depois de 12 anos

Justiça determina volta de pecuarista da família Caiado para "lista suja" do trabalho escravo

Emival Caiado Filho é primo do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, e travava batalha judicial para ficar longe do cadas

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Como senador, Ronaldo Caiado (esq) votou contra a expropriação de terras de quem explora mão de obra escrava, como seu primo Emival (dir). Bolsonaro (centro) não sancionou a lei - Antonio Britto/Agência Brasil | Arquivo Pessoal

Doze anos se passaram desde que 26 trabalhadores foram resgatados de uma rotina de exploração e perigo na fazenda Santa Mônica, no município de Natividade, no Tocantins. Na maior parte desse tempo, o pecuarista e dono da propriedade, Emival Ramos Caiado Filho, não sofreu todas as consequências legais por confiscar carteiras de trabalho, descontar dos salários valores referentes à comida que servia aos seus empregados, obrigá-los a jornadas de até 13 horas diárias sem descanso semanal e oferecer como abrigo barracões sem energia elétrica, banheiro ou camas – conforme mostrou a Repórter Brasil em agosto de 2010.

Mas uma decisão de maio do desembargador do Trabalho Brasilino Santos Ramos determinou que o nome do fazendeiro – que é primo do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil) – volte para a "lista suja" do trabalho escravo, utilizada por bancos e empresas para vetar negócios com empregadores que utilizam mão de obra forçada em suas atividades econômicas. A reportagem procurou o governador para comentar a inclusão do primo na lista, mas não obteve resposta.

Alvo da fiscalização em 2010, ele foi condenado administrativamente pelas ilegalidades em outubro de 2014, mas desde então empreende uma batalha jurídica para retirar seu nome do registro. Uma liminar do Superior Tribunal de Justiça manteve seu nome fora da lista entre julho de 2015 e maio de 2021. No ano passado, o STJ reviu o caso e concluiu que ele não deveria tramitar naquela corte.

Com isso, seis anos após a concessão da liminar a seu favor, Caiado entrou na "lista suja", mas permaneceu só por 10 meses, até abril de 2022, quando foi novamente beneficiado por uma decisão do Judiciário – dessa vez, do Tribunal do Trabalho. A alegria do empresário durou pouco: desde o dia 31 de maio deste ano, Emival Ramos Caiado Filho é um dos 89 empregadores que submeteram trabalhadores à condição análoga à escravidão no Brasil.


Trabalhadores cumpriam jornadas de até 13h diárias e viviam em barracões sem energia elétrica, banheiro ou cama / Subsecretaria de Inspeção do Trabalho/Ministério do Trabalho

Até então, os dribles que deu para não entrar na "lista suja" permitiram ao pecuarista seguir comercializando animais para grandes frigoríficos, como Marfrig, Frigol e Beef Nobre, todos com compromissos antitrabalho escravo. É o que revela um levantamento exclusivo da Repórter Brasil, que mostra também que Caiado conseguiu repassar animais ao Beef Nobre mesmo no curto período de 10 meses em que seu nome foi incluído no cadastro.

Os animais criados nas fazendas do pecuaristas também podem ter ido parar nas bandejas de carne de outras empresas como JBS, Masterboi, Cooperfrigu, Boi Brasil e LKJ através de fornecimento indireto – em alguns casos, ocorrido no período em que seu nome aparecia no cadastro de empregadores condenados por trabalho escravo.

Mas o próprio Caiado admite que vendeu ainda mais bois do que os rastreados nesta reportagem. Em um telefonema, reconheceu que usa o expediente conhecido como "lavagem de gado", repassando animais para terceiros para que possam ser comercializados sem que seu nome conste nos documentos. "Esse gado que está sendo abatido agora eu tive que passar para nome de outras empresas pra não aparecer nem meu nome, que está pichado com um estigma desses, como se eu tivesse cometido um crime na fazenda", afirma.

"Com liminar atrás de liminar, Emival conseguiu manter sua atividade comercial em patamar quase normal até hoje", lamenta o frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

"Não deixa de ser impunidade tendo em vista os anos que se passaram entre a autuação, a condenação e a entrada na lista", concorda a Coordenadora Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do MPT, a procuradora Lys Sobral Cardoso.

