ABC ELEITORAL

Chile vota neste domingo se aprova ou rejeita nova Constituição; relembre o processo

Cerca de 15 milhões de eleitores deverão decidir se abandonam atual carta magna, herdada da ditadura de Augusto Pinochet

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Cerca de 15 milhões de chilenos estão convocados a votar no plebiscito sobre a nova Constituição neste domingo (4) - Javier Torres / AFP

Neste domingo (4), cerca de 15 milhões de chilenos e chilenas são chamados a votar para aprovar ou rejeitar a nova Constituição. A nova Carta Magna é a primeira da história escrita por um grupo de 155 constituintes, igualmente composto por homens e mulheres. O voto neste plebiscito constitucional é obrigatório para todos os cidadãos maiores de 18 anos. 

Além da consulta, a data marca 52 anos do início do governo de Salvador Allende, que com a Unidade Popular propunha uma série de reformas de base, interrompidas pelo golpe de Estado e 27 anos de ditadura militar, herança que agora pode ser enterrada pela nova Constituição. O novo texto constitucional foi elaborado para substituir a carta magna de 1980, promulgada durante a ditadura de Augusto Pinochet, e vigente até hoje, tendo passado por reformas em 1989 e em 2005.

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"Se aprovarmos essa constituição será um salto adiante para consolidar a soberania popular no Chile. Este é o ponto de partida, não de chegada", comenta ao Brasil de Fato o sociólogo chileno, Esteban Silva.

A pergunta nas cédulas de votação é: "Você aprova o texto da nova Constituição proposta pela Convenção Constitucional?". As opções de resposta são "aprovo" ou "rechaço". O novo texto é composto de 388 artigos e está dividido em dez seções. 

As últimas pesquisas divulgadas apontam uma possível vitória do "rechaço', que oscila entre 46 e 55%; já a opção "aprovo" teria cerca de 33 a 38% de apoio, enquanto ainda existe uma margem de 13 a 16% de indecisos.


A nova proposta constitucional foi a edição mais impressa dos dois últimos meses no Chile / Martin Bernetti / AFP

Veja as principais mudanças 

Estado Plurinacional

Na nova Constituição está previsto que o Chile seja reconhecido como um Estado plurinacional. As dez nações indígenas que habitam o território chileno terão seu próprio sistema representativo, jurídico e eleitoral. Se aprovada, serão reconhecidos como emblemas nacionais os símbolos e bandeiras das nações Mapuche, Aymara, Rapa Nui, Lickanantay, Quechua, Colla, Diaguita, Chango, Kawashkar e Yaghan, e Selk'nam, que representam cerca de 12,7% da população.

Reforma entre poderes

A nova Carta Magna propõe que haja paridade de gênero em todos os poderes do Estado. O Legislativo será formado por duas câmaras paritárias com 155 parlamentares eleitos por voto direto. Também indica a criação de Câmaras Regionais com três representantes eleitos.

O Executivo continuará sendo regido por um sistema presidencial, com mandato de quatro anos e possibilidade de reeleição imediata - a regra não se aplica ao atual presidente Gabriel Boric.

Ao Poder Judicial serão incorporados os tribunais de instâncias: civis, penais, da família, do trabalho; assim como cortes de apelação e a Corte Suprema. O Conselho de Justiça estará encarregado de nomear os magistrados e gerir o judiciário.

Saúde, Educação e Previdência 

A proposta de nova Constituição reconhece o acesso à saúde e à educação como direito de todos. Propõe a criação do Sistema Nacional de Saúde com financiamento público e acesso universal. 

O acesso à educação também seria universal e o texto é claro ao proibir que as instituições educativas tenham lucro. Determina que a educação deve ser laica, gratuita, de qualidade e não sexista.

Por fim, a nova Carta Magna determina que a seguridade social deve ser baseada na universalidade e na solidariedade, e que o financiamento deve vir dos trabalhadores e das empresas, através de impostos.

Gênero e sexualidade

A nova Constituição determina que todos os organismos dos Estado, assim como as empresas públicas, devem ser compostos em 50% por homens e 50% por mulheres. 

O novo texto também prevê o direito à interrupção da gravidez de forma voluntária, livre, segura e acompanhado por equipes multiprofissionais dentro do sistema público de saúde.

Questão ambiental

Pela primeira vez uma Constituição reconhece os direitos da natureza. O texto identifica que o mundo atravessa uma emergência climática e que é responsabilidade do Estado diminuir as ações que poluem, desmatam ou destroem a diversidade ambiental.


Uma das principais mudanças da nova carta magna é a transformação do Chile num Estado plurinaiconal, reconhecendo o direito dos pvoos indígenas que habitam o país / Mario Quilodran / AFP

O que acontece se vencer o "sim"

Caso o texto constitucional seja aprovado, o presidente tem até cinco dias para convocar uma sessão extraordinária do Congresso para, "num ato público e solene, promulgar e de jure acatar a nova Constituição", como definido pela legislação atual. Depois haverá um prazo de dez dias para que o novo texto seja publicado no Diário Oficial da União e entre em vigor. 

