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Qual o vínculo entre Uber e motoristas? Entenda por que a disputa continua em aberto na Justiça

Divergências adiam a formação de maioria no TST; próximo capítulo desse embate ocorrerá no dia 15, na 3ª Turma

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Multinacional estadunidense alega que relação com motoristas não configura vínculo de emprego - Divulgação/Uber

Ao menos quatro Tribunais Regionais do Trabalho (TRT) no Brasil já deram ganho de causa a motoristas de aplicativo que alegaram vínculo de emprego com a multinacional estadunidense Uber.

Os trabalhadores alegam que são obrigados a se submeter às condições impostas pelas plataformas digitais, sob pena de serem punidos ou excluídos pelo aplicativo e perderem sua fonte de renda. Hoje, mais de 1 milhão de brasileiros atuam nessas condições e assumem sozinhos as despesas de combustível, seguro e manutenção do carro, por exemplo.

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No início de novembro, o Ministério Público do Trabalho em São Paulo (MPT-SP) ajuizou uma ação pedindo que a Uber registre os motoristas em carteira imediatamente, alegando “fraude trabalhista”.

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Quando os casos chegam à instância superior, no entanto, a empresa tem levado a melhor. Até o momento, turmas do Tribunal Superior do Trabalho (TST) já decidiram cinco vezes pela inexistência de vínculo de emprego.

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O TST tem oito turmas, cada uma composta de três ministros.

A Uber se refere aos motoristas como “parceiros”, e não como empregados, trabalhadores ou colaboradores.

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“Eles são profissionais independentes que contratam a tecnologia de intermediação digital oferecida pela empresa por meio do aplicativo. Os motoristas escolhem livremente os dias e horários de uso do aplicativo, se aceitam ou não viagens e, mesmo depois disso, ainda existe a possibilidade de cancelamento”, disse a empresa em nota enviada ao Brasil de Fato, em reportagem recente sobre o tema.

“Não existem metas a serem cumpridas, não se exige número mínimo de viagens, não existe chefe para supervisionar o serviço, não há obrigação de exclusividade na contratação da empresa e não existe determinação de cumprimento de jornada mínima”, alega a multinacional.

Segundo dados levantados pelo MPT-SP junto à empresa 99, cerca de 99% dos motoristas trabalham por aplicativo quatro ou mais dias por semana. Os procuradores tentaram obter dados de outras três empresas, incluindo a Uber, mas a informação foi negada.

O próximo capítulo dessa disputa no TST está marcado para 15 de dezembro, às 9h. A 3ª Turma julgará nessa data mais um pedido de reconhecimento de vínculo entre motorista e aplicativo, negado em 1ª e 2ª instâncias.

Será a segunda vez que o Tribunal analisará o mérito da questão. A primeira foi em fevereiro, na 5ª Turma, que concluiu pela inexistência de vínculo de emprego.

O julgamento na 3ª Turma já foi iniciado, e o relator, ministro Maurício Delgado, reconheceu o vínculo. Segundo o voto dele, as empresas "exercem poder diretivo" sobre os motoristas, estabelecendo uma relação de subordinação. A análise foi suspensa em 2020 após pedidos de vista.

Assista:

O que diz a CLT?

O caso mais recente, julgado pela 5ª Turma do TST, é emblemático para se entender as disputas sobre a existência de vínculo de emprego com a Uber.

O ex-motorista Mauricio de Souza Dinucci, do Rio de Janeiro (RJ), teve seu recurso rejeitado em outubro e ainda precisará pagar uma multa à Uber – estipulada em 2% sobre o valor da causa.

Dinucci afirma ter sido desligado da empresa após um incidente em que acionou a Polícia Militar (PM) para retirar do carro um passageiro sem dinheiro que se recusava a desembarcar.

No processo, o advogado do motorista afirma que a Uber não é uma empresa de tecnologia, mas de transporte privado, e que a relação de Dinucci com o aplicativo cumpria todos os requisitos de um vínculo de emprego.

O reconhecimento desse vínculo depende de cinco pressupostos: serviço prestado por pessoa física, pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade.

No caso de Dinucci, a 5ª Turma do TST não reconheceu dois deles: a não eventualidade e a subordinação. O primeiro diz respeito à flexibilidade das jornadas e à possibilidade de passar vários dias seguidos sem trabalhar, sem que isso acarrete punição ou exclusão. O segundo se refere à autonomia do motorista e é ainda mais polêmico.

Desde 2011, o artigo 6º da CLT afirma que não há distinção “entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.”

O mesmo artigo acrescentou que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.”

O Brasil de Fato conversou com o advogado e desembargador aposentado do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT3), José Eduardo Resende Chaves Júnior, para entender por que ainda há divergência na interpretação da lei.

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“É uma questão relativamente nova, e o julgamento costuma ser feito com o conhecimento que o juiz tem do painel do aplicativo como usuário, que é muito diferente do painel do motorista”, analisa o especialista.

“A maioria dos juízes ainda aplica a configuração do vínculo empregatício nos termos do artigo 3° da CLT, que foi pensado para um tipo de gestão do trabalho humano fordista, focada na subordinação e na disciplina”, acrescenta Chaves Júnior, citando a mudança ocorrida há dez anos. 

O artigo 3º considera empregado apenas quem prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.

“O artigo 6º da CLT estabeleceu a equiparação jurídica da ‘subordinação’ ao ‘controle’, que é mais flexível, dispensa a disciplina horária ou até mesmo a assiduidade”, ressalta o desembargador aposentado.

