DONBAS E CRIMEIA

Entenda quais são as origens do separatismo russo na Ucrânia

Especialistas comentam história de união entre Rússia e Ucrânia e raízes do conflito armado

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Além da região de Donbas, no leste ucraniano, a Crimeia, ao sul do país, também aprovou sua independência de Kiev em 2014 - Vasily Maximov / AFP

O conflito entre Rússia e Ucrânia já chega ao 19º dia e além dos aspectos militares que desencadearam a guerra, também há uma relação na formação étnica e histórica entre as duas nações que se expressa na disputa. 

Esse fenômeno não se restringe apenas à região de Donbas, que abriga as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk. Em 2014, na Crimeia, se fortaleceu um movimento independentista que, na ocasião, culminou com a decisão de anexação à Rússia.

Ambas regiões decidiram em referendos populares, com mais de 80% dos votos, separar-se do governo de Kiev. Tanto em Donbas como na Crimeia há predominância de população de origem russa que, a partir da Guerra Civil na Ucrânia, passaram a ser hostilizadas por grupos paramilitares neonazistas ucranianos. 

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Ainda que guardem algumas semelhanças, especialistas apontam que as origens do movimento separatista na Crimeia são distintas à região de Donbas. 

Crimeia

A península da Crimeia, que abrange cerca de 27 mil km², equivalente ao estado brasileiro de Alagoas, era parte da Rússia desde o século 15. Entre 1921 e 1945, fez parte da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas de maneira autônoma. “A partir do stalinismo essa autonomia é um pouco mais formal, porque existia maior proeminência da Rússia dentro da União”, salienta o professor de história da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Sidnei Munhoz. 

Após o período de Stálin, em 1954, o líder da URSS, Nikita Kruschov, que era de origem ucraniana, resolveu conceder a Criméia à Ucrânia, como um gesto de amizade política. 

A autonomia da região foi restaurada no último ano de existência da União Soviética e fim da Guerra Fria, em 1991. 

Em 1994, foi assinado o  Memorando de Budapeste, entre os EUA, Reino Unido e Rússia, que definia o compromisso de respeitar as fronteiras da Ucrânia. Em troca, o governo ucraniano abdicou do terceiro maior arsenal nuclear do mundo e assinou o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares.

“Crimeia e a região de Sebastopol eram parte da Rússia e uma região muito estratégica para o acesso ao Mar Negro. Por mais que possa haver alguma polêmica em torno das acusações de que houve influência da Rússia durante o referendo, o fato é que a população votou massivamente pela integração”, comenta o filósofo e cientista político grego Savas Mihail Matsas.

Os portos da Crimeia serviam para escoar a produção agrícola da Ucrânia e são pontos de exportação do gás natural russo para a Europa.


Em 2014, a população da Crimeia se manifestava a favor da anexação ao território russo com cartazes 'pra sempre com a Rússia' / Max Vetrov / AFP

Donbas

Já a região de Donbas, no leste ucraniano, abarca cerca de 45 mil km², equivalente à área do estado do Rio de Janeiro, e é considerada o coração industrial da Ucrânia por concentrar metalúrgicas, termelétricas e empresas de extração de carvão mineral. 

“Na região do Donbas o independentismo está ligado a toda a experiência durante a União Soviética, já que havendo uma proeminência russa, muitos russos iam para distintas regiões da União e passavam a estabelecer sua vida nessas regiões”, comenta Munhoz.

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O filósofo Savas Mihail Matsas destaca que nessa região ainda existem organizações políticas que se identificam com o passado soviético, celebrando datas da URSS, como o dia da vitória do Exército Vermelho contra o Terceiro Reich. Após o golpe de Estado de 2014 e o estabelecimento de um governo de extrema direita na Ucrânia, a população dessa região passou a ser hostilizada por grupos nacionalistas ucranianos de tendências neonazistas.

“Depois do Euromaidan, iniciaram uma perseguição ao que eles caracterizam como ´minorias étnicas não ucranianas´ dentro da Ucrânia, de origem judia, mongol e principalmente russa. E imediatamente começou a organizar-se a resistência, principalmente nessa zona industrial de Donbas”, explica o médico e filósofo grego, Savas Mihail Matsas.

Acordos de Minsk

Após a destituição do presidente Viktor Yanukóvytch foram estabelecidos os Acordos de Minsk. O Protocolo de Minsk I, assinado em 2014, foi um acordo entre Ucrânia, Rússia e as Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk para pôr fim à guerra no leste ucraniano. 

Já o Minsk II, celebrado em 2015, entre Ucrânia, Rússia, França e Alemanha buscava implementar um pacote de medidas de alívio à Guerra Civil ucraniana, que incluía o reconhecimento da autonomia da região de Donbas e ações por parte do governo de Kiev para controlar atos hostis à população local.

“Essas repúblicas declararam sua independência como reflexo daquele momento, em que se instalou um regime em Kiev e a repressão contra esse povo, a impossibilidade de que eles falassem seu idioma, praticassem sua cultura”, comenta Matsas.

Nos últimos oito anos, os ataques permaneceram e cerca de 14 mil pessoas foram mortas.

