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Com Bolsonaro "quem está sendo atacada não é a imprensa, é a democracia", diz Jamil Chade

Jornalista é o convidado da semana no BDF Entrevista e fala sobre o lançamento de seu novo livro "Ao Brasil, com Amor"

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Jamil Chade está lançando "Ao Brasil, com Amor", uma troca de cartas com a também jornalista Juliana Monteiro - UN Photo/Jean Marc Ferré
Se alguém quiser saber quem eu sou basta ler essas cartas e não precisa ler os outros livros

As sistemáticas agressões de Jair Bolsonaro (PL) à imprensa não foram interrompidas, mesmo durante o período eleitoral. Até durante o funeral da Rainha Elizabeth 2ª, em Londres, apoiadores do presidente da República assediaram jornalistas brasileiros da BBC, veículo de mídia sediado no Reino Unido, que tentavam cobrir a passagem de Bolsonaro pela capital britânica. 

Para o jornalista Jamil Chade, colunista do portal de notícias UOL, essas agressões são, na verdade, "um ataque à própria democracia". Chade, que lança neste mês o livro "Ao Brasil com Amor", em parceria com a também jornalista Juliana Monteiro, é o convidado desta semana no BDF Entrevista.

"A gente tem várias jornalistas brasileiras que são atacadas ao vivo por ele, sem nenhum constrangimento. A gente precisa entender porque a imprensa é atacada pelo bolsonarismo, porque ela representa a pergunta, ela representa a insatisfação com a resposta dada", afirma Chade. 

Durante o primeiro debate presidencial deste ano, no grupo Bandeirantes, Bolsonaro hostilizou a repórter Vera Magalhães. Dias depois, também durante um debate, desta vez de candidatos ao governo do Estado de São Paulo, a mesma jornalista foi atacada por um deputado estadual, apoiador do presidente. 

O próprio jornalista Jamil Chade foi atacado por seguranças da presidência, durante viagem de Bolsonaro à Roma, quando participou do G20, em novembro do ano passado. Na ocasião, Chade teve seu celular roubado pelos agentes, enquanto fazia uma pergunta ao presidente - durante a viagem, Bolsonaro tentou evitar contato com a imprensa. 

"O que aconteceu em novembro foi que, obviamente, ele estava tentando se esconder da imprensa brasileira durante o G20, saindo pela pela porta dos fundos da embaixada. Até que, no último dia, a gente finalmente descobriu por onde ele ia sair para aquelas caminhadas dele. E aí foram perguntas que foram feitas. Ninguém atacou ninguém. A minha pergunta foi: por que é que o senhor não vai para a COP, a Conferência do Clima das Nações Unidas, em Glasgow? Essa foi a pergunta, bastava responder", comenta o jornalista. 

Na entrevista, Chade comenta ainda sobre a sua nova publicação, uma troca de cartas entre dois jornalistas que vivem fora do Brasil - ele em Genebra, na Suíça, ela em Roma, na Itália - e que tentam entender o seu país e se entenderem como sujeitos durante a pandemia de covid-19 e todos os desastres sociais que se seguiram.

"Se alguém quiser saber quem eu sou basta ler essas cartas e não precisa ler os outros livros. Esse é o meu oitavo livro e eu acho que, pela primeira vez, eu digo o que eu sinto e o que eu penso. Não é uma análise da política externa, da geopolítica, da fome no mundo. É sobre como isso tudo me afeta".

"Somos dois brasileiros que moramos na Europa. Sim, absolutamente privilegiados, fora de qualquer contexto de dificuldade, em uma bolha. Mas a gente entendeu que a gente compartilhava muitas angústias e muitos sonhos. E que isso era uma realidade, que muitas das coisas eu falava pra ela, muitas das perguntas que eu tinha sobre a pandemia, era ela quem respondia, não era a OMS. E de um jeito muito natural veio a ideia de troca de cartas", completa Chade.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Você está lançando um livro, "Ao Brasil, com Amor", com a também jornalista Juliana Monteiro. E o conceito de carta pra mim é das coisas mais interessantes que a gente tem na literatura brasileira. Estava lendo, pouco tempo atrás, uma carta do João Guimarães Rosa para um outro escritor contemporâneo dele em Minas Gerais, João Condé, onde ele explica o processo de construção de Sagarana. Esses registros sempre atraem por mostrar facetas mais reais dos autores. Como foi a ideia da troca de cartas e de colocar pra fora anseios tão pessoais? 

