Dignidade

Criminalização e preconceito: a dura realidade das pessoas em situação de rua no DF

Pesquisa revela que 38,2% da população em situação de vulnerabilidade foram para a rua desde o início da pandemia

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
O estudo mais recente do IPEA indica que a população em situação de rua em março de 2020 era de aproximadamente 222 mil brasileiros. - Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

A rua, de forma temporária ou permanente, é morada para milhares de homens, mulheres e crianças. No Distrito Federal, mesmo em uma rápida passagem pelas vias da cidade é possível observar o aumento de pessoas em situação de rua nos últimos anos, em regiões centrais da capital as barracas e camas de papelão tomam conta de algumas localidades.

De acordo com relatório elaborado pela Companhia de Planejamento do DF (Codeplan), sobre o Perfil da População em Situação de Rua do Distrito Federal, cerca de três mil pessoas vivem nas ruas da capital federal. Do total, 42,7% são do sexo masculino e 52,4%, do sexo feminino. Além disso, a pesquisa, divulgada no mês de junho, contabilizou 244 crianças ou adolescentes em situação de rua.

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Para cada número, perfil e porcentagem apresentados na pesquisa, há um rosto, um nome, uma história, de maneira geral, vidas atravessadas pelo preconceito, pela vulnerabilidade social e econômica, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, vícios, abusos e violência.

José Salustiano, que viveu em situação de rua no DF por mais de dois anos, conta que a história dele “é a história de muitos, que em um momento da vida se viram sem condições financeiras para arcar com as despesas de aluguel e alimentação” e a rua foi a única alternativa.

Emocionado, Salustiano diz que essa é uma realidade muito dura, que além da pessoa ter que viver em uma situação de vulnerabilidade social, sofre ainda o preconceito da sociedade e das autoridades.

“Algumas pessoas veem o morador de rua como um lixo que tem que ser limpo e retirado de uma determinada área. Mas, para muitos, o que falta é uma renda mínima para conseguir se sustentar, que possa garantir esse direito da moradia”.


José Salustiano saiu das ruas após conseguir um emprego que garantisse a manutenção de um aluguel e da alimentação. Ele diz que a vida nas ruas é muito dura. / Foto: Roberta Quintino

Embora os aspectos que levem as pessoas a recorrer à rua como meio de moradia e de sustento sejam diversos, Salustiano frisa que a maioria dos que se encontram na situação de vulnerabilidade querem trabalhar, “voltar para casa, tratar de doenças, dos vícios, muitos querem ter uma renda para está inserido na sociedade de uma forma positiva”.

No entanto, ele ressalta que não é apenas retirar a pessoa da rua “e colocar em qualquer lugar, mas prover o mínimo de dignidade. É preciso um acompanhamento sistemático das situações individuais, porque se você for tratar a população de rua como um grupo que pensa de uma forma só, com um único tipo de política pública, essa mudança não vai acontecer. Não se pode chegar com um enquadramento social e querer que essa pessoa se encaixe em uma única política”, observa.

Pandemia

Para o coordenador geral do Instituto No Setor, Felipe Velloso, a pandemia, acompanhada pela crise econômica, potencializou o número de pessoas em situação de rua no Distrito Federal.

Velloso avalia que, embora existam políticas públicas sérias e o empenho de vários setores do Estado para atender esse grupo populacional, “existe um problema de mau dimensionamento do serviço prestado à população de rua, que já está sobrecarregado. É necessário o dobro de estrutura para atender as pessoas”, salienta.

A percepção do coordenador é comprovada em números. A pesquisa da Codeplan revela que 38,2% da população em situação de vulnerabilidade foram para a rua desde o início da pandemia, ou seja, há 2 anos ou menos. Além disso, a Região Administrativa com maior concentração de pessoas está no Plano Piloto, cerca de 25% do total.

Maria Francisca de Freitas está há quatro anos nas ruas com o companheiro e, atualmente, vive no Setor Comercial Sul. Ela diz que pretende sair da rua e “começar uma nova vida, mas está um pouco difícil”, relata.

A maranhense, que recentemente começou a trabalhar como auxiliar de limpeza, aposta em uma mudança de vida. “Pro meu futuro, quero está com meus filhos na minha casa, com meu marido”.

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Como Freitas, quase três quartos dos entrevistados na pesquisa pensam sempre em sair da rua (74%). As principais necessidades mencionadas para sair da rua são emprego ou renda (62,3%) e moradia (34,4%).

Para ela, o governo “pode fazer mais” pela população de rua, como melhorar os acessos aos programas de moradia e ampliar os benefícios existentes.

De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes), “a pura e simples concessão de benefícios não garante o emprego adequado por parte de quem recebe. Assim sendo, a pasta esclarece que atua de maneira ampla no atendimento a esse público”.

“Há casos em que o cidadão naquela situação apenas precisa de recuperação do vínculo familiar, ou encaminhamento para políticas de saúde, ou de um auxílio para retornar ao estado de origem”, informa a pasta.

Criminalização

As pessoas em situação de rua são, constantemente, alvos de uma narrativa criminalizadora e preconceituosa, que aponta os sujeitos desse grupo populacional como perigosos e indesejáveis sociais. A reprodução desse discurso, influenciado por um olhar de higienização urbana, potencializa a criminalização e a invisibilidade da população de rua, e a exceção vira regra.

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Em maio passado, um vídeo de um caso de agressão no Setor Comercial Sul entre dois moradores de rua e um funcionário de loja da região foi amplamente divulgado. Segundo alguns moradores de rua, que preferem não ser identificados, o episódio é um caso isolado. No entanto, a repercussão do caso trouxe “um olhar ainda mais preconceituoso das pessoas”.

Para Felipe Velloso, que atua diretamente no Setor Comercial Sul, “nenhum caso de agressão é legal, as pessoas já perdem a razão nesse momento. Mas a gente vê que não é um caso corriqueiro e já existia uma relação conflituosa entre as pessoas. Mas, o que mais preocupa é o sensacionalismo e a generalização do grupo, uma vez que é muito heterogêneo”.

A Coordenadora social do No Setor, Theresa Raquel Miranda, ressalta que alguns lojistas da região criam estratégias de cooperação para lidar com a população em situação de rua.

“Contudo, outros ainda se sentem ameaçados e mantém ou o distanciamento ou relações conflituosas com a população que vive ali. A gente não pode deixar de considerar que existem sim tensões nessas relações, que são muito embasadas nas construções sociais que fazemos da população em situação de rua e no lugar social que elas ocupam”.

Para Salustiano, a falta de uma ação efetiva, “afetuosa e humanizada” do Estado em relação à população de rua, “faz com que, de alguma forma, quem pague pela situação é o comerciante que está aqui, que convive com essa injustiça social, com a falta de acompanhamento mais direto das autoridades”, diz. “Querem que as pessoas tenham uma educação, uma saúde mental e um modo de conviver pacífico, mas como é possível diante de tanta agressão, descaso e humilhação? questiona o ex-morador de rua.

De acordo com informações do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Ciamp-Rua), em 2008, haviam cerca de 50 mil pessoas em situação de rua nas 75 maiores cidades brasileiras.

O estudo mais recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) indica que a população em situação de rua em março de 2020 era de aproximadamente 222 mil brasileiros.

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Fonte: BdF Distrito Federal

Edição: Flávia Quirino