Somente entre os dias 18 e 20 de fevereiro, prévios à invasão que iniciou no dia 24 de fevereiro, houve um total de 3231 ataques na região de Donbas, segundo um monitoramento de satélite da Organização para Segurança e Cooperação da Europa (OSCE).

O reconhecimento da independência das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk anunciado pelo presidente russo Vladimir Putin  e as acusações de que um genocídio estaria correndo na região de Donbas foram usados como justificativa para invadir a Ucrânia, no dia 24 de fevereiro. A decisão da Rússia enterrou o que restava dos Acordos de Minsk, que segundo Putin, na prática “já não existiam”.


Batalhão de Azov, com cerca de 900 membros é a maior organização paramilitar neonazista da Ucrânia, criada no Euromaidan em 2014, e hoje com presença no Ministério do Interior / Sergei Spuinsky / AFP

História 

A Ucrânia é o segundo maior país do leste europeu, ficando atrás somente da Rússia - um dos sete países que dividem fronteira com os ucranianos. Possui cerca de 43 milhões de habitantes vivendo em uma área de 603 mil km², equivalente ao estado de Minas Gerais.

O primeiro grande Estado eslavo oriental se constituiu no território que hoje é a Ucrânia, por volta do século 9. O nome Ucrânia deriva de uma palavra do eslavo antigo, ukraina, que significa “terra de fronteira ou marcha”. Sua adoção em maior escala foi feita somente a partir do século 19. Antes, os ucranianos se referiam a eles próprios como Rusynys, em referência aos Rus, os primeiros povos eslavos que se estabeleceram na região onde hoje ficam a Ucrânia e a Rússia.

“As relações entre o antigo Império russo e a Ucrânia são muito antigas. Kiev foi capital do Império entre 882 e 1243. A cidade foi praticamente destruída durante a invasão mongol. Nos períodos posteriores, a partir do século XV, a Ucrânia passou a fazer parte do Reino Unido da Polônia e Lituânia. Em 1783, a Ucrânia, após conquistar sua independência, procurou uma união voluntária com o Império russo, em busca de proteção. Portanto, essa união nunca foi harmoniosa, porque a Ucrânia não conseguiu obter a autonomia pretendida”, explica o historiador e professor da UFSC, Sidnei Munhoz.

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Em 1918, a Ucrânia se tornou um território independente e três anos mais tarde, foi incorporada à União Soviética.

A divisão geográfica histórica também se reflete em distintas zonas de influência no país. Enquanto a região central e ocidental é considerada "pró-Europa", o sul e oriente são majoritariamente "pró-russos". Na verdade, a composição étnica é de 73% de ucranianos; 22% de russos; e 5 % de outras etnias, como tártaros e gregos.

“Por um longo período da história houve uma interação entre distintos povos, culturas e identidades, e principalmente durante o período da União Soviética. Essa ideia de pureza da identidade nacional tem um fundo fascista e neonazista”, critica o dirigente do Partido Operário Revolucionário Grego, Savas Matsas.

Para Matsas, Estados Unidos e União Europeia se apoiam em discursos russofóbicos, alimentando a extrema direita, para aumentar sua influência sob o governo ucraniano.

“Organizações abertamente nazistas, como o Batalhão de Azov, que carregam suásticas e imagens de Hitler, ocuparam lugares importantes dentro da estrutura do Estado. Uma estrutura que, a propósito, é controlada por forças não ucranianas. A Ucrânia tornou-se uma espécie de semi colônia do Ocidente, um protetorado dos EUA e uma base de guerra avançada da Otan”, afirma Savas Matsas.


Nas últimas décadas, a Otan tem se aproximado das fronteiras russas / Brasil de Fato

Estratégia militar 

Apesar das diferenças étnicas, para ambos analistas a  origem do conflito está na expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), desrespeitando acordos estabelecidos após o fim da URSS.

“Quando no final de 1991 houve a desagregação da União Soviética o mundo perdeu uma grande oportunidade de integração da Rússia a um sistema de segurança europeu, que garantiria paz e estabilidade. A contínua expansão da Otan tem uma perspectiva militarista e contribui muito mais para a emergência de conflitos e venda de armas do que para a paz”, analisa Munhoz. 

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Nos documentos aprovados na última conferência anual, a Otan reconhece a Rússia e a China como ameaças militares.

“Em 1997, um novo documento foi publicado dizendo que as ex-repúblicas soviéticas e a antiga Rússia soviética deveriam ser divididas em, ao menos, três Estados diferentes: o europeu, o siberiano até os montes Urais, e o oriental. Acredito que a estratégia dos EUA logo após 1991 era desmembrar todas as ex-repúblicas soviéticas e estabelecer regimes pró-ocidente”, defende Savas Mihail Matsas.

O presidente russo Vladimir Putin se apoia na defesa da segurança e integridade nacional para justificar a operação militar na Ucrânia. " Eles [Ocidente] simplesmente não querem um país independente tão grande como a Rússia. Esta é a resposta para todas as perguntas", declarou no discurso do dia 21 de feveriro, quando anunciou o reconhecimento da independência de Donbas.

Na última semana, o chefe de Estado ucraniano Volodymyr Zelensky disse estar disposto a fazer concessões na lista de exigências de Moscou e dialogar sobre o reconhecimento da autonomia de Donbas e da Crimeia. 

Edição: Arturo Hartmann