Tensão global

Análise | Quem está levando os Estados Unidos à guerra?

O complexo político-econômico dos EUA que elabora a política de avanço sobre a China

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Os Estados Unidos enviaram cerca de 2 mil sistemas antimísseis tipo Stinger para a Ucrânia desde fevereiro de 2022 - Pentágono EUA

O mundo está experimentando a crescente avidez por guerra dos Estados Unidos. Em meio à escalada da crise da Ucrânia, os Estados Unidos e a OTAN vêm tentando intensificar sua guerra por procuração com a Rússia, enquanto continuam a aprofundar seu cerco e suas provocações contra a China.  

Se havia alguma dúvida quanto à intenção de Washington de entrar em guerra com Pequim, o episódio da série Meet the Press da NBC no último 15 de maio sobre "Jogos de Guerra" simulados deveria dissipar quaisquer incertezas desse tipo. É preciso notar que o Centro para uma Nova Segurança dos Estados Unidos (Center for a New American Security- CNAS), que organizou esses "jogos", é financiado por uma série de companhias militares e tecnológicas estadunidenses, incluindo Facebook, Google e Microsoft, o Escritório de Representação Econômica e Cultural de Taipei, e a Sociedade Aberta de George Soros. Essa simulação está claramente em consonância com os outros sinais de guerra, tanto do Congresso, quanto do Pentágono.  

No dia 14 de abril, uma delegação bipartidária de legisladores estadunidenses visitou Taiwan. Em 4 de maio, Charles Richard, chefe do Comando Estratégico dos Estados Unidos, argumentou veementemente no Congresso pela existência de "ameaças nucleares" feitas pela Rússia e pela China ao país, alegando que a última provavelmente usará a coerção nuclear em seu próprio benefício. No dia 5 de maio, a Coreia do Sul anunciou que havia aderido a uma organização de defesa cibernética organizada pela OTAN, ao mesmo tempo em que a Coreia do Sul e o Japão foram convidados a participar da cúpula da OTAN em Madri, o que sugere a possibilidade de uma filial asiática da Aliança. 


Biden e o primeiro ministro do Japão, Fumio Kishida, em encontro ocorrido em meados de maio / Casa Branca

Diante da agressividade e da beligerância da administração Biden em assuntos externos, não se pode deixar de pensar: entre a elite governante dos Estados Unidos, quem está defendendo a guerra? Ainda existe um mecanismo para refrear essa beligerância no país? 

Este artigo chega a três conclusões: primeiramente, na administração Biden, dois grupos de elite da política externa que costumavam competir entre si, falcões liberais e neoconservadores, fundiram-se estrategicamente, formando o mais importante consenso de política externa dentro do escalão de elite desde 1948, e levando a política de guerra do país a um novo nível; em segundo lugar, considerando interesses de longo prazo, a grande burguesia dos Estados Unidos chegou a um consenso de que a China é um rival estratégico, e estabeleceu um sólido apoio para sua política externa; e, em terceiro lugar, devido à estrutura da Constituição dos Estados Unidos, à expansão das forças de extrema direita e à total financeirização das eleições, as chamadas instituições democráticas de freios e contrapesos são completamente incapazes de impedir que a política bélica se alastre. 

A fusão das elites de política externa beligerantes 

Os primeiros representantes dos falcões liberais estadunidenses incluíram presidentes democratas como Harry Truman, John F. Kennedy e Lyndon Johnson, cujas raízes ideológicas – o intervencionismo liberal – remontam à concepção de Woodrow Wilson de que a nação deveria estar no palco mundial lutando pela democracia. A invasão do Vietnã foi guiada por essa perspectiva. 

Após a derrota no Vietnã, o Partido Democrata reduziu temporariamente os apelos à intervenção como parte de sua política externa. O senador democrata Henry "Scoop" Jackson (também conhecido na época como o "Senador da Boeing"), um falcão liberal, juntou-se a outros anticomunistas que apoiavam as intervenções em outros países, ajudando a inspirar um grupo de neoconservadores (neocons). Estes, por sua vez, apoiaram o republicano Ronald Reagan no final dos anos 70 em razão de seu compromisso de combater o "expansionismo" soviético. 

Com a dissolução da União Soviética em 1991 e o aumento do unilateralismo dos Estados Unidos, os neoconservadores assumiram o papel principal da política externa do país com seu mentor, Paul Wolfowitz, outrora assessor de Henry Jackson. Em 1992, poucos meses após a desintegração da União Soviética, Wolfowitz, então subsecretário da Política de Defesa, introduziu sua Diretriz da Política de Defesa, em cujo âmbito defendia explicitamente uma posição unipolar permanente para os Estados Unidos, a ser criada através da expansão de seu poderio militar na esfera de influência da antiga União Soviética e ao longo de todo o seu perímetro, com o objetivo de impedir o ressurgimento da Rússia como uma grande potência.  

A "grande estratégia" unipolar liderada pelos Estados Unidos, através da projeção da força militar, serviu para orientar a política externa de George H. W. Bush e seu filho George W. Bush, juntamente com Bill Clinton e Barack Obama. A primeira Guerra do Golfo foi possível, em grande parte, devido à fragilidade soviética. Seguiu-se o desmembramento militar da Iugoslávia pelos Estados Unidos/OTAN. Após o 11 de setembro, a política externa da administração Bush filho foi completamente dominada pelos neoconservadores, incluindo o vice-presidente Dick Cheney e o secretário de Defesa Donald Rumsfeld. 

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Embora ambos defendessem intervenções militares no exterior, existem duas diferenças históricas entre falcões liberais e neoconservadores. Por um lado, os falcões liberais acreditavam que os Estados Unidos deveriam influenciar a ONU e outras instituições internacionais no sentido de realizar intervenções militares, enquanto os neoconservadores tinham a intenção de ignorar as instituições multilaterais.  

Por outro lado, os falcões liberais buscavam realizar intervenções militares ao lado dos aliados no Ocidente liderados pelos Estados Unidos, ao passo que os neoconservadores não tinham medo de conduzir operações militares unilaterais e de violar qualquer coisa que se assemelhasse ao direito internacional.  

Como esclareceu o historiador de Harvard Niall Ferguson, os neoconservadores estavam felizes em aceitar o título de "Império Americano" e decidiram unilateralmente impor uma intervenção militar em qualquer país na qualidade de governantes do único império do mundo. 

