Quilombos Urbanos

“Nossa história, nossa ancestralidade”: conheça a história do quilombo Flores de Porto Alegre

Reconhecido em 2017 pela Fundação Palmares, Quilombo Flores cultiva ancestralidade e aguarda processo de titulação

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Gerson e Geneci são as lideranças do Quilombo Flores - Foto: Fabiana Reinholz

Em artigo, a escritora mineira Conceição Evaristo afirmou que "é tempo de formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos, e que venham os dias futuros. A mística quilombola persiste afirmando: ‘a liberdade é uma luta constante". O tempo de se aquilombar está vivo em muitos tempos e espaços.        

Há mais de seis décadas, o Quilombo da Família Flores tem reafirmado a sua ancestralidade e lutado por pertencimento territorial no bairro Glória, Zona Sul de Porto Alegre. Situado na rua Manduca Rodrigues, o quilombo é o sétimo autorreconhecido da capital gaúcha.

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Assim como ocorre com outros quilombos, os Flores vêm sofrendo com ações de reintegração de posse. O episódio mais recente aconteceu em 2015, quando a comunidade foi surpreendida pelo esbulho cometido pela Fundação Marista - Unidade Assunção, localizada ao lado do território. Embora alegue ser proprietária do terreno, a entidade não apresentou registro em seu nome até o momento. 

“O primeiro esbulho foi numa terça-feira. A gente ouviu um barulho de máquina, fomos ver e o maquinário ia entrando. Eu fui lá para tentar dialogar com o pessoal, entre eles estava um representante do Marista. Eu falava e a máquina continuava tocando, e ele não me deu ouvidos. Tive que chamar o meu advogado, que trouxe os papéis do terreno, dizendo que a gente já tinha, há três meses, reaberto uma ação de usucapião. Havia uma ação que estava arquivada, de 1983. Uma prova que o meu pai já tinha tentado, por meio judicial da lei branca, fazer as coisas corretas. E mesmo assim não fomos ouvidos, mesmo assim eles tentaram passar por cima”, relembra Geneci Flores, liderança do território.

Quilombo para mim é onde a pessoa se sente bem, é onde a pessoa possa vir e se sentir livre. Onde ela mostra o que tem de bom, onde se passa a sua cultura. Um quilombo é a nossa terra, a mãe-terra, onde a gente não se vende 

Desde o começo do processo, o quilombo perdeu dois terços da área. E, segundo a família, a tentativa de remoção tem como objetivo a ampliação do estacionamento do Colégio Marista Assunção.

“Estamos na Justiça Federal, na luta até agora”, frisa Geneci. Nesta ocasião, os Maristas construíram um muro no local. Em 2017, a Fundação Cultural Palmares reconheceu a Família Flores como remanescentes de quilombos.

No final de 2019, técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) foram até o local para dar início à elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). No processo de titulação quilombola, o RTID é uma etapa obrigatória. Na ocasião, Bethânia Zanatta, antropóloga do Incra responsável pela realização do RTID, havia dito que a situação do Quilombo Flores “é urgente em função da expropriação do terreno”, realizada em 2015 a mando da União Sul Brasileira de Educação e Ensino (USBEE), mantenedora do Colégio Marista Assunção. De acordo com Geneci, em 2021, um funcionário do Incra esteve medindo o terreno. A comunidade ainda segue no aguardo.


Muro construído em 2015, pela Fundação Marista / Fonte: NEGA (2019)

Início de tudo 

Geneci, 44 anos, juntamente com o seu irmão, Gerson Luís Flores da Silva, 45, são as atuais lideranças do quilombo e salvaguardam a história de seus ancestrais. Nascidos e crescidos no território, contam que na infância costumavam brincar em um córrego do Arroio Cascata que passa nos fundos do território. Nesse “riachinho”, como se refere Geneci, ela relembra que sua mãe o usava para lavar roupas.