Jamil Chade: Eu concordo contigo. Se alguém quiser saber quem eu sou basta ler essas cartas e não precisa ler os outros livros. Esse é o meu oitavo livro e eu acho que, pela primeira vez, eu digo o que eu sinto e o que eu penso. Não é uma análise da política externa, da geopolítica, da fome no mundo. É sobre como isso tudo me afeta.

De fato, eu acho que você tem toda razão, [as cartas] são um instrumento muito interessante, muito poderoso, inclusive pra gente entender até mesmo para fora daquele quadradinho, daquele assunto, daquele tema. Agora, essas cartas surgiram porque eu, de fato, não conhecia a Juliano Monteiro. Não era uma amiga, nunca a tinha visto. 

Mas o que aconteceu foi que, no auge da pandemia, eu moro em Genebra há 22 anos, e uma das coberturas de Genebra é a OMS (Organização Mundial da Saúde), que na pandemia vira o centro do mundo. De repente a OMS, e você se lembra muito bem, tinha coletiva de imprensa todos os dias, muita atenção e eu cobria aquilo tudo.

E o mundo estava em confinamento, ou pelo menos a Europa - acho que o Brasil ainda não estava - principalmente a Itália onde a Juliana mora. E o que aconteceu é que, por esses mistérios, o algoritmo me trouxe o texto dela relatando o confinamento em Roma. E essa é uma constatação, eu convido a quem estiver interessado no livro a descobrir isso: a Juliana é brilhante no que ela escreve.

E aí você descobre que esse brilhantismo ela consegue traduzir o sofrimento, o drama, inclusive pessoal, em um texto. Esses textos passaram a ser minha base para entender o que era um confinamento, o que era aquela situação tão dramática. E foi ali que eu a conheci, lendo os textos dela. 

Ao longo dos meses seguintes nós entramos em contato, começamos a conversar. A gente tem filhos nas mesmas idades, ela tem dois filhos, eu tenho dois filhos. Somos dois brasileiros que moramos na Europa. Sim, absolutamente privilegiados, fora de qualquer contexto de dificuldade, em uma bolha. 

Mas a gente entendeu que a gente compartilhava muitas angústias e muitos sonhos. E que isso era uma realidade, que muitas das coisas eu falava pra ela, muitas das perguntas que eu tinha sobre a pandemia, era ela quem respondia, não era a OMS. E de um jeito muito natural veio a ideia de troca de cartas. A gente tinha justamente um canal pra fazer isso, que era uma revista muito linda com sede em Lisboa, que chama revista Pessoa e foi por essa revista que a gente começou a trocar cartas. 

Tem uma coisa muito linda dessa história também, que era o fato de que a gente não se conhecia. Então, na carta a gente tinha que nos apresentar de alguma forma. Era uma correspondência entre duas pessoas que não eram velhos conhecidos. Sabe aquela história que você faz uma brincadeira com teu amigo, que só vocês dois vão entender? Não tinha isso. Então isso também acabou funcionando para o livro. Porque os dois acabam se apresentando pro leitor também. 

Vale lembrar, isso é uma coisa que é importante, esse não é um livro sobre a pandemia, de jeito nenhum. Inclusive ele vem até agora, temas como desinformação, fake news, eleição, democracia, guerra na Ucrânia. Está tudo ali. Se eu não me engano, a pandemia é alvo basicamente de um dos capítulos só.

Vocês abordam diversos assuntos durante o livro, mas tem uma coisa interessante, e que você acabou de falar, que é sobre os privilégios, inclusive olhando para um Brasil tão desigual, de fora para dentro. Como isso te afeta no teu fazer jornalístico?

Olha meu caro, acho importante você ter colocado isso. Eu acho que tanto eu como a Juliana, a gente é absolutamente consciente dessa situação de privilégio. É por isso que a gente tenta, inclusive, não ter uma carga de ensinamentos: "faça isso ou faça aquilo". É muito mais um livro de perguntas, de problematizar a realidade, do que trazer respostas absolutas. 

Eu até fico muito incomodado, não sei se você tem reparado, principalmente nas redes sociais, mas não só, na mesa de bar também, a quantidade de gente no mundo com tanta certeza. Eu me pergunto…eu não consigo encontrar o meu espaço nesse mundo de tantas certezas. 

E o Twitter é essa rede de certezas, não é? São 140 caracteres de certeza absoluta...

Absoluta, o mundo está resolvido, no fundo. E aí você descobre que, obviamente, não. Por quê? Porque os problemas são muito mais complexos do que isso. É aquela história: vamos fazer um jogo de futebol entre Palestina e Israel, e confraternizar como se isso fosse a solução do problema. Se dependesse de um jogo de futebol esse conflito já estava resolvido há 2.000 anos.