É um equívoco comum pensar que os dois partidos estadunidenses – Democrata e Republicano – são nitidamente diferentes na estratégia de política externa. Na superfície, é verdade que, de 2000 a 2016, a Heritage Foundation foi um importante reduto neoconservador que se inclinava para a política republicana, enquanto think tanks como o Brookings Institution e o mais tarde estabelecido CNAS eram o lar de falcões liberais mais pró-democráticos.

Havia membros de ambos os partidos em cada think tank, cujas diferenças se centravam em propostas políticas específicas, não em filiações partidárias. Na realidade, por trás da Casa Branca e do Congresso, uma rede de planejamento político de fundações sem fins lucrativos, universidades, think tanks, grupos de pesquisa de políticas públicas e outras instituições converteram as "pautas" das corporações e dos capitalistas em propostas de políticas e relatórios. 

Outro erro recorrente é a interpretação de que o lado "progressista" do liberalismo vai equilibrar o desenvolvimento social, fornecer assistência internacional e limitar os gastos militares. O neoliberalismo, porém, que começou em meados dos anos 70, está baseado na subordinação do Estado às forças do mercado e na austeridade dos gastos sociais, tais como saúde, assistência alimentar e educação.  

Tanto os republicanos quanto os democratas seguem esse princípio. O neoliberalismo encoraja gastos militares ilimitados. O último orçamento de Biden inclui um aumento ano a ano de 4% nos gastos militares. Durante a pandemia de covid-19, o governo dos Estados Unidos forneceu US$5 trilhões em incentivos, dos quais US$1,7 trilhões foram diretamente para os bolsos das grandes corporações. É particularmente nefasto o grave prejuízo que o neoliberalismo causou à qualidade de vida dos povos do Sul Global. Ele arrastou os países em desenvolvimento para armadilhas de dívidas e os coagiu a pagar infindáveis empréstimos ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial. 

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No âmbito da política externa, o think tank mais influente desde a Segunda Guerra Mundial é o Conselho de Relações Exteriores (Council on Foreign Relations - CFR). Esse think tank recebe doações de diversas fontes, e sua diretoria atual inclui Richard Haass, principal conselheiro de Bush filho sobre o Oriente Médio, e Ashton Carter, secretário de Defesa de Obama. A revista alemã Der Spiegel descreveu o CFR como "a instituição privada mais influente dos Estados Unidos e do mundo ocidental" e "politburo central do capitalismo". Richard Harwood, editor sênior e investigador do Washington Post, chamou o conselho e seus membros de "a coisa mais próxima de um órgão de governo estadunidense". 


George W. Bush, presidente cuja gestão iniciou a invasão do Iraque / Telfair Brown

Independentemente dos candidatos que eles apoiam nas eleições, essa rede de colaboração de longa data tem mantido a estabilidade da política externa. Essa visão mundial de supremacia dos Estados Unidos que nega o envolvimento de outros países em assuntos internacionais data da Doutrina Monroe de 1823, a qual proclamava o domínio do país sobre todo o mundo ocidental; a diferença é apenas que a elite da política externa dos Estados Unidos de hoje tem aplicado essa doutrina a todo o mundo, e não apenas ao continente americano. Sinergia interpartidária e troca de partidos são comuns para esse grupo de formuladores de política externa, e estão intimamente ligados à classe capitalista dominante, bem como ao Estado Profundo (Deep State – serviços de inteligência juntamente com os militares), que controla a política externa dos Estados Unidos. 

Antes de 2008, o principal objetivo estratégico dos neoconservadores, reunidos no Partido Republicano, era a desintegração e a desnuclearização da Rússia. Por volta de 2008, porém, as forças de elite política dos Estados Unidos começaram a perceber que a ascensão econômica da China não podia ser interrompida, e que seus futuros líderes não seriam os próximos Gorbachevs ou Ieltsins.  

Foi a partir desse período em diante que os neoconservadores viram a China completamente da perspectiva de confronto e contenção. Ao mesmo tempo, alguns falcões liberais pró-Democratas fundaram o CNAS, e Hillary Clinton, uma falcoa liberal típica e então secretária de Estado, liderou o desenvolvimento e a implementação da estratégia Pivô para a Ásia (Pivot to Asia), também aplaudida pelos neoconservadores que ainda se encontravam na época no campo republicano.  

Max Boot a elogiou como "uma voz forte". No entanto, a estratégia de estender a OTAN à Ucrânia e de enfrentar a Rússia continua sendo uma prioridade para os neoconservadores e falcões liberais. Em termos de prioridades estratégicas, eles discordam dos "realistas", que propõem um desanuviamento com a Rússia a fim de fortalecer o confronto com a China. 

A vitória de Donald Trump em 2016 criou uma breve turbulência no consenso do CFR. Como escreveu John Bellamy Foster no livro Trump in the White House: Tragedy and Farce, Trump ascendeu ao poder em parte através da mobilização de um movimento neofascista baseado na classe média-baixa branca.  

Apenas um pequeno número de pessoas da grande elite da capital o apoiou inicialmente, incluindo Dick Uihlein, proprietário do gigante naval Uline, Bernie Marcus, fundador do varejista de materiais de construção Home Depot, Robert Mercer, investidor no meio de comunicação de extrema direita Breitbart News Network, e o banqueiro Timothy Mellon. As tendências de Trump de reduzir o engajamento em assuntos globais – particularmente a retirada das tropas da Síria e do Afeganistão e o contato diplomático com a Coreia do Norte – foram ao encontro dos interesses de curto prazo da burguesia baixa e média e conquistaram o apoio de realistas da política externa, incluindo Henry Kissinger, mas perturbaram os neoconservadores.  

Um grupo de neoconservadores de elite desempenhou um papel importante na campanha contra Trump, com cerca de 300 funcionários que haviam apoiado a administração Bush a voltar para o campo democrata nas eleições de 2020. Max Boot, o grande trunfo dos neoconservadores, converteu-se assim no mentor intelectual da política externa da administração Biden. Em 2003, Boot escreveu: "Em razão da carga histórica que o 'imperialismo' carrega, não há necessidade de o governo dos Estados Unidos abraçar o termo. Mas definitivamente deveria abraçar a prática". 