"Esse texto está na linha do neoconstitucionalismo latino-americano e caribenho, que avançou nos últimos anos graças a processos constituintes, como da República Bolivariana da Venezuela, como da constituição equatoriana e no Estado plurinacional da Bolívia", avalia Esteban Silva.

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E se ganha o "não"?

A constituição de 1980 permanece vigente e haverá uma nova disputa política sobre o processo. Os partidos da coalizão "Aprovo Dignidade", da qual faz parte o atual presidente Gabriel Boric, assinaram um acordo para levar adiante reformas contidas na nova proposta constitucional.

O governo chileno propõe a eleição de uma nova Convenção Constitucional para elaborar outra proposta de texto, no caso de uma derrota. 

Já os partidos de direita defendem a redação de uma nova proposta constitucional, mas propõem outro plebiscito para definir como seria o mecanismo de elaboração de uma nova Carta Magna. 


Segundo as últimas pesquisas de opinião, a opção 'rechaço" poderia ser vitoriosa no plebiscito chileno deste domingo (4) / Martin Bernetti / AFP

Campanha de desinformação

Setores em defesa do "aprovo" denunciam a existência de uma campanha de desinformação sobre o novo texto constitucional. Notícias falsas como dizer que a nova lei determina o fim da propriedade privada e autoriza o confisco de casas, ou que afirmam que a proposta daria brechas para instaurar o "comunismo" no Chile.

Sobre o caráter de Estado plurinacional, setores de oposição disseminam que a nova Carta daria privilégios a povos indígenas e possibilitaria a divisão do país em várias regiões autônomas, baseadas em sistemas de autogoverno, o que também não é verídico. 

"Muitos sequer leram o texto, já o rejeitavam desde o início porque não podiam admitir uma proposta que viesse de elaboração popular", comenta Esteban Silva. 

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O sociólogo chileno acusa o empresariado de financiar a difusão de fake news sobre a nova constituição para evitar perder privilégios contidos no texto vigente desde 1980. Após o mau desempenho da plataforma Chile Vamos na eleição da Convenção Constitucional e, em seguida, a derrota de José Antonio Kast na corrida presidencial, a vitória do "não" no chamado plebiscito de saída seria a última tentativa da direita chilena de manter seu prestígio político.

"Alguns setores da economia com propriedade concentrada, como os meios de comunicação e agentes financeiros, foram beneficiados com a atual Constituição. Estes setores e as forças políticas de direita criaram uma contracampanha que busca restaurar a atual constituição através do rechaço, porque a Carta Magna atual foi favorável ao modelo econômico neoliberal", critica Silva. 

O presidente Gabriel Boric está empenhado em incentivar a participação popular no referendo. "Teu voto decide e determinará a história do nosso país. Como governo, em conjunto com outras instituições do Estado, estamos fazendo todos os esforços que nos correspondem para garantir o direito ao voto neste 4 de setembro", disse.


Em 2019, Gabriel Boric era deputado pelo partido Convergência Social, e foi um dos signatários do acordo de paz com o governo Piñera / Senado Chile

 

Oposição pela esquerda

Além dos setores de direita também há organizações de esquerda que estão convocando o voto nulo por considerar que o texto final não compreende parte das demandas da revolta social de 2019. 

Em 2019, Boric, ainda deputado, foi um dos 11 representantes de partidos políticos que assinaram o acordo de paz com a gestão de Sebastián Piñera, colocando fim aos protestos daquele ano e iniciando o processo constituinte. 

Alguns setores da esquerda criticam o governo atual de ser a versão 2.0 da chamada Concertación - aliança entre partidos de centro-direita e centro-esquerda que governou o país de 1990 a 2010.  

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Usam, como exemplos, a decisão de manter o estado de emergência e militarização do sul do país, em repressão a povos Mapuche; a demora em apresentar uma reforma tributária; a ausência de uma reforma da previdência e a posição contrária do governo ao "quinto saque" das pensões, favorecendo as Administradoras de Fundos de Pensão (AFP) e contradizendo os discursos que tanto Boric como os atuais ministros fizeram no Congresso em favor dos saques anteriores, há menos de dois anos, durante os governos de Sebastián Piñera.

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O sociólogo chileno reconhece que parte das propostas populares não foram incorporadas à redação final, mas considera que a proposta pode ser a Constituição mais avançada da história chilena.

"Uma constituinte é parte do processo de recuperação da soberania popular. A outra opção é uma revolução, que altera tudo. E não foi isso que aconteceu no Chile. Aqui tivemos uma rebelião popular e cidadã, que abriu o início de um processo constituinte. Evidentemente é um processo que gera participação, mas está sujeito à correlação de forças na sociedade", conclui Esteban Silva. 

Os primeiros resultados oficiais devem ser divulgadas uma hora após o fim da votação, por volta das 19h (hora local) e 20h (horário de Brasília), de acordo com o Serviço Eleitoral do Chile.


Confira a linha do tempo do processo constituinte chileno / arte: Michele Gonçalves/Brasil de Fato

Edição: Arturo Hartmann