Descontentamento

“É difícil lidar com um sistema que engessa a gente”, diz curadora indígena que deixou o Masp

Sandra Benites pediu demissão do museu depois que seis fotos sobre o MST e a luta indígenas foram vetadas de uma mostra

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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No Masp desde 2019, seria a primeira vez de Sandra Benites como curadora de uma exposição - Divulgação/Facebook/Masp

Sandra Benites, a primeira curadora indígena a trabalhar em um museu brasileiro, deixou seu cargo de curadora adjunta do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), nesta semana, depois que seis fotos não foram incluídas na exposição Retomada, parte da mostra Histórias Brasileiras, prevista para ocorrer em julho. A mostra seguirá o calendário normalmente. 

Quatro das fotos retratam momentos de luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e outras duas da luta indígena, de João Zinclar, André Vilaron e Edgar Kanaykõ, respectivamente.  

Em entrevista ao Brasil de Fato, Benites afirmou que já estava insatisfeita com o cargo que ocupava dentro do museu, desde o final de 2019, sendo chamada apenas para redigir alguns textos. Esta seria a primeira vez de Benites como curadora de uma exposição.   

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Nesse sentido, Benites ressalta que é importante ter não somente obras de artistas indígenas, mas também os próprios indígenas, bem como pessoas de outros setores vulnerabilizados da sociedade, ocupando efetivamente e produzindo dentro de espaços como o Masp. 

“O meu corpo é um coletivo, ele não é individual. E mais simbólico ainda, porque eu sou mulher, eu sou mulher indígena, guarani. Isso também requer diálogo, debate, escuta. Várias coisas que implicam no próprio sistema”, diz. 

“Ter a obra de arte indígena e não indígena, de vários outros corpos que são excluídos da nossa sociedade de modo geral, é importante, porque é a partir da onde vai trazer o debate sobre a nossa diversidade”, afirma Benites. 

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Em outras palavras, reforça Benites, ter as obras “é uma coisa que impacta, mas que [sem esse comprometimento] não se move, não se transforma” no sentido de promover mudanças. “É muito difícil ainda lidar com esse tipo de sistema que deixa a gente engessado”, diz a curadora, que também é antropóloga. 

Para ampliar o diálogo e o espaço de transformação, é necessário ter “pessoas que produzem arte lá dentro”. "É importante hoje a gente discutir essa ideia também: não só pegar uma obra de arte, mas pegar essas pessoas que produzem arte, que não é da mesma origem, não é do mesmo pensamento, não é do mesmo corpo.” 

Relembre o caso 

Segundo Sandra Benites e Clarissa Diniz, curadora convidada para integrar o projeto, o museu alegou que as fotografias não poderiam ser expostas, pois o prazo estipulado para incluir as obras teria sido extrapolado.  

As curadoras, entretanto, dizem que não foram avisadas pela instituição sobre a data limite. “O Masp nunca mandou para gente o cronograma. A gente achou que estava tudo bem, porque a gente não tinha cronograma”, disse Benites ao Brasil de Fato

Em nota, as curadoras também reforçaram a inexistência de um prazo. “Reiteramos: nunca nos foi informado um cronograma de “Histórias Brasileiras” e nunca atrasamos a definição da lista de obras do Retomadas, como alega o MASP, tentando nos imputar uma imagem de incompetência.” 

Para elas, a mostra revelou “a urgência de revermos as éticas e políticas coloniais de nossos territórios, línguas, corpos, representações e museus”. Por isso, Benites afirma que o “sistema colonial”, cujos valores ainda seguem presentes nas instituições e normas, é “opressor”. 

Com a negativa às seis imagens, as curadoras decidiram, então cancelar a mostra. "Aceitar a exclusão das imagens das retomadas em nome da permanência do núcleo nos levaria a ser desleais com os sujeitos e movimentos envolvidos na nossa curadoria – contradição que não estamos dispostas a negociar por não concordar com tamanha irresponsabilidade", afirmam as curadoras, em nota. “A gente não podia seguir em frente”, disse Benites. 

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O MST também se posicionou sobre o caso. Em nota, o movimento disse que “ao inviabilizar a inserção da totalidade desses documentos”, o Masp coloca em prática “a exclusão de um dos maiores movimentos sociais da história contemporânea brasileira e latino-americana". 

Eles ainda afirmam que a decisão “aponta para uma construção de conhecimento histórico distorcido e comprometido com uma cultura deturpadora da real complexidade da história política brasileira”. 

Por sua vez, o Masp informou à imprensa que recebeu as obras com cerca de três meses de antecedência, sendo que o prazo padrão do Masp é de quatro a seis meses, portanto, depois do prazo que teria sido estipulado.   

"No entanto, o museu conseguiu atender sim um dos pedidos das curadoras, de maneira excepcional, para incluir as obras pertencentes ao acervo do Movimento Sem Terra, um total de sete cartazes e documentos. O que não foi possível incluir foram seis fotografias de três fotógrafos. Embora esse material representasse o eixo central do núcleo, foi entregue ao museu fora do prazo", escreveu a instituição em nota. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho