FSR virtual

Fórum das Resistências tem início debatendo a Guerra Cultural e a luta ideológica

Atividades virtuais preparatórias para o evento presencial em abril começaram nesta quarta-feira (26)

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |

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Primeiro debate virtual das atividades preparatórias do evento presencial do Fórum Social das Resistências debate a guerra cultural - Reprodução

Na noite de quarta-feira (26), foi realizado o primeiro debate virtual das mais de 60 atividades preparatórias do evento presencial do Fórum Social das Resistências, transferido para o final de abril, devido à pandemia do coronavírus. O evento segue até domingo e a programação completa pode ser acessada no site do FSR.

O painel Guerra Cultural e Luta Ideológica teve a mediação do jurista, deputado constituinte de 1988 e coordenador nacional da ADJC, Aldo Arantes. Participaram como painelistas João Cezar de Castro Rocha, Renata Mielli, Lúcio Flávio de Castro Dias e Mauri Cruz.

Na abertura, Aldo Arantes explicou que a partir da constatação de que a direita, ao assumir a Guerra Cultural, conseguiu obter importantes vitórias no terreno ideológico e político, a Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania (AJDC) considerou necessário fazer um estudo aprofundado desse fenômeno para contribuir na formulação de um programa e de uma tática de luta ideológica para os setores democráticos e progressistas.

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“O passo inicial foi convidar alguns professores que, junto com os advogados da ADJC, desenvolveriam as pesquisas. Logo foram ficando claras a complexidade do estudo e a necessidade de incorporar especialistas em diversas áreas do conhecimento. Assim, foi constituído o Grupo Interdisciplinar de Pesquisas com a participação de advogados, professores, psicólogos sociais, hackers, jornalista, neurocientista e especialista em redes sociais”, explicou.

O resultado do estudo foi o livro “Reconstruir a Democracia - União de amplas forças políticas e sociais para a luta ideológica”, dos quais os painelistas são co-autores, com exceção de Mauri Cruz. Os trabalhos se desenvolveram do final de 2020 até maio de 2021.

Aldo Arantes destacou que a derrota eleitoral de Bolsonaro é tarefa decisiva para assegurar a retomada do caminho civilizatório abandonado: “E ela está intimamente ligada à articulação de uma poderosa frente na luta ideológica. As forças democráticas e progressistas, agindo isoladamente, serão insuficientes para reconquistar a hegemonia ideológica junto aos diversos segmentos da sociedade no tempo necessário para influir sobre os resultados das eleições de 2022. É hora de uma ampla união nas frentes política e ideológica das forças democráticas e progressistas e esperamos contribuir com este trabalho que traz diversas propostas.”

 
DEBATE: GUERRA CULTURAL E LUTA IDEOLOGICA

VENHA PARTICIPAR CONOSCO! Leia nosso *Manifesto Guerra Cultural: Alerta ao povo brasileiro*, e veja a lista de quem já assinou dando seu apoio. Apoie você também, clique no *link ao final das assinaturas de apoio e assine!* https://adjc-nacional.org/noticias/manifesto-guerra-cultural-alerta-ao-povo-brasileiro/

Posted by Brasil de Fato RS on Wednesday, January 26, 2022

As atividades preparatórias para o Fórum são organizadas pela ADJC, Instituto Brasileiro de Estudos Políticos, Grupo Interdisciplinar de Pesquisas sobre a Guerra Cultural, Fundação Mauricio Grabois, Cebrapaz, Barão do Itararé e Instituto IDhES.

Um estudo de caso do Brexit e da campanha de Trump

Autor de um dos capítulos do livro, o membro da Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania (ADJC) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Lúcio Flávio de Castro Dias apresentou exemplos da Guerra Cultural no mundo, como o caso do Brexit e a campanha de Trump.

“São hoje de conhecimento geral as ‘revoluções coloridas’ e os ditos ‘golpes brandos’ que foram espalhados pelo mundo com essas novas táticas. O que talvez os estrategistas que configuraram esses novos métodos de subversão dos regimes adversários não esperassem é que eles passariam a ser usados internamente, no coração do próprio imperialismo, por facções radicais dissidentes de direita e trariam a desestabilização a seus próprios governos”, destacou.

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Lúcio Flávio explicou ainda os métodos utilizados no caso Brexit na Grã-Bretanha, em junho de 2016, e a eleição de Trump nos EUA, em novembro de 2016: “O que esses dois casos têm em comum é a aplicação intensiva dos instrumentos criados para as ‘guerras híbridas’ em territórios para os quais eles não foram desenhados, e a presença, em ambos, do indefectível Steve Bannon, movendo-se nas sombras com desenvoltura e eficácia, no uso das armas forjadas pelo imperialismo para aplicação ao exterior, usando-as agora nas próprias metrópoles, com a finalidade de assegurar a hegemonia política da direita e contra a democracia liberal.”

“Guerra cultural é uma máquina de narrativas polarizadoras”

O professor de Literatura Comparada da Universidade do Rio de Janeiro, doutor pela Universidade de Stanford (EUA) e autor do livro Guerra Cultural e Retórica do Ódio (crônicas de um Brasil pós-político), João Cezar de Castro Rocha, foi bastante enfático no perigo que representa essa guerra cultural da extrema-direita.