Em entrevista à Repórter Brasil, o empresário diz se considerar alvo de uma "grande injustiça" e que o único problema encontrado em sua fazenda teria sido uma caixa d’água destampada – contradizendo os vários apontamentos existentes no relatório de fiscalização. Ele alega perseguição política com o objetivo de atingir seu primo governador.


Trabalhadores consumiam água sem tratamento, coletada em um córrego na propriedade / Subsecretaria de Inspeção do Trabalho/Ministério do Trabalho

"Me causa um desgosto imenso estar na lista. Há 10 anos tivemos uma fiscalização hostil em uma fazenda. Foi feita uma denúncia, que chegou às mãos de alguém vinculado ao PT. Somos estigmatizados, procuram atacar o Ronaldo buscando coisas com meu nome", acredita. Segundo sua defesa, um Termo de Ajustamento de Conduta foi assinado com o Ministério Público do Trabalho e todas as multas e indenizações aos trabalhadores foram pagas.

A defesa deverá protocolar um recurso para tentar reverter a decisão que incluiu novamente seu nome na lista.

Carne vendida em grandes redes do Centro-Oeste

No período em que Emival Caiado esteve na "lista suja", entre junho de 2021 e abril de 2022, ele vendeu bois para o frigorífico Beef Nobre. Segundo confirmou um funcionário da empresa, o Beef Nobre tem entre seus clientes o Atacadão Dia a Dia, que afirma ser a maior rede de atacarejo da região Centro-Oeste, e o Big Box, que possui 20 lojas no Distrito Federal. O frigorífico ainda é habilitado para exportar carne para Hong Kong e Paraguai.

O Beef Nobre admitiu que Caiado é seu fornecedor, mas afirmou que não compactua com "empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo" e que comprou os animais porque o caso está "sob júdice". Leia íntegra dos esclarecimentos.

Os supermercados foram contatados, mas não enviaram seus contrapontos.

O pecuarista também seguiu normalmente com suas atividades econômicas durante o período em que esteve protegido por liminares do Judiciário. Em 2020, a Marfrig e a Frigol, respectivamente, segundo e quarto maiores frigoríficos de carne bovina do país, abateram animais provenientes da fazenda Buenos Aires, em Luziânia, Goiás, que está registrada no nome de Emival.

Questionadas pela reportagem se sabiam que Caiado já havia sido autuado e discutia o caso judicialmente, as duas empresas afirmaram que, na ocasião da compra, seu nome não constava na lista e reiteraram seus compromissos contra o trabalho escravo. Leia as respostas na íntegra.

Desde 2003, mais de 11 mil trabalhadores no setor da pecuária foram encontrados em condições análogas à escravidão por auditores fiscais do trabalho. O número representa 41% dos trabalhadores resgatados no período, em estimativa da CPT. Do total de empregadores incluídos nas "listas sujas" publicadas semestralmente pelo governo desde 2003, 55% exercem a pecuária como atividade principal.

"O poder que alguns agentes econômicos de peso conseguem na Justiça brasileira praticamente anula o efeito da inclusão na 'lista suja', que é a suspensão da comercialização de bovinos junto aos frigoríficos", lamenta Plassat, da CPT.

Vendas indiretas chegam até a JBS

maior produtor de proteína do planeta, a JBS, por exemplo, pode ter entrado nesta cadeia de fornecimento e vendido carne contaminada com trabalho escravo – embora suas relações comerciais tenham se dado no período em que o pecuarista estava protegido pelo mandado de segurança e, portanto, fora da "lista suja".

Isso porque, em março de 2019, a Fazenda Paraíso (em Jaú do Tocantins), cujos registros mostram uma aquisição de animais provenientes da Fazenda Santa Mônica, de Caiado, em 2018, vendeu 50 bois para a unidade da JBS em Mozarlândia. A mesma propriedade enviou 1.200 bois para Cooperfrigu, no período entre janeiro de 2018 e junho de 2021.

Como um boi pode ser abatido com até 36 meses de vida, é possível que vários animais que Caiado vendeu para outras fazendas tenham chegado a frigoríficos de maneira indireta.

Lauro Jacintho, filho de Nilo Jacintho, que é o dono da Paraíso, não se lembra de ter comprado gado de Caiado, mas diz que arrendou parte de uma fazenda do pecuarista, na região de Natividade, onde levou seus próprios animais para pastarem. "Eu não sei exatamente quando foi, mas já deve ter uns quatro anos. Também não lembro o nome da fazenda, mas era para aqueles lados", diz.