Com o fim da interrupção de Trump, o CFR voltou à normalidade, e os neoconservadores e falcões liberais da administração Biden estão completamente alinhados na orientação estratégica. Começando com o 11 de setembro e especialmente depois da crise das hipotecas subprime, a consciência do crescimento imparável da China uniu os dois grupos de elite; nos últimos anos, eles têm estado unidos em algumas questões chave de política externa – uma união não vista em décadas.  


Reunião entre lado ucraniano e o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden / Reprodução/Twitter - @POTUS

A doutrina dos assuntos internacionais com a qual eles concordam pode ser resumida da seguinte maneira: os Estados Unidos deveriam intervir ativamente na política de outros países, remover regimes indesejáveis, fazer todo esforço para promover "liberdade e democracia", assegurar sua hegemonia global por todos os meios, e reprimir aqueles Estados que desafiam os valores ocidentais e a hegemonia militar – com a Rússia e a China como seus principais alvos.  

Em maio passado, o secretário de Estado Blinken apelou para a defesa de uma ambígua "ordem internacional baseada em normas" (esse termo se refere às organizações internacionais e de segurança dominadas pelos Estados Unidos e não às instituições mais amplas lastreadas no sistema ONU), o que sugere que os falcões liberais abandonaram oficialmente a pretensão de acompanhar a ONU ou outras organizações multilaterais internacionais – a menos que eles sigam as regras dos Estados Unidos. 

Em 2019, o popular autor neoconservador Robert Kagan, escreveu em coautoria com o falcão liberal Anthony Blinken (ainda apenas o ex-secretário de Estado adjunto na gestão Obama), um artigo que exortava os Estados Unidos a abandonar a política de Trump do America First (Estados Unidos em primeiro lugar). Eles demandavam a contenção (cerco e enfraquecimento) da Rússia e da China e propuseram uma política de "diplomacia preventiva e dissuasão" contra "os adversários da América" – ou seja, "mandar os rapazes e tanques para qualquer lugar".  

Aliás, a esposa de Robert Kagan, Victoria Nuland, serviu como secretária de Estado adjunta para assuntos europeus e euroasiáticos na administração Obama. É bem sabido que ela desempenhou um papel chave na organização e apoio à revolução colorida/golpe de 2014 na Ucrânia. Atualmente, ela está servindo como subsecretária de Estado para Assuntos Políticos na administração Biden, a terceira posição mais alta no Departamento de Estado, ao lado do secretário Blinken e do subsecretário Sherman. Ela é também uma seguidora de confiança e herdeira espiritual de Madeleine Albright, a recém falecida líder liberal dos falcões.  

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O pessoal do CNAS está entrelaçado com os do think tank da OTAN, o Snowcroft Center for Strategy and Security (Atlantic Council). Matthew Kroenig, seu vice-diretor, argumentou recentemente a favor da consideração do uso antecipado pelos Estados Unidos de armas nucleares "táticas". A partir desse pequeno grupo de comerciantes da morte, pode-se facilmente detectar a profunda integração de dois grupos de elite de relações internacionais, bem como os verdadeiros catalisadores da crise da Ucrânia. 

A evolução específica do conflito ucraniano revela as táticas adotadas por essa elite beligerante: fortalecer a liderança dos Estados Unidos sobre a OTAN, utilizando-a (ao invés da ONU) como o principal mecanismo de intervenção no exterior, para se recusar a reconhecer as reivindicações de soberania e segurança sobre regiões sensíveis do "adversário", provocando assim a guerra, para até mesmo planejar o uso de armas nucleares táticas e conduzir uma "guerra nuclear limitada" no território do adversário ou em torno dele.  

As táticas incluem também impor medidas coercivas unilaterais e combinar sanções econômicas, medidas financeiras, de informação, propaganda e culturais, revoluções coloridas, guerras cibernéticas, lawfares e outras táticas de guerra híbridas durante todo o processo, a fim de enfraquecer e subverter o regime do adversário. Se os resultados desejados forem alcançados na Ucrânia, a mesma estratégia será sem dúvida replicada no Pacífico Ocidental. 

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O alinhamento estratégico não significa que as elites políticas não estejam divididas quanto a outras questões menores, tais como a mudança climática. Mesmo sobre esse assunto, porém, como vimos recentemente, os Estados Unidos exigem que a Europa deixe de importar gás natural da Rússia, e John Kerry, o enviado do presidente para o clima, não está comprometido com os potenciais impactos ambientais negativos de tal medida – em parte porque os Estados Unidos querem substituir as vendas de gás russo na Europa pelas suas próprias. Conflitos e contradições dentro dos Estados Unidos continuam sem solução e estão caminhando em uma direção perigosa. 

Nos últimos anos, vários progressistas internacionais lançaram campanhas para expressar suas preocupações sobre a agressiva estratégia externa dos Estados Unidos. O emprego por eles do termo "nova Guerra Fria", entretanto, subestima a perversidade de alguns aspectos da atual política externa do país.  

Historicamente, a Guerra Fria com a União Soviética seguiu certas regras e linhas gerais: os Estados Unidos usaram uma variedade de meios políticos e econômicos para exercer pressão e procurar subverter o Estado soviético, mas não tentavam mudar as fronteiras nacionais dos adversários nucleares. Os dois lados reconheceram o alcance real dos interesses e das necessidades de segurança um do outro. Agora o Wall Street Journal declara abertamente que os Estados Unidos deveriam demonstrar sua capacidade de vencer uma guerra nuclear, já que a elite do CFR afirma que a Ucrânia e Taiwan devem ser protegidos, já que ambos são sítios militares estratégicos dentro do perímetro militar ocidental.  

Mesmo o líder da Guerra Fria Kissinger expressou preocupação e oposição à atual política externa dos Estados Unidos, argumentando que a estratégia correta deveria ser dividir a China e a Rússia, e provocar a Rússia contra a China, e que uma guerra direta com os dois países nucleares traria consequências perigosas. Kennan e McNamara teriam concordado com Kissinger, se eles ainda estivessem vivos. A velha geração de líderes da Guerra Fria murchou, e ninguém mais os ouviria de qualquer maneira. 

A burguesia estadunidense apoia os preparativos de guerra contra a China 

Por um lado, devido à formação de cadeias de abastecimento globais, as indústrias manufatureiras dos Estados Unidos e da Europa dependem fortemente das importações da China, e Biden tem que lidar com os pedidos de desoneração das barreiras tarifárias da guerra comercial para aliviar a enorme pressão da inflação nos Estados Unidos.

