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Fotógrafo de Lula salva Globo de vexame

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Os espectadores do telejornal puderam ler o crédito das cenas durante a leitura insossa feita pelo noticiarista: “imagens: Ricardo Stuckert” - Ricardo Stuckert
A imprensa familiar brasileira chegou tarde, censurou e pediu arrego

A imprensa familiar brasileira é capaz de tudo para fugir dos fatos. A não cobertura da viagem de Lula à Europa foi um exemplo de como, para não fazer seu trabalho, cometeu pelo menos três pecados mortais do jornalismo: foi furada por jornalistas independentes, segurou a opinião de seus colunistas até o limite da mentira e rendeu-se a pedir apoio aos assessores do ex-presidente para recuperar o tempo perdido. Curto e grosso: chegou tarde, censurou e pediu arrego.

Ao mesmo tempo, a mesma mídia empresarial esteve atenta à viagem de Bolsonaro ao Oriente Médio, frente a uma comitiva nababesca e uma pauta chinfrim, em que o único destaque foi uma conversa sobre troca de prisioneiros. Isso mesmo, troca de prisioneiros. Um indicativo dos interesses do presidente e do que antevê para seu futuro. Não se sabe de acordo comercial firmado ou de conversas com interesse geopolítico expressivo.

 Por não querer fazer jornalismo, a Globo teve seu dia de assessoria de imprensa do PT

 

O contraste com a viagem de Lula é significativo. O petista foi recebido por presidentes e lideranças eleitas de democracias consolidadas, como França, Alemanha, Espanha e Bélgica. Bolsonaro teve como interlocutores ditadores e adversários dos direitos humanos. Lula recebeu prêmios e homenagens de um dos mais importantes centros de pensamento político do continente. Bolsonaro ganhou jantar dos empresários brasileiros que saíram daqui para puxar saco e fritar bife no deserto.  

Nas conversas de Lula, temas como crise climática, emergência sanitária, desigualdade, ameaças à democracia, pobreza, combate à fome, futuro da União Europeia e integração da América Latina. Foi recebido com honras de chefe de Estado pelo presidente francês Emmanuel Macron, que passa longe da esquerda, aplaudido no Parlamento Europeu e ganhou espaço nos mais importantes jornais do continente.

Contraste entre a viagem de Lula e Bolsonaro é significativo

Já Bolsonaro, antes de passear de motocicleta, falou de grafeno e bateu no peito para dizer que o Enem é a cara do governo, comemorando mais uma crise na política educacional.  Emendou o chorrilho de asneiras dizendo que a floresta Amazônica é úmida e por isso não pega fogo.  Ou seja, viajou para longe e gastou muito dinheiro para não sair do lugar onde sempre esteve. Para se sentir em casa, tinha até o governador de Minas, Romeu Zema, ao seu lado. Seu giro não teve repercussão na imprensa internacional e não eclipsou o vexame de sua recente viagem para a reunião do G-20.

Simbolismo das duas viagens

Não é o caso de insistir na lógica da divisão entre dois mundos inconciliáveis que vem dominando o cenário, mas há algo de simbólico nas duas viagens simultâneas dos nomes mais fortes, no momento, para as eleições de 2022. Bolsonaro procurou nos Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Catar seus semelhantes políticos: autoritarismo, apreço por lideranças autocratas e isolamento internacional. Num momento de redefinição das alianças políticas e econômicas, uma agenda que fortalece a posição de pária que parece orgulhá-lo.

Lula, ao abrir espaço para diálogo em espectro político ampliado e em torno dos temas mais sensíveis da pauta mundial, se apresenta como interlocutor confiável para a esquerda, para o bloco socialdemocrata e para os democratas da centro-direita. E até mesmo indispensável, quando se pensa na América Latina, na preservação ambiental e no papel a ser desempenhado pelas economias emergentes num cenário de grandes transformações tecnológicas e na composição de um novo mercado mundial.