“Se não abrirmos os olhos para a centralidade da guerra cultural no governo Bolsonaro, dificilmente será possível desenvolver um plano de ação capaz de fazer frente à poderosa midiosfera bolsonarista, isto é, o sistema de comunicação que dá sustentação ao projeto político autoritário, cuja ponta de lança é precisamente a guerra cultural.”

Segundo ele, não seria exagero afirmar que a midiosfera bolsonarista é um fenômeno inédito na vida política e cultural brasileira: “Ou levamos muito a sério seu alcance ou não saberemos dimensionar o efeito grave de criação de uma autêntica realidade paralela que, pela primeira vez, tornou-se um ator político relevante, talvez mesmo decisivo, na vida nacional.”

João Cezar afirma que o tripé fundamental que alimenta a mentalidade desses grupos é constituído pelo discurso revanchista e revisionista sobre o golpe de 1964, que formou o projeto Orvil, o Livro Secreto do Exército; a Doutrina de Segurança Nacional, que traz a ideia do inimigo interno que deve ser eliminado; e a popularização do que ele chama de retórica do ódio, promovida pelo escritor Olavo de Carvalho.

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De acordo com o professor, a guerra cultural conhece atualmente uma inflexão nova e extremamente perigosa: não se trata mais de “limitar-se” a disputar narrativas no período eleitoral. Pelo contrário, a guerra cultural converte-se uma forma de vida!

“Além de disputar narrativas, é preciso tomar overdoses de ivermectina como se não houvesse amanhã, tampouco sistema hepático; é necessário venerar a cloroquina como se fosse uma hóstia profana; por fim, aglomerar, claro, sem máscara, é condição imprescindível para qualificar-se como fiel bolsonarista. E não se esqueça: é obrigatório ignorar a “Globo-lixo”, a “CNN-lixo” e toda a “extrema-imprensa”, de modo a “informar-se” exclusivamente na própria midiosfera bolsonarista que, aliás, produz conteúdo sem trégua”, disse.

Para ele, a opção é exercitar a ética do diálogo, que não vê o outro como um inimigo, porém um outro eu, cuja diferença enriquece minha vida, ao ampliar meu horizonte. “Je est un autre, anunciou Rimbaud: ‘Eu é um outro’. O poeta não escreveu ‘Je suis un autre’ — ‘Eu sou um outro’. A agramaticalidade da frase é o que mais importa, sinalizando a abertura ao outro, a escuta atenta de quem pensa de forma diversa da nossa. Somente assim superaremos o bolsonarismo. Nunca se esqueça: o bolsonarismo antecedeu e certamente sucederá ao Messias Bolsonaro.”

Os algoritmos a serviço da guerra cultural

As plataformas de redes sociais, uso de dados pessoais e os algoritmos a serviço da guerra cultural são o tema do capítulo do livro escrito por Renata Mielli e Leandro L. Loguercio.

Jornalista, estudante do Programa de Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (PPGCOM-ECA/USP) e secretária-geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, Renata Mielli falou sobre o papel das plataformas das redes sociais na dinâmica de circulação de conteúdos e como impacta nas emoções das pessoas.

Segundo ela, nas plataformas digitais monopolistas (Google, Facebook, Twitter, YouTube, Instagram), o fluxo de circulação da informação é orientado por uma arquitetura específica de funcionamento das redes que lança mão de algoritmos e Inteligência Artificial (AI) estruturados e organizados para o aprendizado de máquina: “Com este, é possível às plataformas estabelecerem uma disputa eficaz por atenção e com a finalidade de incrementar o tempo de tela de cada um dos usuários individuais.”

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Renata explica que a sugestão de conteúdos e interações ocorrem a partir das preferências e hábitos de navegação dos usuários; neste contexto, modelos matemáticos representando cada indivíduo são constantemente submetidos a simulações em ambiente computacional de altíssima performance, cujo processamento tem elevado grau de eficiência nos propósitos de gerar mudança de comportamento.

Ela ressaltou aindaque essas plataformas de redes sociais são empresas monopolistas, sediadas nos Estados Unidos, e que, como entidades capitalistas privadas, não possuem nenhum compromisso com a democracia – muito menos com a democracia nos países em que elas prestam seus serviços, praticamente sem nenhuma restrição legal, sem regras e, inclusive, sem pagar nenhum tipo de imposto ou dividendo pelas suas operações. 

Por fim, Aldo Arantes convidou o professor João Cezar de Castro Rocha a ler o manifesto da AJDC que será apresentado na assembleia final do FSR e que também deve ser levado para o debate no FSR presencial e o Fórum Social Mundial no México. Confira a íntegra do texto

Manifesto “Guerra Cultural: Alerta ao Povo Brasileiro”

Um espectro ronda as democracias na era digital: o espectro da guerra cultural da extrema-direita. O avanço transnacional da extrema-direita é incompreensível sem o seu êxito na guerra cultural. Como explicar que centenas de milhões de pessoas em todo o mundo tenham votado em candidatos extremistas?