Por outro lado, a própria China não iniciou a desacoplamento econômico, mas enfrentou a pressão das guerras comercial e tecnológica, ao mesmo tempo em que impulsionou a "grande circulação interna". Desde a pandemia, houve um aumento superficial e por fases no comércio de mercadorias entre a China e os Estados Unidos. 

Deve-se salientar, contudo, que uma mudança está ocorrendo na lógica básica das relações China-EUA: a burguesia dos Estados Unidos tem estreitado sua aliança contra a China e apoiado a estratégia belicosa da elite diplomática. Essa situação decorre de fatores tanto reais quanto ideológicos. Os números do PIB dos Estados Unidos e do Ocidente mascaram completamente os aportes provenientes da mão-de-obra nas fábricas do Sul Global.

As vendas altamente lucrativas da Apple dentro dos Estados Unidos aparecem em números do PIB do país, mas a fonte real de seus altos retornos é o excedente criado pela força de trabalho produtiva avançada, massivamente eficiente e de baixo custo, em Shenzhen, Chongqing, e em outras cidades das fábricas da Foxcon. A China possui uma infraestrutura industrial, logística e social extremamente sofisticada, que representa 28,7% da produção industrial mundial. Não estamos mais vivendo na época de grandes fábricas com trabalhadores não qualificados de baixa remuneração. Mudar toda a cadeia de abastecimento da China para a Índia ou México seria um processo longo de décadas, e não pode basear-se apenas em salários mais baixos. 

Poucos setores da economia dos Estados Unidos dependem fortemente nos mercados chineses locais para vendas, sendo os fabricantes de chips do país norte-americano a exceção. Nem a Boeing, Caterpillar, General Motors, Starbucks, Nike, Ford, nem a Apple, com 17%, têm mais de 25% de suas receitas provenientes da China.

No comunicado sobre os ganhos de maio da Disney, o CEO Bob Chapek expressou confiança no êxito, mesmo sem o mercado chinês. A receita total das companhias S&P 500 é de US$ 14 trilhões. Não mais do que 5% disso está relacionado às vendas dentro da China. É improvável que os CEOs estadunidenses se oponham à orientação da política externa do país com base em um aumento pouco claro a curto prazo no acesso ao crescente mercado interno da China. Outras provas disso podem ser vistas em algumas indústrias chave. 

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A primeira é o zeitgeist da época, a indústria de tecnologia/internet. Entre os dez estadunidenses mais ricos, o único estrangeiro da indústria de tecnologia/internet é Elon Musk, cujo primeiro pote de ouro, no entanto, também proveio desse segmento. Em comparação com a lista dos estadunidenses mais ricos de 20 anos atrás, os da indústria manufatureira tradicional, banqueira e da indústria petrolífera desapareceram.


Elon Musk, que entre outras coisas defendeu o golpe na Bolívia por conta do lítio, que alimentam os veículos da Tesla / Win McNamee / Getty Images via AFP

A maior parte da elite tecnológica tem fortes impulsos anti-China. Google, Amazon, e Facebook não têm praticamente nenhum mercado na China. A Apple e a Microsoft também se veem confrontadas com dificuldades crescentes. A fatia de mercado da Huawei superou uma vez a do iPhone na China, para ser novamente ultrapassada devido à proibição do chip. Fontes afirmaram recentemente que o governo chinês está abraçando de forma abrangente os sistemas locais Linux e Office Productivity para substituir o Windows e o Office da Microsoft. Empresas tradicionais de TI como a IBM e a Oracle há muito tempo foram marginalizadas pela onda De-IOE, impulsionada pelo Alibaba, que procura substituir servidores IBM, bancos de dados Oracle, e dispositivos de armazenamento EMC por soluções locais e de código aberto.  

Os gigantes tecnológicos dos Estados Unidos anseiam por uma mudança de sistema político na China - mesmo que seja necessária uma guerra – para abrir a porta do mercado chinês. Eric Schmidt, ex-presidente executivo da Google, liderou o estabelecimento da Unidade de Inovação em Defesa (Defense Innovation Unit -DIU) e da Comissão de Segurança Nacional sobre Inteligência Artificial (National Security Commission on Artificial Intelligence - NSCAI). Sua constante disseminação da teoria da "Ameaça da China" reflete a opinião predominante na comunidade tecnológica dos Estados Unidos. Nos últimos dois anos de guerra de opinião pública em torno da pandemia, de Hong Kong e de Xinjiang, tanto o Twitter quanto o Facebook têm desempenhado um papel na supressão de relatos objetivos de fatos e participado ativamente na demonização da China. 

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A produção manufatureira dos Estados Unidos continua dependendo da capacidade produtiva chinesa. Investimentos consistentes e inovação tecnológica na fabricação dos Estados Unidos foram efetivamente abandonados anos atrás, e, apesar dos apelos de Obama e Trump para que a "fabricação nearshoring" voltasse à América do Norte, pouco foi alcançado. A mega fábrica de Tesla em Xangai pode ter sido o único investimento notável de fabricação dos Estados Unidos na China nos últimos anos; no entanto, Elon Musk vem ganhando muitos projetos de compras governamentais através do SpaceX, cujo satélite Starlink foi criticado pela China como sendo altamente irresponsável quando suas órbitas alteradas se aproximaram da estação espacial chinesa duas vezes no ano passado. A publicação PLA Daily da China declarou que sua expansão brutal representou um sinal de militarização da utilização de satélites. O serviço Starlink na Ucrânia é uma prova disso. Com a recente aquisição por Musk da rede social Twitter, é improvável que ele mude o controle de longa data das narrativas do Twitter contra a China e a Rússia. 

A indústria de serviços financeiros dos Estados Unidos tem esperado que os mercados de capitais da China se abram ainda mais para eles, mas, em seu sonho favorito, esperam que o país asiático tenha uma transição de regime e enverede por um caminho neoliberal absoluto. A atitude anti-chinesa de Soros é bem conhecida. Em novembro passado, Jamie Dimon, diretor executivo do JP Morgan Chase, declarou que "o JP Morgan Chase viverá mais que o Partido Comunista chinês" (embora mais tarde ele tenha pedido desculpas e dito que estava apenas brincando) e insinuou que a China sofreria uma pesada investida militar se tentasse restaurar Taiwan.  