“Antigamente dava pra tomar banho. Nós tomávamos banho, andávamos de cipó e pulávamos na água, mas devido à poluição, não tem como a gente utilizar. As pessoas estão botando o esgoto todo ali”, lamenta. De acordo com o Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre/RS, o Arroio Cascata era ponto de encontro de mulheres negras e libertas do século XX. Ali, elas lavavam juntas as suas roupas. 


Córrego do Arroio Cascata / Foto: Fabiana Reinholz

Foi o pai de Geneci e Gerson que deu início aos vínculos da família no local. Natural da cidade de Bom Retiro do Sul (RS), migrando para a capital na década de 1930, onde se instalou na região da antiga Ilhota. Em 1955, se mudou para o terreno na Glória, onde se casou com a primeira esposa, que trabalhava para a família Azambuja, dona do lugar, que deu permissão para que eles vivessem ali. Contudo tempo depois, segundo relata Geneci, tentaram retirá-los. “Meu pai tinha esse pressentimento, o medo de que no dia que ele se fosse [falecesse], como ele era uma pessoa doente, eles iam tentar fazer isso. Aí ele entrou na justiça com uma ação de usucapião”, conta.

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Após o falecimento da primeira esposa, o patriarca Adão Fausto Flores da Silva conheceu Rosalina da Costa Vasconcelos, mãe de Geneci e Gerson. Juntos, continuaram vivendo no local. “Eles se conheceram num terreiro da prima do meu pai, na grutinha da Glória. Ele batia tambores, fazia o canto. Foi ali onde conheceu a minha mãe”, conta Geneci. Quando se conheceram, Adão era viúvo e Rosalina tinha cinco filhos, frutos de seu primeiro casamento. Eles se casaram em 1975, e Rosalina, que até então morava na Estrada dos Alpes, se mudou, junto de seu pai, Eurico Lopes da Costa, e seus filhos para o território onde hoje se localiza o quilombo. 

Da união de Adão e Rosalina, 45 famílias se constituíram. “Tenho irmãos que não moram aqui no quilombo, mas eles sabem que independente de onde forem, são do Quilombo Flores. Eles se autodeclaram quilombolas e isso é muito importante, esse reconhecimento de sua origem”, ressalta Geneci. Atualmente, quatro famílias residem no local.


A matriarca Rosalina e família / Fonte: Acervo de Ariel Rocha de Lima

Localizado em uma zona de classe média da capital gaúcha, Geneci comenta que os moradores do entorno já os reconhecem como quilombo e procuram saber sua história. Situação divergente da que passaram seus pais. “Existia um pouco de preconceito da nossa vizinhança, tudo que acontecia de ruim nas esquinas eles apontavam: ‘deve ser aquela família lá’, quando meus irmãos eram adolescentes, ‘ah deve ser aquela negrada lá do canto’. Tudo que acontecia de errado na rua eles apontavam para nós, a ‘negrada’ do canto da rua, sendo que o nosso reconhecimento vinha mesmo através da comunidade, através da periferia”, desabafa.

Agora, afirma a liderança, a nova geração é uma geração que não se deixou abater. “A geração da minha mãe é uma geração que não tinha muita defesa. A nossa geração agora é uma geração que já tem mais estudo, que tem mais convívio com a população”, complementa.

Sob a proteção de Bará e a herança dos pais 

Em frente à casa de Gerson, na entrada do quilombo, uma pequena casinha vermelha chama atenção: trata-se da morada do Bará, de quem Gerson é filho espiritual. Para as religiões de matriz africana, o Orixá Bará é o mensageiro divino, guardião dos templos, casas e cidades. É o dono de todas as portas, de todas as chaves e de todos os caminhos.


Bará é o dono de todas as portas, de todas as chaves e de todos os caminhos / Foto: Fabiana Reinholz

Gerson herdou a religiosidade dos pais. Adão, além da profissão de engraxate, tinha o trabalho de curandeiro espiritual e cultivava ervas e chás. Já a matriarca Rosalina era filha de Iemanjá. “Eu me lembro que o meu pai tinha um altar dentro de casa, ele era Pai de Santo. Daí, antes do fim do ano [1981], houve um incêndio criminoso, queimou tudo que era dele, do santo dele”, conta Gerson. O incêndio fez também com que se perdessem os registros antigos da presença no território. A família chegou a protocolar um boletim de ocorrência, mas não houve investigação. 

