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Brasil é denunciado na ONU por violações aos direitos dos indígenas

Em audiência, lideranças alertaram que esses ataques têm sido sistemáticos e desencadeados com incentivo do governo

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Denúncia foi realizada em audiência internacional no Acampamento Terra Livre em Brasília (DF) - Carl de Souza / AFP

O Brasil foi denunciado ao Parlamento Europeu e à Organização das Nações Unidas (ONU) por violações aos direitos humanos dos povos indígenas. Em audiência internacional online, lideranças alertaram que esses ataques têm sido sistemáticos e desencadeados com incentivo do governo Bolsonaro e do Congresso. A audiência ocorreu no terceiro dia do Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, que foi marcado pela preocupação dos indígenas em tratar das questões judiciais que os atingem. Falar a representantes dessas duas instituições globais serviu também como um alerta mundial.

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“Seus países financiam a compra de ouro, bois e galinhas que estão nos matando. Financiam mortes na minha terra, onde a Funai (Fundação Nacional do Índio), que deveria ser de proteção, entrega nossas terras para o agronegócio. Está acontecendo um ecocídio no Brasil”, resumiu o advogado Eliésio Marubo, representante da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).

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Diversas lideranças falaram na manhã desta quarta-feira (6), antes da marcha que mobilizou mais de 6 mil indígenas de 176 povos e seguiu para o Congresso. Megaron Txucarramãe, o grande líder nacional, hoje ancião, voltou a se manifestar em público, durante a audiência internacional. O momento foi carregado de simbologias. Os Kayapó cantavam ao longe e realizavam rituais sagrados, enquanto o experiente indígena primeiro falou em sua língua materna, depois em português, pintado com urucum e jenipapo.

“Precisamos do apoio de vocês que estão do outro lado da Terra. Mas os países de vocês têm embaixadas, que sabem o que está acontecendo. Lembram da campanha, quando Bolsonaro disse que não iria demarcar nenhum centímetro de terra? Ele quer usar o Projeto de Lei 191 e o marco temporal. Estamos ameaçados pelo presidente do Brasil. E ele joga a opinião pública contra nós. O projeto do governo Bolsonaro é muito perigoso. Estraga a terra, contamina os rios com veneno. Por que ele não faz esses projetos nas terras dos fazendeiros?”, questionou o cacique que é sobrinho de Raoni, o grande guerreiro conhecido internacionalmente por sua luta pela Amazônia.

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O ATL, em seu segundo dia, apresentou a Carta Aberta contra o PL 191, e iniciou uma campanha para reunir 1 milhão de assinaturas para forçar o Congresso a derrubar a possibilidade de mineração e hidrelétricas em terras indígenas.

Houve uma reação imediata dos estrangeiros na audiência. A deputada italiana Eleonora Evi, do Grupo dos Verdes no Parlamento Europeu, foi uma das que se pronunciaram.  “É uma vergonha. Fico chocada com a tentativa de Bolsonaro de continuar com essa grilagem para dar a quem faz criação extensiva (gado) e extração de minérios. É um genocídio. É um massacre”, afirmou. Ela disse que recentemente interrogou no Legislativo de seu país sobre medidas que devem ser tomadas ou renovadas para proibir importações de produtos derivados de áreas de desmatamento no Brasil. “Essas medidas devem ser cada vez mais rígidas.”

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O relator especial da ONU sobre os Direitos Humanos, Marcos Orellana, comentou que o Brasil está sendo envenenado por agrotóxicos e crimes são cometidos por grandes corporações, perpetrados com total impunidade. “Isso pode levar a uma catástrofe com consequências em nível mundial”, previu, referindo-se aos efeitos das mudanças climáticas.


Eloy Terena / Alass Derivas | @derivajornalismo | APIB

Defesa indígena

Quem pode ver a plenária deve ter notado a presença de um número expressivo de advogados indígenas. São eles que já estão fazendo a diferença no Judiciário brasileiro, defendendo as suas próprias causas. Mas ainda é preciso mais. O coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Eloy Terena, disse que conversou anteontem com a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia, que comentou sobre a importância de mais advogados indígenas nos tribunais para trazerem as mensagens de seus povos ao Judiciário. Nesta quarta-feira, a ministra votou para que o governo federal elabore, em 60 dias, um plano para tornar efetivo o combate ao desmatamento da Amazônia. 

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“Esse reconhecimento profissional que estamos conquistando faz parte de um processo de ruptura colonial. Por muito tempo deixamos de ser vistos como sujeitos plenos de direito. Éramos considerados relativamente incapazes pela legislação brasileira”, relata Eloy Terena. Ele considera que as sustentações orais no STF resultaram no reconhecimento do Supremo à representatividade da Apib. “É inédito no Brasil. Foram anos de trabalho para chegar a isso. Lógico que temos muito a avançar. O processo é lento”.