Na ocasião, eles não tinham conhecimento da autuação por trabalho escravo contra a propriedade. "Nunca nem vi falar. Muito longe disso. Pra ser sincero, a fazenda era super organizada, os funcionários todos educados, tudo certinho", completa.

À Repórter Brasil, a JBS afirmou que a Fazenda Paraíso "está de acordo com a Política de Compra Responsável da Companhia" e que o cadastro de Caiado está bloqueado para compras diretas. Questionada sobre o monitoramento de seus fornecedores indiretos, disse que esse é um "desafio setorial". A Cooperfrigu não se manifestou.

A Fazenda Paraíso também negociou animais com o frigorífico Boi Brasil depois de maio de 2021, dentro do período de 10 meses em que o nome do pecuarista foi incluído na relação de trabalho escravo.

Outro frigorífico, o LKJ, pode ter comprado animais indiretamente da Fazenda Santa Mônica durante a janela em que Caiado foi incluído na "lista suja" através de uma propriedade chamada Santa Adélia, da qual adquiriu milhares de cabeças de gado entre 2018 e fevereiro de 2022.

A Santa Adélia comprou animais da Santa Mônica em 2020. Proprietário da Santa Adélia, Vilmar Mendes Ferreira, assegura que não faz negócios com fazendas irregulares, já que um sistema da Secretaria de Agricultura vedaria a emissão de nota fiscal e a guia de trânsito animal, impedindo, na prática, a venda: "Na época não tinha problema nenhum. Se tivesse, travava a fazenda no sistema", alega.

A Boi Brasil admitiu uma única compra de gado de Emival, ainda em 2014, mas não respondeu sobre a aquisição mais recente de bois que podem ter se originado na fazenda flagrada com trabalho escravo. O frigorífico LKJ não respondeu aos e-mails enviados pela reportagem.


26 trabalhadores foram resgatados vivendo em condições análogas à escravidão na fazenda Santa Mônica (TO) / Subsecretaria de Inspeção do Trabalho/Ministério do Trabalho

Já a Masterboi pode ter adquirido animais provenientes da fazenda Cardoso, que é vizinha à Santa Mônica e está em nome da empresa de Caiado que é titular da propriedade com flagrante de trabalho escravo. Os abates ocorreram entre 2020 e 2021, período em que o pecuarista já tinha voltado para a "lista suja".

A unidade de Nova Olinda da Masterboi comprou gado de uma propriedade chamada Fortaleza I (TO) que, por sua vez, havia recebido um lote de gado da Cardoso em fevereiro de 2020. Adail Alves de Araujo, proprietário da Fortaleza I, justifica que sua compra se deu por meio de leilão, que faria a verificação socioambiental prévia. "Em vez de comprar na propriedade, compro do leilão. No leilão, se tiver algum problema, trava, a GTA volta", conta.

A Masterboi não respondeu aos questionamentos da reportagem. As íntegras de todos os demais esclarecimentos podem ser lidas aqui.

Em família

Essa não foi a única vez que a família Caiado se viu envolvida com trabalho escravo. Em 2014 foi a vez de Antônio Ramos Caiado Filho, irmão de Emival, entrar para a "lista suja". Ele foi condenado administrativamente por submeter quatro pessoas a condições degradantes e a jornadas exaustivas na produção de carvão em sua fazenda em Nova Crixás, a 400 km de Goiânia.

À época, Antônio negou ser culpado da exploração dos funcionários e afirmou que o local da fazenda onde foi feito o resgate havia sido cedido em regime de comodato a um terceiro. A reportagem entrou em contato com a defesa do empresário, que afirmou que ele "foi absolvido na esfera criminal e posteriormente teve o nome retirado da lista".

Como senador (2015 – 2019) e deputado federal (1991-1995 e 1999 a 2016), o agora governador e pré-candidato à reeleição em Goiás, Ronaldo Caiado, votou contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, que expropria, sem indenizações, a terra de quem comprovadamente explorar mão de obra escrava.

O texto foi aprovado na Câmara e no Senado em 2014 e, desde então, aguarda regulamentação por parte do Executivo. Mas o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL) – de quem Caiado foi aliado até 2020 – já afirmou que não o fará em seu governo.