A guerra cultural impõe uma visão negacionista da ciência e da história, criando através das fake news uma realidade paralela. Lança mão em todo o mundo do Lawfare (perseguição jurídica a adversários) para desestabilizar governos e lideranças democráticas e progressistas.

A guerra cultural toma como base ideias reacionárias sobre a família e a nação. Manipula o sentimento religioso de milhões de fiéis e adota um falso e anacrônico anticomunismo – para a extrema-direita, comunistas são todos aqueles que defendem os direitos sociais e a democráticos. No Brasil também se utilizou, farisaicamente, da luta contra a corrupção.

A guerra cultural se apropriou das mais avançadas técnicas de comunicação, utilizando especialistas nas mais diversas áreas do conhecimento, entre os quais cientistas políticos, psicólogos sociais, neurocientistas e especialistas em redes sociais. Obtiveram polpudos recursos para suas campanhas.

O êxito da guerra cultural é indissociável da lógica própria do universo digital. Desvendar essa afinidade estrutural é o primeiro passo para superar extremismos de direita – como o bolsonarismo.

A linguagem algorítmica, gramática do universo digital, opera por exclusão binária: sim X não. A visão do mundo da extrema-direita é excludente, binária, opera pela eliminação de tudo e de todos que se colocam contra suas propostas.

A extrema-direita levou para a política os métodos de vendas comerciais, utilizando algoritmos para identificar tendências e desejos: a cidadania reduzida ao consumo. Desse modo, transformou a política numa modalidade de comércio digital: a monetização da política é um dos segredos de seu sucesso.

A economia da atenção determina o caráter radicalizado da linguagem do universo digital: a radicalização é uma forma de se destacar em meio à vertiginosa e ininterrupta oferta de conteúdo.

Daí a pregação do ódio, da violência e das mentiras. Teorias conspiratórias têm mais apoios nas redes socais do que verdades, pois fortalecem preconceitos e vieses cognitivos já existentes. A polarização acéfala e a radicalização bélica constituem a linguagem da extrema-direita e daí seu êxito meteórico na era do universo social e das redes sociais.

O universo digital cria perfis a partir das primeiras interações aleatórias dos usuários, propiciando o surgimento de bolhas impermeáveis à diferença e mesmo à realidade. Ora, a forma mesma da guerra cultural da extrema-direita é a criação de narrativas polarizadoras, com base em notícias falsas e teorias conspiratórias. A finalidade é a invenção de inimigos em série, mantendo as massas digitais em mobilização permanente.

A Guerra Cultural visa romper com importantes conquistas econômicas e sociais. Afronta a democracia. Ataca os direitos humanos e agride os trabalhadores, mulheres, negros e a comunidade LGBTQIA+. Volta-se contra todos que se opõem aos seus objetivos.
Por isto, o espectro tornou-se uma ameaça de carne e osso (e muitos dólares): a extrema-direita vence eleições livres e democráticas em diversas partes do mundo graças ao engajamento produzido pela radicalização da guerra cultural.

O que fazer? (Já se disse que uma boa pergunta é metade da resposta.)

Em primeiro lugar, reconhecer a centralidade da guerra cultural no avanço transnacional da extrema-direita – também no Brasil.

Reconhecer a importância decisiva de combinar luta política e luta ideológica, pois a tarefa primordial é despertar a consciência crítica da sociedade com bases nos dados objetivos da realidade.

Reconhecer a centralidade do universo digital na ação política contemporânea.

Reconhecer que o universo digital multiplicou a noção de espaço público; hoje, há diversos, com linguagens e dinâmicas particulares. Ocupar esses novos espaços públicos é tarefa urgente.

Identificar o paradoxo que pode levar a guerra cultural à derrota. Quanto mais exitosa a guerra cultural na produção de narrativas polarizadoras, tanto mais desastrosa a administração pública, em função da incapacidade de lidar com dados objetivos.

O paradoxo pode ser traduzido em linguagem direta: basta a descrição do fracasso incontestável de um governo baseado na guerra cultural. Por exemplo, a desastrosa condução na pandemia de Covid dos governos extremistas de direita de Trump e Bolsonaro. Nos EUA e no Brasil, o negacionismo criminoso da ciência levou a um morticínio generalizado.

Despertar a urgência da questão da luta ideológica tendo em vista as eleições de 2022. Daí o alerta deste Manifesto, a fim de unir amplas forças na luta política e ideológica!

A tarefa das forças progressistas é realizar a luta ideológica que tem como pressuposto a inclusão democrática de todos os segmentos da sociedade, lançando mão da ética do diálogo para retomar o debate público com base em dados objetivos.

Partindo da constatação de que a extrema-direita dispõe de uma articulada rede de comunicação social, formando uma poderosa midiosfera extremista, é fundamental que as forças democráticas e progressistas se unam para construir uma rede alternativa para o esclarecimento da sociedade.

Para transformar o mundo distópico da guerra cultural da extrema-direita é preciso interpretá-la corretamente, para que o projeto da Nação-Brasil finalmente se torne realidade.

Porto Alegre, 26 de janeiro de 2022

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Rebeca Cavalcante e Marcelo Ferreira