Os mercados de capitais da China não estão avançando na direção que Wall Street preferiria, como manifestou o governo chinês ao reforçar os controles sobre a expansão desordenada do capital e retirar uma série de ações chinesas da bolsa de valores dos Estados Unidos. Na reunião anual dos acionistas da Berkshire Hathaway em maio, Charlie Munger, vice-presidente da companhia, declarou que a China valia o investimento. Mas é importante levar em consideração que a premissa de sua declaração é que o governo chinês é um "regime totalitário" que "viola os direitos humanos", e que apenas vale o risco extra porque se podem fazer melhores negócios a preços mais baixos no país. 


Wang Wenbin, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China / Greg Baker / AFP

Não é novidade que as indústrias de varejo e de consumo dos Estados Unidos estão sendo esmagadas pela manufatura chinesa e pelas marcas chinesas. Em março passado, a Nike e outras empresas boicotaram o algodão de Xinjiang por falsos motivos de "trabalho forçado", lançando em maio um anúncio supostamente racista na China, resultando em mais uma perda de participação de mercado, ultrapassada pela marca chinesa Anta.

A pandemia de covid-19 levou a uma desconexão significativa entre as indústrias culturais e de entretenimento dos dois países, com filmes nacionais representando 85% das bilheterias chinesas em 2021. Os filmes de super-heróis da Marvel, outrora populares entre as plateias chinesas, não puderam entrar no mercado chinês devido a preocupações ideológicas, com zero bilheterias na China em 2021, e tampouco se espera que o novo filme do Doutor Estranho (Doctor Strange), com mais uma vez cenas anti-chinesas, seja exibido na China. Esses casos significam a troca de interesses comerciais e ideológicos entre as empresas estadunidenses. 

Evidentemente, o famigerado "Complexo Militar Industrial” dos Estados Unidos sempre teve um papel único de "caso especial" como o auge do setor estratégico econômico, político e militar do imperialismo. As seis maiores empreiteiras militares do mundo são Lockheed Martin, Boeing, Raytheon Technologies, BAE Systems, Northrop Grumman e General Dynamics, com vendas totais de mais de US$ 160 bilhões por ano. As empresas de tecnologia como Amazon, Microsoft, Google, Oracle, IBM, e Palantir (fundada pelo extremista Peter Thiel) são novas na fila por concorrência.

Esse grupo está recebendo contratos, alguns dos quais chegam a dez bilhões de dólares.  A indústria tecnológica se tornou uma parte importante da indústria militar, desempenhando o papel estratégico principal no vasto império de inteligência dos Estados Unidos –  que coleta todos os dados –, está no centro da hegemonia da mídia softpower e da mídia social dos Estados Unidos, e assegura o domínio digital total sobre a maioria do Sul Global.  Como tal, tornou-se imune à verdadeira regulamentação ou ameaças de desmonopolização. 

A campanha dos Estados Unidos pela supremacia militar leva a uma série de gastos nas áreas de armas, chips de silício, comunicações avançadas (inclusive guerra cibernética por satélite), e biotecnologia. O orçamento do governo dos Estados Unidos para o ano fiscal de 2023 abarca o gasto oficial de US$ 813 bilhões com as Forças Armadas (grande parte dos gastos militares está disfarçada em outras partes do orçamento geral), e o Pentágono afirma que precisará de pelo menos US$ 7,3 trilhões em dotações durante os próximos 10 anos. 

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A privatização do Estado sob o neoliberalismo levou a novas características durante os últimos 30 anos. O Estado se tornou um veículo de consequência, onde funcionários de alto nível do governo, incluindo congressistas, senadores, assessores de política e segurança, oficiais de gabinete, coronéis, generais e presidentes de ambos os partidos se tornam multimilionários através da bem descrita "porta giratória" com o setor privado. O status de membro do governo lhes permite assegurar que, uma vez que a frase "Segurança Nacional" seja introduzida em qualquer reunião, o espectro da ambição pessoal e corporativa e da expansão militar radical se abra ainda mais. 

Sob essa forma agora prevalecente de corrupção de "Primeiro Mundo", as recompensas legais são efetuadas após a saída do cargo público. Esses subornos "legais" acumulados ocorrem na forma de salário a empregados pagos, ou de honorários a membros da diretoria e conselheiros das mesmas firmas às quais eles tinham anteriormente concedido e supervisionado contratos. 

Bill Clinton possuía mais de um milhão de dólares em dívidas quando deixou a Casa Branca, mas agora ele e Hillary Clinton têm um valor de US$ 120 milhões. Com uma impunidade chocante, 85 de 154 pessoas que se encontraram ou tiveram conversas telefônicas marcadas com Hillary Clinton para assuntos privados enquanto ela conduzia o Departamento de Estado doaram US$ 156 milhões para o programa de caridade de sua família, que mais tarde foi vergonhosamente desmantelado. 

O atual secretário de Defesa (um cargo alegadamente "civil"), Lloyd Austin, trabalhou anteriormente na diretoria de companhias militares-industriais como United Technologies e Raytheon Technologies, onde ganhou a maioria de seus US$ 7 milhões de patrimônio líquido DEPOIS de "se aposentar" como um general de quatro estrelas. 


Soldados ucranianos supervisionam armamento estadunidense em Kiev; os EUA concentram 39% do orçamento militar global, segundo dados do SIPRI de 2021 / AFP

General aposentado e ex-secretário de Defesa de Trump, e ex-membro da diretoria do CNAS, James "Mad Dog" Mattis, tinha um patrimônio líquido de US$ 7 milhões em 2018, cinco anos após sua "aposentadoria" militar em 2013. Isso foi auferido através de comissões significativas provenientes de uma ampla lista de empreiteiros militares e incluiu de US$ 600.000 a US$ 1,25 milhões em ações e vantagens na grande empreiteira de defesa General Dynamics. 

Entre 2009 e 2011, mais de 70% (76 de 108) dos principais generais trabalharam para empreiteiras militares após sua "aposentadoria".  Os generais também podem dobrar seus dividendos, recebendo honorários do Pentágono e honorários de empreiteiros militares privados simultaneamente. O relatório do Brass Parachut Report constatou que, apenas em 2016, os oficiais militares que passaram pela porta giratória incluíam 25 generais, 9 almirantes, 43 tenentes-gerais e 23 vice-almirantes. 