Eu estou exagerando aqui, mas essa história de "vamos construir um muro e o problema da imigração vai parar"...não né? Ou você acha que um oceano para quem não sabe nadar de cruzar um oceano? Não para. Não sei se você sabe, mas na cultura árabe tem muito pouca tradição de natação. As pessoas não têm aula de natação. Então, quando a gente vê que, no Mediterrâneo, muita gente morre afogada, não é só porque o mar é perigoso, não é só porque teve uma tormenta, é porque naquela cultura ninguém sabe nadar. 

Você junta tudo isso e dá esse drama absoluto que é o Mediterrâneo. Agora você imagina colocar dois filhos em um bote furado, literalmente furado, pra cruzar o mar que nem você e nem teus filhos, nem tua mulher sabem nadar, é porque o que fica pra trás é muito mais perigoso do que aquilo ali que você vai enfrentar.

A primeira carta que abre o livro traz uma série de reflexões que, com certeza, dariam um programa específico pra gente falar. Quando você fala sobre a pandemia, você entrelaça a ideia de sociedade, do capitalismo, da crise climática, da individualidade, do futuro, do luto, enfim. Mas pra pegar um dos temas primeiro, a pandemia, como você falou, nos transformou enquanto sociedade. Daquele texto pra cá muita coisa mudou, a gente conseguiu viver de uma maneira próxima ao normal, as vacinas salvaram vidas, mas sinto que pouco se transformou em termos de individualidade, de como a gente encara a vida coletiva. A eleição no Brasil, por exemplo, tem sido um espelho de todas essas nossas chagas? 

É uma excelente pergunta, meu caro, por que eu ainda acho que a pandemia não terminou no que se refere ao impacto que ela teve. Eu acho que a gente só vai fazer o luto dessa pandemia quando houver, por exemplo, um reconhecimento do estado dessas mortes.

Porque, qual foi a ordem de cima? Vamos seguir com as nossas vidas. Quando a gente parou e disse: "calma aí, vamos pensar em tudo que aconteceu?". Não teve esse momento. O Brasil não teve esse momento. E aí, não dá pra você pensar que a sociedade vai, sozinha, fazer isso. Alguns grupos fazem, agora a maioria deles, não. 

E as autoridades, justamente para tirar a sua responsabilidade, mandaram a vida seguir. Sem falar da responsabilização, da crise, do que acontece. Agora, o Brasil não vai superar a pandemia enquanto os casos não caem, enquanto a gente não entender o que aconteceu nesses últimos dois anos, enquanto não houver essa compreensão, esse luto coletivo. Obviamente a gente vai fingir que a vida voltou ao normal. 

Como é que a vida voltou ao normal, se tanta gente perdeu tanta gente querida? E insisto, não é que perdeu porque já era a hora delas, isso é um absurdo, é um total absurdo. Agora, esse processo só vai ser completado não quando houver um minuto de silêncio no jogo de futebol. Não é isso. 

É quando houver a responsabilização nos tribunais. Aí sim faremos um luto, que vai ter que fazer parte de um processo de reconciliação. E reconciliação não é perdoar. É saber o que aconteceu e dizer entre cada um de nós: vamos construir uma coisa juntos. Esse é o primeiro ponto. 

Segundo, a questão da eleição…obviamente não houve um luto, não houve a responsabilização, porque quem é o responsável, ou aqueles que são responsáveis querem ganhar uma eleição. Se eles param tudo isso pra dizer, "vamos ver quem foi o responsável", obviamente eles não vencem a eleição. Então a gente precisa entender o luto, a pandemia e a eleição num pacote só.

E olha o que aconteceu com o Donald Trump. Ele perdeu a eleição por conta da pandemia. Estava muito mais perto daquele momento. Economicamente, antes da pandemia, os Estados Unidos tinham uma situação relativamente boa, ele ganharia a eleição.

E aproveitando que a gente entrou nesse tema da eleição, a imagem do Bolsonaro fora do país é uma tragédia, não só por conta da própria pandemia, mas por todo o contexto. Os Estados Unidos, por exemplo, como você citou, ameaçaram com sanções e quebra de parcerias militares, em caso de um golpe no Brasil. Como você tem acompanhado esse momento delicado da nossa democracia, olhando de fora pra dentro?

Eu acho que o Brasil passou por várias etapas, desde o início do governo Bolsonaro. Acho que a principal delas foi essa transformação da imagem do país, mas ela teve três momentos importantes. O primeiro deles foi os incêndios nas florestas, o desmatamento. Foi isso que trouxe o Bolsonaro para ser um nome conhecido da população de fora do país, não foi a eleição dele. 