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Se a economia brasileira não tem como se recuperar sem a retomada do investimento estrangeiro, a escolha é ainda mais cristalina entre o isolamento e as parcerias. De um lado o deserto de ideias, de outro a abertura civilizada ao diálogo.

No entanto, a comunicação corporativa parece ter fechado os olhos para esse momento. A viagem de Lula, mesmo destacada pela mídia independente e por alguns colunistas, passou batida no primeiro momento pela autodenominada grande imprensa. Na lógica dos meios tradicionais, o que faz a notícia não são os fatos, mas os personagens e interesses envolvidos. O périplo de Lula foi tachado de campanha, o de Bolsonaro de visita de interesse nacional. O simples uso da razão mostraria que foi exatamente o contrário.

Além de passar por cima dos fatos, as empresas deixaram seus comentaristas e colunistas no limbo, até que fosse dada a senha dos patrões. A jogada ensaiada começou com o teste da negação: o que não aparece no noticiário não existe. Em seguida, confrontados pela realidade das informações que não obedecem essa regra, franqueou-se a avaliação dos colunistas como se fosse um exercício de respeito à liberdade de opinião. Um surreal comentário sobre o que, para quem acompanha a notícia apenas pelo chamado jornalismo profissional, sequer havia ocorrido.

Por fim, os veículos se renderam aos fatos, recuperando-os na medida do possível a partir das notícias veiculadas por agências e lidas em jornais europeus do dia anterior. Mesmo com toda a estrutura para acompanhar a viagem do ex-presidente, ainda que optasse por fazê-lo discretamente, deixaram de mandar seus solertes repórteres e cinegrafistas até a sede dos fatos. Foi aí que se registrou, na edição do Jornal Nacional, de quarta-feira, uma situação digna de reparo.

O apresentador William Bonner leu um texto que ocupou exatos 36 segundos, que resumiu toda a jornada do ex-presidente no continente: prêmio recebido por publicação científica, homenagem de instituto de estudos políticos, países visitados, recepção oficial pelo presidente da França, discurso no Parlamento Europeu e temas tratados nas reuniões. Sem entrevista, sem fontes identificadas, sem cronologia dos fatos. Um relatório seco e cheio de furos.

Além de não ter gastado um de seus estelares correspondentes, a nota não citou sequer o nome do prêmio (“Coragem Internacional”), da revista que o concedeu (apresentada como “uma revista especializada”, na verdade a prestigiada Politique Internationale) ou do instituto de estudos políticos (Science Po, o mais importante do país). Para informar o teor da conversa entre Lula e Macron, o telejornal creditou um genérico porta-voz do governo francês, sem ouvir os brasileiros que participaram da reunião. Tudo para não dizer que não falei de Lula.

Para quem defende esse tipo de padrão profissional indigente, alegando que se trata de não colocar azeitona na empada de um candidato antes da hora, a Globo mostrou que tem pesos e medidas diferentes quando se trata dos chamados postulantes da terceira via. Na mesma semana, não foram segundos, mas horas gastas com programas, entrevistas e análises sobre prévias do PSDB (numa grade gaiatamente batizada de “Tucano Esperança”) e apresentação quase oficial do candidato Sérgio Moro, com direito a Bial, sem polígrafo.

O detalhe mais marcante do comportamento antiprofissional e evasivo da emissora em relação à viagem de Lula foi não ter sequer imagens próprias para apresentar ao seu telespectador. E não se tratava de cenas de bastidores ou de encontros reservados, mas de discursos no parlamento e recepção pública e oficial do presidente francês, que começou na porta do Palácio Eliseu. Os espectadores do telejornal puderam ler o crédito das cenas durante a leitura insossa feita pelo noticiarista: “imagens: Ricardo Stuckert”. O fotógrafo de Lula.

Por não querer fazer jornalismo, a Globo teve seu dia de assessoria de imprensa do PT.

 

Edição: Elis Almeida