Raytheon, General Motors, Boeing e outras empresas militares-industriais e seus investidores, Matsushima Capital, são importantes financiadores do CNAS e da WestExec Consulting; o secretário de Estado, Blinken, o diretor de Inteligência Nacional, Haynes, o diretor adjunto da CIA, Cohen, o secretário assistente de Defesa, Ratner, entre outros, já trabalharam na WestExec. 

Outra novidade é o surgimento de Empreiteiras Militares Privadas (EMPs) titularizadas por participações privadas. Cerca da metade das Forças Armadas dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão eram na verdade empregadas pelas EMPs. Erik Prince, fundador da Blackwater, mudou o nome da empresa para Xe Services e a vendeu para duas empresas de capital privado por US$ 200 milhões em 2010. Esses investidores de participações privadas renomearam a firma ACADEMI, compraram duas das concorrentes de Blackwater, Triple Canopy e Olive Group, depois venderam as três EMPs em 2016 para a maior firma de participações privadas do mundo, a Apollo, por um valor estimado em US$1 bilhão. 

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O Complexo Industrial Militar autopropulsionado, composto de empreiteiras militares (agora incluindo tecnologia e capital privado), juntamente com políticos e generais, está literalmente liderando a tarefa de expansão maciça da capacidade militar dos Estados Unidos, e todos usam agora a China, bem como a Rússia, como pretexto. Muitos desse grupo cometeram crimes de guerra no Iraque, Afeganistão, Síria, Líbia, e em outros lugares. 

Poucos capitalistas individuais influentes nos Estados Unidos estão dispostos a não endossar abertamente o coro "a China é nossa inimiga". Raramente se encontram opiniões ou apelos públicos discordantes nas seções de opinião do New York Times ou do Wall Street Journal. Michael Bloomberg, que foi criticado por ter sido brando com a China alguns anos atrás, agora não faz nenhum apelo à contenção da histeria da guerra. Em vez disso, ele foi nomeado para presidir a Junta de Inovação da Defesa em fevereiro. Ray Dalio, fundador da Bridgewater Associates, sendo otimista quanto às perspectivas econômicas da China, sempre foi considerado um excluído ideológico e fanático. McKinsey favoreceu mais transações econômicas com a China e foi criticado pelo New York Times por "ajudar a elevar o status de governos autoritários". Atualmente, a influência de McKinsey nos círculos empresariais dos Estados Unidos foi muito enfraquecida. 

Mais criticamente, o escalão superior da elite burguesa dos Estados Unidos vem há muito sendo mais influente do que a "elite industrial" jamais foi. Por exemplo, Michael Bloomberg, cujo valor é estimado em US$ 83 bilhões e que possui 88% da empresa de serviços de informação Bloomberg, também fez consideráveis investimentos na bolsa de valores ao longo dos anos. Os bilionários de hoje, de Eric Schmidt a Charles Koch, George Soros e Elon Musk, diversificam seus investimentos através de indústrias e financiam think tanks e grupos de política através de fundações sem fins lucrativos, permitindo-lhes transpor os limites dos interesses econômicos de curto prazo e ver o grande quadro da política externa, em contraste com aqueles velhos milionários que, no passado, estavam concentrados em uma única indústria.  

Uma burguesia com uma consciência compartilhada esperaria retornos massivos a longo prazo de um mercado chinês totalmente liberalizado após a derrubada do Estado naquele país, o que é maior motivação para esses bilionários estarem dispostos a sofrer perdas temporárias em alguns setores como resultado da contenção da China. 

O CFR, retratado como "liderando o governo dos Estados Unidos nos bastidores", possui membros corporativos de nível de Fundador, incluindo empresas de energia (Chevron, ExxonMobil, Hess, Tellurian), finanças (Merrill Lynch, Citi, Goldman Sachs, JP Morgan, Morgan Stanley, Blackstone), TI (Accenture, Apple, AT&T, Cisco), Internet (Google, Meta), entre outros setores.  

Em um relatório de pesquisa publicado em janeiro, o CFR propôs "fortalecer a coordenação EUA-Japão em resposta à questão de Taiwan". Essas propostas políticas de preparação para a guerra e de contenção da China refletem as afirmações estratégicas de longo prazo da elite burguesa, que incluem os controladores, acionistas, e as principais contas dos membros do CFR. 

Entre a elite de classe média alta, há um pequeno grupo de isolacionistas liberais de extrema direita, que são principalmente intelectuais, representados pelo Instituto Cato. Eles se pronunciam contra o sistema da Reserva Federal (Bando Central) dos Estados Unidos e contra a expansão militar, e são contra a atuação dos Estados Unidos na Ucrânia. No entanto, esse grupo é marginalizado na arena política internacional e não tem muita influência. 


Bandeira dos EUA em ato da campanha de Trump em 2016 / Gage Skidmore / Wikimedia Commons

Marx observou certa vez que os capitalistas sempre foram um "bando de irmãos briguentos". Esse grupo mantém um Estado moderno que tem um grande corpo permanente de homens e mulheres armados, funcionários da inteligência, e espiões. Havia 4,3 milhões de funcionários com certificado de segurança nos Estados Unidos em 2015.  

Em aliança com o complexo de monopólio militar-industrial-digital, eles podem exercer grande poder sem a necessidade de passar por qualquer eleição. Esta é a versão estadunidense de "Estado profundo" (Deep State), cujo extraordinário poder se manifesta no fato de que Trump e seus companheiros se tornaram disfuncionais e incapazes de implementar sua própria política externa pouco depois de tomar posse. 

A Ascensão da extrema direita e a Falsa Natureza dos Freios e Contrapesos no Sistema Político dos Estados Unidos 

Sob a elite burguesa dominante, a hostilidade da classe média estadunidense contra a China tem profundas raízes racistas. Os quatro anos de governo de Trump testemunharam uma coalizão unida de populismo de direita e o movimento de direita supremacista branca que se autodenomina "Direita Alternativa" (Alt Right). Seu porta-voz, Stephen Bannon, ex-presidente do website da supremacia branca Breitbart News, é, sem dúvida, um dos mais ativos militantes anti-China nos Estados Unidos.