Até a eleição do Bolsonaro era "ah, aquele cara estranho, que a gente não sabia nem dizer o nome, que é hoje o presidente do Brasil". A Amazônia traz ele para, como se diz em inglês, um "household name", ou seja, um nome que todo mundo conhece, um nome popular, por bem ou por mal. Nesse caso, especificamente, por muito mal. Essa é a primeira etapa da destruição da imagem do Brasil. 

Teve uma segunda etapa quando vem a pandemia e o negacionismo do Brasil. E aí o Brasil passa a ser visto como uma ameaça sanitária. Então, depois de uma ameaça climática a gente ganha um novo capítulo, ou uma nova camada de ameaça sanitária. E mais recentemente, com essas ameaças de golpe - vocês viram a capa da The Economist outro dia - quando o Brasil ganha uma nova camada, que é de ameaça democrática. 

Elas, obviamente, afetam a inserção do Brasil no mundo. Essa inserção do Brasil, que foi construída ao longo de décadas, ela foi de uma forma muito eficiente destruída, com muita velocidade e com muita força. Isso tudo acontece ao longo de três anos e meio e não é por acaso. 

Além do presidente de Portugal, qual outro chefe de estado, ou chefe de governo europeu, visitou o Brasil nesses últimos três anos? Muito poucos. Tivemos o [Viktor] Orban, na posse, e mais alguns. Mas Portugal tem uma tradição de manter relações com o Brasil, não importa a dimensão da crise brasileira. Isso sempre foi assim. 

Inclusive, em uma das visitas, o presidente de Portugal foi se encontrar com o ex-presidente Lula e não conseguiu agenda com o Bolsonaro…

Não é só que não conseguiu agenda, o Bolsonaro cancelou um almoço que tinha com ele. "Eu não vou te receber porque eu não aturo a existência da oposição". É não entender nem o que é a democracia. Democracia é governo e oposição. A oposição faz parte do sistema. Em um parlamento, ela é parte do sistema. 

E me assusta muito quando eu penso que ele estava lá há 27 anos, como deputado. Será que não aprendeu nada em 27 anos, sobre o que é democracia? Ele basicamente percorreu a própria história da redemocratização brasileira. 

Essa é hoje a imagem do Brasil, absolutamente deteriorada, com uma inserção desastrosa. Agora, qualquer um que chegar para assumir o Brasil vai ser recebido com alívio. Mas não vai ser fácil a reinserção do Brasil, porque não existe vácuo na política internacional. O espaço deixado pelo Brasil foi ocupado, é uma situação que, ao longo dos próximos anos, a gente vai ver como isso vai acontecer.

Você falou sobre oposição e democracia. E um dos exercícios do jornalismo, por exemplo, é o questionamento ao governo eleito, seja ele qual for. Você teve o celular roubado por seguranças que, supostamente, estariam ligados à segurança do presidente Jair Bolsonaro durante cobertura de uma visita do presidente à Itália. Como se deu esse momento? O fazer jornalismo sempre esteve ameaçado desde 2018, não é? 

Aquilo, em novembro do ano passado, foi muito dramático. Não porque foi o meu caso, mas pela relação do poder com a imprensa, que é óbvio, é de confrontação. Mas uma confrontação dentro da democracia. A confrontação existe entre a imprensa suíça e o governo suíço. O papel da imprensa é de questionar, questionar e questionar, não tem amizade. Não é questionar para ser o chato, é questionar para saber, em nome da sociedade, o que é que está sendo feito, qual é a lógica das decisões que estão sendo tomadas.

Agora, o que aconteceu em novembro foi que, obviamente, ele estava tentando se esconder da imprensa brasileira durante o G20, saindo pela pela porta dos fundos da embaixada, não passando agenda da viagem, o que é um absurdo total. Recebendo só a imprensa amiga dentro da embaixada, ou seja, tudo de errado. 

Até que, no último dia, a gente finalmente descobriu por onde ele ia sair para aquelas caminhadas dele, pra mostrar que ele é muito popular. Porque daí ninguém questiona, ele só leva a imprensa dele, ou seja, as redes sociais e os aliados, os cúmplices - porque não tem outro nome para essa mídia, ela é cúmplice do atual crime que acontece no país. 

O resto da imprensa conseguiu descobrir onde ele estava e fomos seguindo. Eles ficaram extremamente nervosos pela presença de gente de fora, ou seja, não estava previsto nada daquilo, porque era um momento pra ele fazer aquelas aquelas imagens estapafúrdias, sendo abraçado pelo mundo, o que a gente sabe que é algo complicado. 