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Rosalina, falecida em 2021, vítima da covid-19,  frequentava a Mãe Santa Tereza e levava com ela os seus filhos. Gerson conta que ela prestava assistência, mas que não frequentava a roda. “Ela sentia a vibração quando cantava o canto da mãe Iemanjá e saía rodando. E todos nós ficávamos impressionados. Ela era uma pessoa analfabeta, mas falava as coisas e tudo mais. Além disso, a minha mãe tinha visões, visões que a gente não tem. Ela via coisas e nos falava. Eu cheguei na religião por causa do meu pai e da minha mãe, e também por necessidade. Eu fiquei muito doente, daí eu tive que procurar algum recurso, e procurei e entrei na religião.” 

Gerson e Geneci chamam atenção para um círculo no território, formado por cinco árvores. De acordo com eles, era lá que muitas das visões da mãe aconteciam. Assim como o pai, Gerson está no caminho para se tornar Pai de Santo. No território, ele cultiva ervas, chás e faz banho. 


Círculo no território, formado por cinco árvores, um dos lugares que a matriarca tinha visões / Foto: Fabiana Reinholz

Trabalhos na comunidade 

Mãe solo de três filhos, de 17, 11 e 28 anos, Geneci já é avó. Estudou teatro, formou um grupo de rap com uma ex-cunhada, escreveu o rap da família Flores* e outro da família Lemos. "Apresentei na Casa de Cultura Mário Quintana, também cantava na Febem (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor)”, conta. 

Além disso, Geneci dedica-se aos trabalhos sociais. Há seis anos, ela é professora de futebol, junto ao Centro Comunitário do Bairro Glória. Ela faz parte do Projeto Geração Tigres, para crianças de 6 a 11 anos. O envolvimento do futebol faz parte da história do Quilombo Flores, de acordo com ela. Durante a infância, não tinha campos de futebol no bairro Glória, só o antigo Caveirinha, campinho que faz parte do território da família. "Vinham famílias e passavam o dia todo jogando bola”, narra.

Para manter a história viva, foi construído um galpão no território onde as escolas são recebidas. Ali é contada a trajetória do quilombo. Futuramente, segundo Geneci, a ideia é fazer uma cozinha voluntária para poder realizar doações de alimentos. Em suas aulas de futebol e nas visitas que as escolas fazem ao local, Geneci reforça a importância do povo negro.

“O Brasil só existe hoje porque os ancestrais de vocês ajudaram a construí-lo. Ele tem essa tecnologia que tem hoje porque vocês ajudaram a construir com a mão escrava. Então, não deixem que isso se acabe. A nossa história, apesar do sofrimento que a gente passou, é tão linda”, elucida.  

Ser quilombola, reconhecer as raízes

De acordo com Geneci, as comunidades estão cheias de quilombos, no entanto, nas suas palavras: “devido ao sofrimento do nosso povo, que sofre até hoje descriminação, tem medo; tem medo dessas leis que infelizmente não nos favorecem, que estão sempre contra nós, um povo humilde, um povo trabalhador”.

Ao ser indagada sobre o que é um quilombo, ela reitera que é um refúgio. “Quilombo para mim é onde a pessoa se sente bem, é onde a pessoa possa vir e se sentir livre. Onde ela mostra o que tem de bom, onde se passa a sua cultura. Um quilombo é a nossa terra, a mãe-terra, onde a gente não se vende. Isso que nós quilombolas viemos mostrar, que nós não temos preço, a nossa terra, nossa ancestralidade, a nossa história não tem preço”, ressalta. 