Sua base de apoio vem da classe média baixa: em sua maioria brancos com renda familiar anual de cerca de US$ 75.000. Eles vêm principalmente de pequenas cidades ou áreas rurais, dirigem pequenos negócios, ou têm empregos profissionais, e são responsáveis por um quarto da população do país. Embora Bannon e até o próprio Trump gostem de se vangloriar do apoio que recebem da "classe trabalhadora branca", na verdade sua base primária de apoio é a classe média baixa, e não a classe trabalhadora. 

O Partido Republicano se beneficiou eleitoralmente da criação desse bloco de eleitores neofascistas. Eles amam os grandes capitalistas e desejam um dia ser um deles; odeiam os líderes políticos e culturais elitistas por obstruírem seu caminho para a riqueza; e desprezam a classe trabalhadora que está abaixo deles. Em 1951, o proeminente sociólogo estadunidense C. Wright Mills escreveu sobre a classe média do país: 

“Eles são retaguardistas. No curto prazo, eles seguirão os caminhos em pânico do prestígio; no longo prazo, eles seguirão os caminhos do poder, pois, no final, o prestígio é determinado pelo poder. Entretanto, no mercado político... as novas classes médias estão à venda; quem parecer suficientemente respeitável, suficientemente forte, provavelmente pode tê-las. Até agora, ninguém fez uma proposta séria.” 

Até recentemente, a classe média baixa tem demonstrado pouco interesse pelo "Império Americano" e raramente tem se envolvido com a China, mas pode sentir a mudança na economia. A economia dos Estados Unidos nunca se recuperou totalmente da crise das hipotecas subprime de 2008, quando a política monetária frouxa permitiu aos grandes capitalistas colher lucros enormes, enquanto a classe trabalhadora e a classe média baixa sofreram grandes perdas. Este último grupo, irritado e frustrado com sua situação e com grande necessidade de um porta-voz, foi mobilizado por Trump para se tornar seu principal banco de votos com a ajuda do racismo "branco supremacista", do capitalismo racial e de uma "nova Guerra Fria" para reprimir a China como um oponente de maneira integral. 

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A hostilidade contra a China é agora generalizada entre a população. A impressão de que "a China é o inimigo maligno do mundo livre e o maior rival dos Estados Unidos" tem sido cada vez mais reforçada pelos principais meios de comunicação e plataformas de internet, enquanto a liberdade de expressão tem desaparecido no ar. Qualquer simpatia ou mesmo opinião objetiva sobre a Rússia e a China será alvo de fortes críticas do público. Alguns progressistas dizem que, desde os anos 50, eles não têm visto um ambiente de opinião pública tão tóxico nos Estados Unidos, e alguns até compararam o clima social no país hoje com o do início dos anos 30 na Alemanha. 

Os observadores de fora muitas vezes entendem mal a verdadeira natureza dos "freios e contrapesos" e da "separação de poderes" no sistema dos Estados Unidos. Ao contrário da história das reformas constitucionais europeias, que foram geradas por movimentos revolucionários sociais, a Constituição dos Estados Unidos, originalmente fundada por um grupo de proprietários (incluindo os escravagistas), foi projetada desde o início para proteger os direitos dos proprietários privados contra o que eles temiam poderia se tornar o governo “majoritário” da multidão. Até hoje, a Constituição tem espaço suficiente para desmantelar os direitos sociais e legais burgueses mais tradicionais. 

Medidas como o colégio eleitoral foram elaboradas para impedir o voto direto do povo para presidente (uma pessoa, um voto). Tanto Bush filho quanto Trump, na verdade receberam menos votos do que seus respectivos opositores quando ganharam a presidência. Essa medida foi originalmente implementada para proteger os interesses dos escravagistas do sul e de outros estados ruralistas menores e continua até hoje.  

O processo de emenda da Constituição foi tornado extremamente difícil e oneroso. Apesar da eventual remoção da proibição original do direito de voto para negros, mulheres e pessoas sem propriedade, a exclusão de eleitores continua. Em 2021, 19 Estados promulgaram 34 leis de supressão de voto que poderiam limitar os direitos de voto de até 55 milhões de eleitores nesses Estados. Enquanto isso, a Suprema Corte tem o poder de revogar a legislação sobre direitos de voto, derrubar ações afirmativas e permitir que organizações religiosas reduzam os direitos civis. 

Uma decisão da Suprema Corte de 2010 conhecida como "Cidadãos Unidos" (United Citizens) removeu os limites das contribuições privadas e corporativas às eleições, tornando-as uma disputa de forças financeiras no âmbito jurídico. Nas eleições de 2020, os gastos totais para as eleições presidenciais e para as eleições do Congresso/Senado foram de US$ 14 bilhões.  

Além da corrida financeira, há também o fator da "competição psicológico-tecnológica". As ferramentas tecnológicas de persuasão baseadas nas redes sociais, na economia comportamental e em Big Data desempenham agora um papel decisivo na determinação dos resultados das eleições. Ao mesmo tempo, esses instrumentos são extremamente caros, assegurando que a política seja um jogo exclusivo para os ricos. Em 2016, a riqueza média dos senadores dos Estados Unidos excedeu US$ 3 milhões. Isso está longe de ser um governo de freios e contrapesos controlados pela população. 

Estamos simplesmente condenados à guerra? 

Em 2014, Xi Jinping, que havia se tornado o líder da China, disse: "O vasto Oceano Pacífico é suficientemente amplo para abarcar tanto a China quanto os Estados Unidos". Contrariamente, Hillary Clinton, então Secretária de Estado, afirmou, num discurso interno, que os Estados Unidos poderiam chamar o Pacífico de "o Mar Estadunidense".  


Xi Jinping e Joe Biden discursaram no primeiro dia de sessões da 76ª Assembleia Geral da ONU / Reprodução / ONU

Em 2020, o Centro de Pesquisa Econômica e Empresarial do Reino Unido (Center for Economics and Business Research - CEBR) previu que a China ultrapassaria os Estados Unidos para se tornar a maior economia do mundo até 2028, um marco que assombra a elite burguesa deste país. A política externa dos Estados Unidos e a opinião pública nos últimos anos têm se fixado na preparação para travar uma guerra quente para conter a China antes de 2028.