E aí foram perguntas que foram feitas. Ninguém atacou ninguém. A minha pergunta foi: por que é que o senhor não vai para a COP, a Conferência do Clima das Nações Unidas, em Glasgow? Essa foi a pergunta, bastava responder. Teve outros casos também, com a Globo.

Agora, a gente tem que entender que o meu caso é absolutamente irrelevante. A gente tem várias jornalistas brasileiras, que são atacadas ao vivo por ele, sem nenhum constrangimento. A gente precisa entender porque a imprensa é atacada pelo bolsonarismo, porque ela representa a pergunta, ela representa a insatisfação com a resposta dada. 

E nesse regime, não há previsão de que se vá dar respostas, essa é a grande dificuldade. Então, a gente precisa entender que quem está sendo atacado não é a imprensa, é a democracia. 

Sobre o fazer jornalístico, acho que para além da questão com o Bolsonaro, a profissão vive um momento muito particular. A notícia já não tem mais o mesmo peso, os veículos estão sob constante questionamento de credibilidade, muito por conta do que foi sendo incutido na cabeça das pessoas durante esses últimos anos. Mas o fluxo da notícia, por outro lado, nunca foi tão intenso com as redes sociais. Como é que você enxerga a profissão hoje, Jamil? 

É um desafio gigantesco, porque o que faz o desafio é obviamente uma nova tecnologia, que ninguém estava preparado, nem governos, nem os profissionais, nem a sociedade, em primeiro lugar. 

Em segundo lugar, a gente precisa entender também que você tem uma transformação que precisa ser acompanhada de uma nova educação. A gente precisa sentar com a molecada e voltar a ensinar a ler notícia. O que é ler notícia? Ler a data primeiro, saber se tem fonte naquele dado que foi apresentado, saber o que é opinião e o que é fato. Tudo isso precisa ser recolocado.

De um lado você precisa de educação e de outro lado, de regras claras sobre o que pode e o que não pode. Então, não pode fazer uma ofensa racista na rua? Não pode. Agora, pode isso na internet? Por quê? 

Agora vemos um novo capítulo da tensão entre o Tribunal Superior Eleitoral e os militares. Uma notícia dá conta de que os militares farão uma apuração paralela dos votos. O Tribunal, por sua vez, disse que não há acordo entre com os militares, mas que a prática é legal, é possível fazer essa apuração dos boletins de urna das sessões eleitorais. Você acredita que esse é um terreno fértil pro questionamento do resultado das eleições, principalmente no caso de derrota do presidente da República? Como você citou, na The Economist, eles colocam o Bolsonaro num paralelo ao Donald Trump, e a eleição de 2020, que foi chamada de a Grande Mentira. 

Certamente. Em nenhuma democracia do mundo os militares nem monitoram e nem contam votos. Não existe isso. Inclusive quando acaba a Guerra Fria você tem várias transformações no Leste Europeu e a criação de institutos, um deles especificamente em Genebra, que chama Centro para o Controle Civil das Forças Armadas, justamente para ajudar esses países a fazer uma transição, para que o controle civil sobre as Forças Armadas fosse a base total desses novos países. 

E aí estamos falando do ex-Bloco Soviético, que obviamente vivia uma situação autoritária e que precisava passar por uma democracia. Na transição para a democracia, descobriram que tem uma coisa absolutamente fundamental, que é o controle civil sobre as Forças Armadas.

Isso pode ser, obviamente, uma receita desastrosa. Se, por exemplo, os militares, com aquelas poucas urnas, que supostamente vão fazer a contagem, chegarem a constatação de que: "olha, aqui deu outro resultado?".

Quem são esses militares? Como é que serão selecionados? Tudo isso vai ter que entrar na pergunta a partir de agora. Por isso é muito importante e esse é um trabalho que a sociedade civil brasileira tem feito tanto nos Estados Unidos como na Europa, que é de convencer os governos europeus a reconhecerem, quase que imediatamente, os resultados do TSE. Pra quê? Pra deixar muito claro que um eventual golpe no Brasil não vai ter apoio internacional. 

Isso foi feito na disputa entre Donald Trump e Joe Biden. Assim que saiu o resultado do Joe Biden, [Emmanuel] Macron, a [Angela] Merkel e vários governos europeus, até o secretário geral da ONU [António Guterres] que não apita nada sobre política doméstica, correram pra falar sobre o assunto. 

Reconhecer a vitória era dizer pra Donald Trump e os seus aliados “se vocês insistirem, nós não vamos reconhecer”. É algo muito importante e pode ser esse caminho na comunidade internacional também. 

Edição: Thalita Pires