O episódio a que se refere o coordenador jurídico da Apib foi a sua participação e de mais três advogados indígenas, que fizeram sustentações orais contra a tese do marco temporal no STF. Ele estava acompanhado das advogadas Samara Pataxó, Ivo Macuxi e Cristiane Soares Baré.


Samara Pataxó no STF / Carlos Moura/SCO/STF

Depois de ouvir Samara Pataxó como amicus curiae, em setembro do ano passado, o ministro Edson Fachin que assumiu a Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) convidou-a para ser assessora do Núcleo de Inclusão e Diversidade da Secretaria Geral da Presidência do TSE. Nascida na aldeia Coroa Vermelha, em Porto Seguro (BA), a jovem indígena de 32 anos quer aproveitar sua passagem pela Corte eleitoral para superar paradigmas, como o racismo estrutural e institucional, ou ao menos amenizá-los. 

“Essas atribuições ganham espaço na medida em que são pautadas em diálogos transversais na própria Justiça Eleitoral, dentro do próprio TSE e nos Tribunais Regionais Eleitorais, e em instituições ou segmentos sociais, sobretudo com grupos minorizados e sub representados no processo eleitoral, dentre eles os povos indígenas”, disse Samara à Amazônia Real


Plenária dos advogados indígenas no ATL Eloy Terena / Alass Derivas | @derivajornalismo | APIB

Rede de advogados indígenas 

Eloy Terena informou que já há uma rede organizada de cerca de 15 advogados indígenas que atuam em organizações regionais. Ele explica que fazem reuniões e se comunicam com frequência. “Quando identificamos uma questão como foi o caso do marco temporal de repercussão geral, a partir da ação de reintegração de posse do povo Xokleng (de Santa Catarina), todos nos unimos com o mesmo propósito”, explicou o coordenador jurídico da Apib.

Presente em um segundo encontro na plenária com advogados indígenas, depois da audiência internacional online no ATL, o procurador do Ministério Público Federal Felício Pontes, que durante anos atuou no Pará e hoje está em Brasília, lembrou que a líder Alessandra Korep Munduruku em breve estará reforçando essa rede de advogados, já que cursa direito na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em Santarém. “Por melhor que tenhamos feito nossas petições, jamais haverá o mesmo efeito que a ação de um advogado indígena. É isso que penso quando te vejo no STF”, disse referindo-se a Eloy Terena, que mediou os debates.

Pouco antes do início das atividades plenárias, os organizadores do ATL receberam a visita da presidente da Comissão de Direitos dos Povos Indígenas da seccional do Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/DF), Carla Eugenia Nascimento. Ela estava acompanhada do secretário Welerson Pereira que comentou com a Amazônia Real que a instituição pode facilitar a interlocução dos povos com as instâncias federais. 

Welerson Pereira ressaltou que a OAB deseja a aproximação com os advogados indígenas, e que considera a interlocução desses profissionais em Brasília capaz de repercutir em outras seccionais da Ordem no país. “O aumento de advogados indígenas é recente, intenso e positivo, oferece mais representatividade e legitimidade ao movimento indígena”, exclamou.

Mas os indígenas estão enxergando mais longe. Desde o primeiro dia, o ATL tem demonstrado uma preocupação crescente dos indígenas de participar mais ativamente da vida política. “Será de suma importância potencializar e buscar amplo apoio para as candidaturas indígenas, uma vez que muitos pré-candidatos e muitas pré-candidatas são reconhecidas lideranças indígenas que já trazem consigo um respeitoso histórico de atuações na defesa dos direitos indígenas, do meio ambiente e da democracia, e que agora investem na política partidária como uma potente estratégia coletiva de luta para prosseguir com este propósito”, explicou Samara Pataxó.

A agora assessora da Presidência do TSE afirmou que o momento atual é de grande importância para o alinhamento e o fortalecimento do diálogo entre os mais variados povos indígenas e suas agendas de lutas. “Muitas candidaturas indígenas só são lançadas depois de passar pelo diálogo e aval da comunidade ou organização indígena a qual o candidato ou a candidata pertencem”, disse Samara Pataxó. Ela cita o exemplo de seu Estado, a Bahia, onde as escolhas foram feitas por consulta das organizações indígenas.


Marcha Demarcação Já, a primeira do ATL22 foi até o Congresso Nacional / Rodrigo Duarte/Proteja/Cobertura Colaborativa Apib