“A partir de então, temos duas modalidades de configuração do vínculo: para as relações de trabalho tradicional fordista temos o artigo 3° da CLT, da disciplina e da subordinação. Para o trabalho em aplicativo, chamado uberista, temos o parágrafo único do artigo 6°.”

Na interpretação de Jorge Pinheiro Castelo, presidente da Comissão de Direito do Trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP) e livre docente da Universidade de São Paulo (USP), o trabalho realizado por motoristas de aplicativo pode ser lido como intermitente, conforme a reforma trabalhista de 2017.

“Foi uma das únicas coisas boas daquela reforma, e talvez eles nem tenham observado isso”, afirmou Castelo ao Brasil de Fato, em referência ao pressuposto da não eventualidade ou não habitualidade.

O parágrafo 3º do artigo 443 da CLT estabelece desde então que o trabalho por demanda – válido para qualquer tipo de atividade do empregado ou do empregador, exceto aeronauta – pode se configurar como relação de emprego intermitente.

“A reforma estabelece uma nova forma de habitualidade, que é descontínua. É o que permite ao motorista desligar o aplicativo ou recusar algum serviço, sem que isso desconfigure o vínculo”, explicou o presidente da Comissão de Direito do Trabalho da OAB-SP.


Até o ano passado, a Uber conseguia evitar sentenças desfavoráveis no país por meio de acordo com motoristas / Marcelo Camargo / Agência Brasil

O desafio da jurisprudência

O termo jurisprudência se refere ao conjunto de decisões e interpretações de leis realizadas por tribunais superiores, adaptando as normas às situações ocorridas. Em resumo, são entendimentos já consolidados que servem para balizar decisões sobre processos semelhantes que venham a ser julgados no futuro.

No caso da Uber, as vitórias pontuais em 1ª e 2ª instâncias não foram suficientes para formar no Brasil uma jurisprudência favorável aos motoristas.

Juristas apontam que a multinacional vem oferecendo acordos a motoristas que estão prestes a ganhar ações na Justiça, de modo a impedir a consolidação de um entendimento que reconheça o vínculo empregatício.

Segundo a 11ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT15), se trata de uma “estratégia de manipulação da jurisprudência”.

O termo foi usado em uma decisão publicada em 20 de abril, que inspirou outros três tribunais regionais. Em votação unânime, os juízes deram ganho de causa a um motorista de Campinas (SP) e apontaram “a incompatibilidade entre a observância do princípio da cooperação e o abuso do direito processual”.

Um dia antes da sessão, foi protocolada às 18h15min uma petição que solicitava a retirada do processo de pauta e a homologação de acordo no valor de R$ 35 mil. O tribunal negou essa solicitação.

“A estratégia da reclamada de celebrar acordo às vésperas da sessão de julgamento confere-lhe vantagem desproporcional porque assentada em contundente fraude trabalhista extremamente lucrativa, que envolve uma multidão de trabalhadores e é propositadamente camuflada pela aparente uniformidade jurisprudencial, que disfarça a existência de dissidência de entendimento quanto à matéria, aparentando que a jurisprudência se unifica no sentido de admitir, a priori, que os fatos se configuram de modo uniforme em todos os processos”, diz a decisão do TRT15.

A Uber recorreu daquela decisão e negou todas as acusações.

Essa estratégia já havia sido detalhada no início do ano, no artigo “Litigância manipulativa da jurisprudência e plataformas digitais de transporte: levantando o véu do procedimento conciliatório estratégico”. As autoras são Adriana Goulart de Sena Orsini e Ana Carolina Reis Paes Leme, desembargadora e analista judiciário do TRT em Minas Gerais, respectivamente.

No texto, elas fazem um raio-x dos processos que chegaram até aquele tribunal e lembram de outros casos em que a Uber firmou acordo com o motorista na véspera da sessão de julgamento.

Decisões semelhantes à do TRT15 foram tomadas este ano no TRT1, no Rio de Janeiro, no TRT11, em Amazonas e Roraima, e no TRT3, em Minas Gerais. Nos quatro episódios, os juízes afirmaram que a Uber tenta manipular a jurisprudência no país.

Em todos os casos, a Uber recorreu.

Longo caminho pela frente

Embora nenhuma turma do TST tenha reconhecido até hoje o vínculo de emprego de um motorista de aplicativo, o desembargador aposentado José Eduardo Resende Chaves Júnior afirma que o entendimento ainda não está consolidado.

“Está ainda distante de haver uma maioria. Na Justiça dos EUA, levou nove anos até a decisão da Suprema Corte da Califórnia reconhecer o vínculo. No Brasil, a Uber chegou em 2014, então creio que a situação vai se estabilizar no TST por volta de 2023 ou 2024”, analisa.

O especialista vê com preocupação a cobrança de multa ao motorista do Rio de Janeiro, no mês passado, que teve seu recurso negado na 5ª Turma do TST.

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“Sem dúvida, trata-se do fenômeno chamado ‘jurisprudência defensiva’, ou seja, um tipo de ativismo judicial em que o Judiciário tenta dissuadir o cidadão a discutir judicialmente o seu direito”, interpreta o advogado.

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“O tempo é o senhor da razão. Tão logo tenha-se visão clara de que a maioria do trabalho humano será ‘subordinado’ ou ‘controlado’, a tendência do TST é abrir-se a esse tipo de relação, sob pena inclusive de perder importância política sobre grande parcela do trabalho humano no Brasil”, finaliza.

Edição: Vivian Virissimo