Territorialidade

OPINIÃO | O que a China nos ensina sobre estratégia urbana e desenvolvimento nacional?

É preciso um novo padrão para o nosso desenvolvimento, que nos permita romper com a dependência do capital financeiro

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Presidente Xi Jinping participa de celebração de 110 anos da Revolução Xinhai - Noel Celis/ AFP

O Observatório das Metrópoles, neste ano de 2022, está desenvolvendo um esforço para diagnosticar os impasses para a retomada da reforma urbana e do direito à cidade na agenda nacional. Trata-se do projeto do Observatório "Reforma Urbana e Direito à Cidade. Desafios do Desenvolvimento".

Diante das políticas ultraliberais em curso no Brasil é fundamental conectar esta problemática com a do desenvolvimento nacional e enfrentar as questões urbanas, a partir da retomada de um projeto nacional de desenvolvimento, do combate ao acirramento das contradições sociais, da reconstrução do Estado Nacional, da democracia e, até mesmo, da sociedade.

Pensar um novo padrão para o desenvolvimento brasileiro, que nos permita romper com a dependência econômica do Brasil em relação ao capital financeiro internacional e as lógicas da financeirização, é pensar a problemática da cidade no contexto nacional.

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Um dos problemas é a narrativa hegemônica anglo-europeia, copiada por seus seguidores no Brasil. Nos ensinaram um monte de coisas, como se o mundo tivesse se originado no mar mediterrâneo e como se as principais contribuições e conquistas dos nossos antepassados tivessem ali o berço. Isto sempre foi uma mentira, e é a grande fake news da modernidade.

Na esteira da expansão e da dominação europeia, invisibilizaram a China, a Índia, a Rússia, os Astecas, os Incas e os Maias, os árabes, as populações originárias do nosso continente e os povos da África. Criaram estórias, narrativas e categorias para apagar as contribuições e as conquistas dos povos e para transformar o nosso Planeta Terra no centro e na periferia da Europa. Uma destas, e que o senso comum aponta, é que a saída para os problemas da cidade passa pelo mercado desregulamentado e liberalizado, pelo individualismo proprietário e pelo trabalho empreendedor.

Para enfrentar e desconstruir estas narrativas, o Observatório promoveu um ciclo de debates, intitulado: “Os desafios do desenvolvimento nacional e a cidade”, que recebeu convidados como André Roncaglia, Márcio Pochmann e, nesta última sexta-feira, Elias Jabbour.

Ao abordar a experiência da China, Elias Jabbour retoma a categoria da totalidade dialética, o substrato de Hegel trazido e reinterpretado no pensamento de Marx e Engels, nas ciências sociais, equivocadamente substituída por categorias kantianas, mesmo entre muitos marxistas, para ressignificar o socialismo numa perspectiva real e viável, de como ele se apresenta no século XXI, e, ao mesmo tempo, tentar reconstituir alguns dos seus conceitos.

Jabbour recupera o conceito marxista de formação econômica e social e o reconstrói, na planificação disruptiva chinesa, na interação entre Estado e mercado, o que ele chama de Nova Economia do Projetamento. Esta é a sua principal contribuição para a discussão da reforma urbana, a superação da falsa dicotomia entre Estado e setor privado no processo de desenvolvimento urbano.

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O ponto de partida é o processo de acumulação verificado na economia chinesa, pelo qual as revoluções tecnológicas, nas forças produtivas, permitiram ao Estado operar uma série de projetos de grandes infraestruturas e de criação de valores de uso, no que as linhas férreas de trem rápido são um exemplo. Cria-se uma racionalidade na economia socialista, que permite a efetivação permanente da demanda.

O Estado passa a ser a própria regularidade e o indutor de novas formas de propriedade, inclusive a privada, mas voltado a submeter o mercado para a superação das contradições sociais geradas historicamente pela inserção da China na ordem internacional capitalista. A Nova Economia do Projetamento se orientaria para a superação dessas contradições. Com a geração e a garantia do emprego, envolveria a necessidade de se passar da mercantilização da produção de valores de troca e de uso, para a produção em larga escala, racional e consciente, de valores de uso, regulada pelo Estado.

 A China e, em certa medida, o Vietnã, são exemplos clássicos onde esta transição está ocorrendo. São nestes países, de orientação socialista, que se observa a criação de um setor produtivo e dinâmico, capaz de gerar excedente para a sustentação de vários investimentos sociais pelo poder público. Mas não apenas isto. O controle monetário soberano, para fins estratégicos de crédito, por vários bancos públicos de desenvolvimento, tem sido fundamental para assegurar as condições do pleno emprego.

A experiência chinesa, vista sob o prisma da reforma urbana brasileira, aponta para a percepção de que a resposta para os problemas urbanos, em função da financeirização, só é possível se for buscada em políticas de socialização, de controle de capitais e de contenção do sistema financeiro. Só assim se consegue gerar empregos, aumentar a produtividade do trabalho e elevar o consumo.

Elias Jabbour afirma que a questão urbana e a questão agrária se unem na problemática do desenvolvimento. As cidades demandam recursos que só podem ser buscados na agricultura, na pecuária e no extrativismo. Historicamente, os investimentos na produção agrária geram efeitos produtivos em cadeia e os recursos necessários aos investimentos urbanos. E mais uma vez, se vai na experiência chinesa. A China mostra que as revoluções tecnológicas que impulsionam a sua economia só foram possíveis graças ao desenvolvimento das forças produtivas no campo.

Para além disto, os problemas econômicos, sociais e políticos que atingem as cidades são também institucionais. É fundamental criar uma nova institucionalidade, que rompa com as políticas ultraliberais em vigor, assentadas no pacto com a governança da financeirização e na estabilidade da moeda. Foi o pacto neoliberal, realizado com o FMI e o Banco Mundial, na década de 1990, que forçou o Brasil a uma contenção de gastos e a uma geração de superávit cambial para atender interesses do capital estrangeiro, com impacto na degradação das cidades.

A ruptura com a governança financeira internacional, deve ser acompanhada por um projeto nacional de desenvolvimento para a reconstrução de um capitalismo nacional independente brasileiro. Elias lança como reflexão uma série de ideias, de exemplos de como se colocar o Estado como indutor das empresas privadas nacionais, de fomento e de reconstrução dos bancos públicos de desenvolvimento, inclusive dos bancos públicos estaduais, de se criar formas de exportar bens públicos e incorporar tecnologia para garantir grandes investimentos em infraestruturas, capazes de gerar empregos e aumentar o poder de consumo da população.

Por fim, estamos observando nos campos da Ucrânia, o prelúdio do fim da "Era Colombiana", em que a Europa dita e diz o que é, como se constitui e como deve ser o mundo. Agora isto parece que está acabando. A China acordou e temos um novo polo de poder e, junto com a Rússia, um novo eixo euroasiático no mundo, com novas narrativas e categorias menos assimétricas e mais justas. O quadro internacional de correlação de forças gira contra o eixo EUA-Europa, o que nos oferece todas as condições para buscarmos uma alternativa soberana para o problema urbano.


*Fernando Joaquim Ferreira Maia é Pós-Doutorando em Planejamento Urbano e Regional-IPPUR/UFRJ. Pesquisador do Observatório das Metrópoles. Professor Associado do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba-PPGCJ/UFPB. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. 

Edição: José Eduardo Bernardes