PetroCaribe

Venezuela e países do Caribe querem reativar programa de venda de petróleo criado por Chávez

Lançado em 2005, PetroCaribe abastecia 16 países; crise mundial dos combustíveis deve favorecer renascimento do projeto

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |

Ouça o áudio:

Ideia foi levantada por Maduro e tem sido respaldada por diversos países do Caribe - AFP

A recente crise por combustíveis agravada pelos efeitos da guerra na Ucrânia fizeram com que a Venezuela voltasse a ser encarada por diversos países do Ocidente como uma solução devido a suas grandes reservas de petróleo. Conversas entre representantes do governo Joe Biden e Nicolás Maduro, além de apelos de líderes europeus, marcaram os últimos movimentos em busca de fontes energéticas que, para a Venezuela, podem levar a um possível alívio nas sanções petroleiras.

Enquanto tenta negociar saídas que aliviem o bloqueio e impulsionem a indústria energética, o país agora mostra suas intenções de reativar o PetroCaribe, programa de fornecimento de petróleo a países caribenhos que foi criado pelo ex-presidente Hugo Chávez em 2005 e praticamente interrompido à força após as sanções estadunidenses contra a indústria petroleira venezuelana em 2019. 

A ideia, levantada por Maduro ainda em fevereiro deste ano, tem sido respaldada por diversos países do Caribe que pedem o fim das medidas coercitivas de Washington e veem no programa uma solução para suprir a demanda por combustíveis.

No último dia 6 de julho, os membros da Caricom (Comunidade do Caribe) assinaram uma resolução conjunta exigindo que os EUA encerrem o bloqueio contra a Venezuela “para permitir que os países da região se beneficiem da iniciativa PetroCaribe". Após o encontro, que ocorreu no Suriname, o primeiro-ministro de São Vicente e Granadinas, Ralph Gonsalves, afirmou que a reativação do programa seria fundamental para os países da região que também foram impactados pelo conflito entre Rússia e Ucrânia. Em abril, o premiê esteve em Caracas e se reuniu com Maduro, ocasião na qual acordaram o retorno do comércio de combustíveis entre os dois países com descontos de 35% na gasolina.

Segundo Franco Vielma, pesquisador da área de petróleo, as condições geopolíticas atuais são extremamente favoráveis para a retomada do projeto que pode suprir a demanda caribenha por combustíveis e ainda incrementar a renda petroleira venezuelana.

“As perspectivas para a retomada do PetroCaribe são sumamente favoráveis e estão dadas sobre as condições de emergência energética. O Caribe estava em uma situação de vulnerabilidade que só foi resolvida de maneira coerente quando o PetroCaribe estava ativo. Historicamente, esses países estiveram em um ostracismo energético e econômico durante muitos anos e, evidentemente, o quadro atual de emergência os coloca em uma situação de vulnerabilidade muito maior, sobretudo pelo preço do petróleo, da gasolina, do diesel e do gás”, afirmou o pesquisador em entrevista ao Brasil de Fato.

:: Com Zonas Econômicas Especiais, Venezuela quer superar bloqueio e dependência petroleira ::

Embora a reativação do programa encontre campo fértil pela conjuntura internacional, o atual estado da indústria petroleira venezuelana pode obrigar que o programa funcione de maneira distinta da que operava há uma década. Afetada pelas sanções, a Venezuela não possui os mesmos índices de produção de petróleo do período em que o programa foi criado.

Segundo dados da OPEP, o país fechou o mês de junho deste ano produzindo cerca de 706 mil barris de petróleo por dia. Apesar de haver uma leve recuperação em comparação com os números de dois anos atrás, quando a produção caiu para 500 mil barris, o número ainda está longe dos quase 3 milhões que extraía há uma década.

Durante os anos de 2008 e 2010, a Venezuela fornecia em média entre 400 mil e 500 mil barris de petróleo e derivados aos países caribenhos através do PetroCaribe. Com a produção atual, o país não poderia se comprometer com os mesmos níveis de fornecimento do período. 

Para Vielma, o retorno do programa deverá ocorrer em novos termos que observe novas cotas de fornecimento de petróleo e que não seja oneroso nem para a Venezuela e nem para a região do Caribe.

“Esses acordos estavam marcados pela singularidade daquele momento, quando não havia condições de bloqueio e de embargo comercial contra o petróleo venezuelano. Portanto, o cenário de relançamento do PetroCaribe impõe novos termos, ele deve ocorrer com novos acordos que sejam viáveis tanto nas condições de fornecimento, como nas condições de preço e também de pagamento, já que todas essas condições serão ditadas pela crise atual e pelo bloqueio”, disse.

PetroCaribe será mais pragmático?

Encabeçado por Chávez e tendo a parceira ativa do ex-presidente cubano Fidel Castro, o PetroCaribe contava com outros 16 países além de Venezuela e Cuba: Nicarágua, República Dominicana, Costa Rica, Guatemala, Haiti, Antígua e Barbuda, Bahamas, Belize, Dominica, Granada, Guiana, Jamaica, São Cristóvão e Nevis, São Vicente e Granadinas, Santa Lúcia e Suriname. 