A guerra por procuração na Ucrânia pode ser vista como um prelúdio para essa guerra quente. A mobilização ideológica de preparação para a guerra já está em pleno andamento nos Estados Unidos. As engrenagens do neofascismo estão girando, e uma nova era do Macarthismo surgiu. A retórica política democrática é apenas um disfarce para o governo da elite burguesa e não servirá como mecanismo de frenagem para a máquina de guerra. 

Há 140 milhões de trabalhadores e pobres nos Estados Unidos, com 17 milhões de crianças passando fome, seis milhões a mais do que antes da pandemia. Embora uma parte dessa classe expresse apoio ideológico à política de guerra do país, esse respaldo está na verdade em contradição direta com seus interesses reais. Historicamente, grupos progressistas tradicionais nos Estados Unidos, como os movimentos negros e feministas, tinham um forte espírito de luta, e líderes como o Dr. Martin Luther King Jr. e Malcolm X mostraram uma coragem surpreendente em sua luta para criar uma onda de resistência dentro dos Estados Unidos contra a agressão de Washington no Sudeste Asiático. Infelizmente, alguns (mas não todos) dos líderes das seções progressistas tradicionais dos Estados Unidos se tornaram apoiadores de sua política imperialista e das campanhas anti-China. 

Há importantes vozes morais nos Estados Unidos que de fato se manifestam. Mas é preciso notar que os poucos grupos progressistas que se opuseram a uma nova Guerra Fria foram imediatamente vilipendiados por "justificar o genocídio de Xinjiang". O sistema estadunidense garante que as vozes desse setor da sociedade são impotentes. 

Além dos Estados Unidos e de seus aliados, outros países não se agradam com a guerra que vem com a expansão agressiva da OTAN. Em 2 de março, a Assembleia Geral da ONU realizou a 11ª sessão especial de emergência e países com mais da metade da população mundial votaram contra ou se abstiveram de votar sobre o projeto de resolução intitulado "Agressão contra a Ucrânia". Países cujos habitantes ultrapassam dois terços da população mundial não endossaram as sanções lideradas pelos Estados Unidos contra a Rússia.  

As tentativas de Washington de escalar e prolongar a guerra, e de forçar a dissociação de Moscou e Pequim, levarão a um deslocamento econômico maciço, o que provocará reações negativas consideráveis ao governo dos Estados Unidos. Mesmo países como Índia e Arábia Saudita estão profundamente preocupados com os excessos dos Estados Unidos no congelamento das reservas cambiais russas e no reforço da hegemonia do dólar. Nesta semana, o presidente mexicano Lopez Obrador anunciou que não participaria da Cúpula das Américas sediada pelos Estados Unidos em Los Angeles porque países como Cuba e Venezuela foram excluídos. A resistência ao governo dos Estados Unidos está crescendo na América Latina. Deve-se notar, no entanto, que plataformas internacionais como a ONU não são realmente capazes de impedir os Estados Unidos de travar guerras. Washington se recusa a ficar vinculada a tudo, a não ser à sua própria "ordem internacional baseada em regras". 

A administração Biden está fornecendo ajuda militar maciça à Ucrânia para criar uma guerra prolongada voltada para enfraquecer ao máximo a Rússia e provocar uma "mudança de regime". Também está se desviando do espírito das três declarações conjuntas sino-estadunidenses e desestabilizando o Estreito de Taiwan de várias maneiras.  Embora os Estados Unidos tenham grande poder militar, sua força econômica atual, apesar de grande, está em permanente estado de declínio e crise. 

Em 1950, os Estados Unidos representavam 27,3% do PIB mundial (PPP), enquanto que em 2020 haviam caído para 15,9%. Sua taxa média anual de crescimento do PIB caiu para um nível anual insuficiente de 2%, mesmo antes da pandemia. A produção industrial chinesa é mais de 70% maior do que a dos Estados Unidos. Apesar dos enormes incentivos fiscal e monetário recentes, de mais de US$ 5 trilhões, o investimento fixo líquido dos Estados Unidos aumentou apenas 1,4%. Isso levou à atual onda de inflação. Esta situação não é facilmente resolvível e não tem nada a ver com o conflito. Com a campanha de guerra, os Estados Unidos deliberadamente condenaram a Europa a um crescimento baixo, provavelmente um índice negativo do PIB, a inflação e a aumentar seus gastos militares. O continente abandonou qualquer pretensão de metas climáticas. Apesar do imenso consenso político interno a favor do desacoplamento, as ordens dos Estados Unidos para a China continuam a aumentar.  Um desacoplamento substancial de fato continua a ser uma quimera. Acrescentar mais sanções apenas acelera o processo global de desdolarização e oposição à hegemonia do dólar. Os Estados Unidos não apenas decairão no âmbito econômico por si mesmos, mas as consequências de seu esforço de guerra, sanções e desacoplamento continuarão a prejudicar sua própria economia e a prejudicar a cadeia mundial de abastecimento de alimentos. A instabilidade social global daí resultante, por sua vez, fragilizará mais a economia estadunidense, trazendo, também, desafios inesperados ao seu regime. 

A governança social estável da China, a forte defesa nacional e a estratégia diplomática pacífica, mas que não deixa de ser uma estratégia de poder – como disse o conselheiro de Estado chinês Yang Jiechi – pode "proceder de uma posição de força" para finalmente fazer com que os Estados Unidos desistam da ilusão de ir para a guerra com a China e vencer. É do interesse do Sul Global que a China continue sendo um Estado socialista soberano forte e que impulsione alternativas de governança global, como Uma Comunidade de Destino Compartilhado para a Humanidade e a Iniciativa de Desenvolvimento Global. Deve haver um compromisso imediato para revigorar projetos multilaterais viáveis do Sul Global como os BRICS e o Movimento dos Não-Alinhados. Nesse âmbito, a maior parte do globo compartilha um interesse comum distinto. A grande maioria das populações dos países em desenvolvimento do Sul Global será uma força importante para exigir a paz e resistir à guerra em várias plataformas oficiais e civis. Os Estados Unidos não serão o primeiro império a se exceder com arrogância e empáfia e, por fim, ter seu poder suplantado. 

*Este arquivo foi originalmente escrito para um público chinês, e adaptado e publicado por Guancha.

**Deborah Veneziale é uma jornalista e editora dos Estados Unidos que trabalha no setor da cadeia global de abastecimento há 35 anos. Atualmente ela vive em Veneza, Itália.