João Augusto da Silva Meireles / Foto: Fabiana Reinholz

Para João Augusto da Silva Meireles, 28 anos, primo de Geneci e Gerson, ser quilombola é um orgulho. “Só de pensar que os meus avós, os meus antepassados, lutaram para termos esse direito, para mim é uma satisfação. Fico feliz que o nosso povo está sendo mais reconhecido por todo mundo. Eu espero estar repassando isso para os meus filhos, para futuramente eles estarem seguindo com essa geração nossa”, comenta.

João tem um filho de quatro anos, chamado Lincon Augusto, que já vem trilhando os passos da família: ele já possui a sua própria hortinha plantada com a ajuda da família. 


Hortinha do Lincon / Foto: Fabiana Reinholz

Wiliam da Silva Meireles, 17 anos, destaca brevemente a importância dos quilombos no passado: “Escravos que fugiam dos lugares onde eles trabalhavam, onde eram escravizados, e iam para esses quilombos, onde praticavam capoeira e todas as outras coisas que eles queriam fazer, e se escondiam também. Hoje em dia eu sei que quilombos são áreas protegidas e são preservadas pelo governo. Eu sei que sou quilombola”.

Com 11 anos, Luís Gustavo Flores da Silva complementa que ser quilombola é paixão. “É tipo de uma comunidade que ajuda as pessoas também, que ajudava as pessoas escravizadas antigamente, e que segue ajudando.”


William (E) e Luis Gustavo (D) / Foto: Fabiana Reinholz

Integrante da Frente Quilombola, Geneci diz que o trabalho da entidade é importante para que as comunidades não tenham medo. “A gente tinha medo da repressão da lei. A Frente mostrou que a gente não tem que ter medo, a nossa história é tão rica, que a gente tem que ter voz, a gente tem que falar, tem que denunciar. E o mais importante - coisa que não vê muito no século XXI - diálogo com a nossa família, nossos filhos, nossos netos, trazer isso de volta, nossa história, dos nossos pais, nossos avós, nossos tataravós, as lutas dos nossos ancestrais, o quanto eles lutaram para gente estar vivo até hoje”, explica.


"A nossa história, apesar do sofrimento que a gente passou, é tão linda” / Foto: Fabiana Reinholz

Quilombo das Flores

Apresento para você a história da família do povo brasileiro, que batalha nesta vida.
Lutar por igualdade é resgatando a nossa trilha

Lei ventre livre concedia liberdade em pleno século XXI, isso ficou só na vontade,
falo para você a mais pura verdade
Tá aqui Quilombo Flores para relatar, 
por sua igualdade buscando por justiça que quase foi tirada
aliada por irmão minha pátria amada

O que pensam que são para matar a nossa cultura? Preto, pobre, excluído pelas ruas

Essa é a missão que Quilombo vem cantar
a nossa tradição e origem para mostrar, 
dança, capoeira, movimento religioso
respeita a irmandade que acredita no seu povo

Lutar por um país de igualdade para todos
ver meu povo negro e fazer de novo

Eu só quero é ser feliz e andar tranquilamente no Quilombo onde nasci é
e poder me orgulhar e ter a consciência que Quilombo Flores tem seu lugar

A cruel forma da vida que um pouco será mostrada
criança pobre negra retirada de suas casas

Consciência negra hoje só existe no papel,
violência, preconceito e torre de babel

Fique esperto meu irmão,
querem apagar nossa história te mostra a verdade
trazendo a trajetória de nossos ancestrais
que lutaram por nossa liberdade,
escravos, fugitivos, só queriam igualdade 

No mundo que vivo hoje não é diferente,
vivo acorrentada e presa na minha mente

Meu cabelo, minha pele é a minha identidade
Eu sou negra, sou bonita, grito minha igualdade
Minha vida passada indica quem eu sou,
liberdades dos escravos que a branca acorrentou

Meus irmãos a nossa luta não pode parar, povo negro força para lutar
cultura negra precisamos resgatar
então, te digo, não deixa de acreditar

Eu só quero é ser feliz e andar tranquilamente no Quilombo onde nasci é
e poder me orgulhar e ter a consciência que Quilombo Flores tem seu lugar

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Daniel Lamir e Marcelo Ferreira