Na prática, o programa permitia que os demais países comprassem petróleo e derivados da Venezuela a crédito, com uma taxa de juros abaixo do mercado. Se o preço do barril estivesse menor que 40 dólares, o país comprador teria 25 anos para pagar parte da mercadoria com uma taxa de juros a 2%. Caso o preço do barril aumentasse para mais de 40 dólares, a taxa de juros cairia para 1%. Além disso, o governo venezuelano oferecia o financiamento de 40% do valor total se o preço do cru estivesse acima dos 50 dólares, de 50% se o barril estivesse acima dos 80 dólares e de 60% se o produto ultrapasse os 100 dólares.

Os pagamentos ao governo venezuelano poderiam ser feitos tanto em dinheiro como em bens e serviços. O projeto, além disso, foi responsável pela ativação de duas refinarias em países caribenhos, sendo a de Curaçao e a Camilo Cienfuegos, em Cuba, as mais importantes.

:: Ex-assessor de Trump admite ter planejado golpes de Estado ::

Além de ter um peso econômico significativo para as pequenas nações caribenhas, o programa era politicamente relevante para a Venezuela, que acabava exercendo uma espécie de “diplomacia do petróleo” na região. O funcionamento do PetroCaribe acarretou em uma maior aproximação diplomática entre o governo venezuelano e países caribenhos e permitia que o governo Chávez tivesse apoio dessas nações em diversas instâncias multilaterais, como a ONU (Organização das Nações Unidas) e a OEA (Organização dos Estados Americanos), principalmente no enfrentamento recorrente entre Caracas e Washington. 

O projeto surgiu meses após a criação da Alba-TCP (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América – Tratado de Comércio dos Povos), que, fundada em 2004 por Chávez e Fidel, buscava ser um espaço de integração latino-americano para se contrapor a outros foros que tinham a presença dos EUA. Ao contrário do PetroCaribe, a Alba segue em funcionamento e é composta por Cuba, Venezuela, Nicarágua, Bolívia e vários países caribenhos.

As dificuldades de produção da Venezuela e o contexto internacional devem levar os países a agirem com mais pragmatismo em um possível retorno do programa, seja no aspecto econômico, revendo os mecanismos de financiamento, ou até mesmo modificando os laços diplomáticos que o governo venezuelano construiu através do PetroCaribe ao longo dos anos.

Apesar de afirmar que os mecanismos financeiros serão diferentes para um relançamento do programa, Vielma assegura que a posição diplomática dos países da região em relação à Venezuela nunca esteve condicionada pelo PetroCaribe, já que a “imensa maioria dos países da Caricom manteve uma posição de apoio, uma posição inclusive politicamente leal à Venezuela no cenário geopolítico internacional”.

“O programa não condiciona nem a posição que a Venezuela teve dentro do Caribe e nem a posição dos países do Caribe a respeito da Venezuela. Nos piores momentos de bloqueio e assédio diplomático contra a Venezuela, a maioria desses países mantiveram uma posição leal aos princípios integracionistas que foram fundados em anos anteriores, apesar do declínio do PetroCaribe”, afirmou.

Venezuela e caminhos para integração regional

Se durante os governos de Chávez a Venezuela desempenhou um papel importante na construção e fomento de mecanismos de integração na América Latina, como com a criação do PetroCaribe e da Alba ou com o apoio às fundações da Celac e da Unasul, a eleição de distintos governo de direita na região acabou deixando o país politicamente isolado. 

Com a adesão de Brasil, Colômbia, Chile e Argentina à estratégia de “pressão máxima” adotada por Donald Trump, o governo de Nicolás Maduro passou a ser visto como “pária” na região e, sofrendo os impactos das sanções e da crise econômica, perdeu peso diplomático em instâncias multilaterais.

:: Onda progressista na América Latina é sintoma do "fracasso do neoliberalismo", diz Celso Amorim ::

Agora, com o triunfo de alguns governantes de esquerda em países vizinhos e o possível retorno de Lula à Presidência do Brasil, o país quer aproveitar a modesta recuperação da economia interna para se apresentar mais uma vez como um agente diplomático relevante na América Latina.

Vielma, entretanto, acredita que, apesar de se falar em um novo ciclo progressista na América Latina, não existem condições para que a Venezuela volte a ter uma participação protagonista em mecanismos de integração regionais porque alguns governos recém-eleitos, como de Gustavo Petro, na Colômbia, e de Gabriel Boric, no Chile, devem pressionar para afastar o país dessas esferas.

“São países que não vão reconhecer a Venezuela como um centro dinâmico das contradições entre esquerda e direita no continente. Eles seguirão uma lógica moderada e adotarão uma postura de sobrevivência. Portanto, não há condições na atualidade para falarmos de um bloco unificado latino-americano porque existem esses governos de esquerda na região que claramente estão comprometidos com a tarefa de pressionar a Venezuela”, afirma.

Edição: Arturo Hartmann