror pelos olhos do explorador convidado pelo comandante da colônia para conhecê-lo.

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Aos profissionais da área jurídica, e talvez mais ainda aos juízes de formação e profissão, como eu, tanto quanto a desmedida violência do equipamento e a manifesta desproporção entre pena e delito que a novela descreve, causa horror uma parte do trecho inserto na epígrafe deste artigo: “A culpa é sempre indubitável”.

A passagem é sintética e didática na dimensão dramática de seu alcance – ela nega frontal e categoricamente um dos mais consolidados e fundamentais princípios da jurisdição criminal em todo o mundo ocidental, o in dubio pro reo (na dúvida, em favor do réu), cerne do princípio da presunção de inocência no processo penal que se espalhou por todas as Constituições do mundo a partir das duas grandes revoluções do século XVIII: a Revolução Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789.

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Outra maneira de se descrever a antiga fórmula, inspirada pelos americanismos crescentes em nossa sociedade (quase sempre de forma abusiva e distorcida), é a de que o réu, para ser condenado, deve ter contra si provas que levem o tribunal a uma condenação “beyond any reasonable doubt”, além de qualquer dúvida razoável.

Hoje em dia tem sido comum que críticos tanto apressados, quanto ignorantes, ataquem estas fórmulas, como se elas apenas protegessem marginais e bandidos perigosos. “A polícia prende, o juiz solta”.

Entretanto, há excelentes razões históricas para a presunção de inocência e a vedação a condenações que se façam com dúvidas razoáveis sobre a inocência do réu. Ao invés do que se diz, não são fruto de tecnicismos e elucubrações de juízes e advogados desconectados do mundo real, mas de motivações absolutamente simples e práticas, que qualquer pessoa consegue entender.

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Na Europa pré-Revolução Francesa, nos tempos das monarquias absolutistas, não era necessário um processo judicial regular, com amplo direito de defesa, para se condenar alguém, mesmo à morte.

Bastava que o quisesse o rei, a rainha, o imperador, com o que se vê não ser de todo descabida a caricatura da Rainha de Copas descrita por Lewis Carroll nas aventuras de Alice, ainda que, quando elas foram escritas, entre 1865 e 1872, o princípio da presunção de inocência já fosse largamente aceito na Inglaterra.

Mesmo quando a realização de um processo se impunha, por tradição ou pela lei, sua finalidade não era a de descobrir a verdade dos fatos, mas a de obter confissão, usualmente sob tortura: poucos exemplos podem ser mais evidentes do que os processos de heresia ou bruxaria movidos pela Inquisição.

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A respeito, muito interessante ver a reconstituição disso pela mão de Umberto Eco no romance O nome da Rosa, vertido para o cinema em 1986 por Jean-Jacques Annaud. Lamentavelmente, a prática de torturar para obter confissão não difere muito do que se vê em delegacias pelo Brasil afora, nos dias de hoje.

Foi preciso um longo caminho para que fossem aceitas, quase universalmente, as noções de que alguém só possa ser condenado quando houver contra ele provas claras de sua culpa, e que estas provas precisem passar por defesa e contraditório.

Pergunte ao mais empedernido defensor do “bandido bom é bandido morto”, ou da tese de que “direitos humanos só protegem bandido”, se ele gostaria de ser sumariamente julgado assim, por um grupo de extermínio, caso o acusado fosse ele ou alguém de sua família, ou se preferiria ter amplo direito de defesa, contraditório e saber que o ônus da prova da culpa é exclusivo da acusação.

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Pergunte, ainda, se desejaria cumprir sua pena numa cela de poucos metros quadrados, sem ventilação e a temperaturas infernais, com capacidade para seis pessoas, mas ocupada por cinquenta, com esgoto aberto e visitada por ratos e baratas, ou se, em vez disso, preferiria uma cela que atendesse os ditames dos direitos humanos. Dura muito pouco a coerência desse discurso quando o alvo não é um outro, mas o próprio.

“A culpa é sempre indubitável” é, ou ao menos certamente deveria ser, chocante para qualquer profissional da área jurídica, precisamente porque joga no lixo mais de 300 anos de história ocidental e, com eles, as bases de todo processo judicial como reconstrução narrativa dos fatos em busca de provas, a fim de assegurar a integridade do acusado, a punição apenas dos comprovadamente culpados e que a pena seja proporcional ao delito.

Essas presunções se baseiam em algumas exigências de conduta por parte de todos os sujeitos do processo – partes, advogados, membros do Ministério Público – mas seguramente elas exigem mais de juízes e juízas, cuja imparcialidade (não no sentido impossível de “neutralidade” filosófica, mas no literal, de não ter interesse no resultado do julgamento, de não querer nem favorecer, nem prejudicar o réu), é um pano de fundo indispensável para que o princípio da presunção de inocência, e, de resto, todo o devido processo legal, sejam viáveis.

Para quê serviria um amontoado de regras de garantia e previsões legais, se quem julga não é imparcial? Se quem julga combina o processo com a acusação ou com a defesa? Aliás, todas as garantias da magistratura, sem exceção – vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de subsídios e tantas outras – apenas e tão - somente se justificam de um ponto de vista democrático para preservar sua independência e, portanto, sua imparcialidade, a capacidade de julgar sem estar sujeito a pressões indevidas.

Quando o Supremo Tribunal Federal decidiu anular condenações na chamada Operação Lava Jato no HC 164.493 pelo reconhecimento da parcialidade do juiz da causa, portanto, a Corte não favorecia ou prejudicava a ninguém, apenas dizia aquilo que deveria ser escandalosamente óbvio a qualquer cidadão, mas muito particularmente a qualquer profissional da área jurídica e a qualquer membro da magistratura: juízes não podem combinar o curso do processo com acusação ou defesa, não podem sugerir iniciativas processuais, não podem indicar as provas que depois vão analisar, não podem perseguir ou proteger réus, porque todas essas iniciativas comprometem sua capacidade de julgar e tornam nulo, por inconstitucional, ilegal e imoral, seu julgamento.

Cada uma dessas escandalosas posturas são um escárnio à Constituição e às leis processuais, uma forma particular de corrupção (mas ainda assim corrupção!), um achincalhe com a magistratura como ela deveria ser e, em boa medida e pela mão de inúmeros juízes e juízas, de fato é.

Em boa hora, só o que o Supremo fez foi tirar de cima do Judiciário brasileiro a sombra da Colônia Penal kafkiana, a pesada máquina de tortura da fantasia de Kafka, expulsar o corrupto princípio da “culpa é indubitável” para permitir que possa respirar, ainda que talvez por aparelhos, o nobre e fundamental princípio da presunção de inocência.

*José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Leandro Melito