Eleições 2022

Como seria a política com o fim do fundo eleitoral proposto por Felipe D’Avila?

Financiamento privado dá peso desproporcional para a influência das camadas mais ricas da população

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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O candidato do Novo defende a medida para “retirar os partidos da zona de conforto dos recursos subsidiados” - Reprodução/Facebook/Felipe D'Avila

Uma das propostas de governo do candidato à Presidência da República Felipe D’Avila (Novo) é a extinção do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), mais conhecido como Fundão Eleitoral. O objetivo, de acordo com o programa, é "retirar os partidos da zona de conforto dos recursos subsidiados" e ampliar o papel das doações individuais aos partidos e campanhas. O candidato defende que a medida empoderaria o eleitor, aumentaria a competição eleitoral e promoveria a renovação política.

Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato afirmam, no entanto, que extinção do fundo eleitoral e a ampliação das doações individuais poderiam, ao contrário, concentrar ainda mais os recursos nas mãos de políticos alinhados programaticamente aos setores mais endinheirados da sociedade. A consequência direta seria a influência acentuada desses setores na gestão pública em prol de seus interesses.

O empoderamento do eleitor, o aumento da competição eleitoral e a renovação política iriam, nesse caminho, por água abaixo, reforçando o espaço da elite econômica na arena política.

Mesmo com fundo eleitoral, jogo ainda é desigual

Carmela Zigoni, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), explica que o fundo eleitoral representa um avanço democrático ao fortalecer o direito da população a se organizar partidariamente e ter condições de participar das disputais eleitorais. Trata-se, portanto, de uma conquista dos movimentos sociais que atuam para tornar a disputa pelo poder mais competitiva e democrática.

Zigoni explica que "o objetivo é barrar que grandes empresas e corporações façam doações para candidatos, que depois não atuam pelos interesses coletivos, mas pelos interesses daqueles que patrocinaram a candidatura".

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Nessa mesma linha, Carlos Augusto Dias de Assis, analista judiciário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), afirma em artigo que "se o dinheiro é o elemento em torno do qual todas as nuanças da campanha eleitoral gravitam, tornando-se um fator de extrema importância a influenciar o sistema político-partidário em suas fases pré e pós-eleitoral", é evidente que, "no modelo privado de financiamento de campanhas eleitorais, não há a participação ativa, efetiva e igualitária de todos os grupos sociais, políticos, econômicos e culturais que compõem uma nação".

No texto, escrito para a revista eletrônica da Escola Judiciária Eleitoral (EJE) do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Assis defende que o financiamento privado cria um "Poder Legislativo completamente cego, surdo e mudo aos anseios populares, composto majoritariamente por representantes dos interesses privados de grandes empresas, grupos financeiros, conglomerados industriais nacionais e estrangeiros e oligarquias latifundiárias".

Fundo Eleitoral, Partidário e doações individuais 

João Vicente Augusto Neves, advogado especialista em direito eleitoral, explica que o fundo eleitoral foi criado em 2017 e trouxe em seu bojo uma decisão do STF de setembro de 2015 que proibiu as doações de pessoas jurídicas para as campanhas eleitorais.

Desde então, as disputas passaram a ser financiadas por doações individuais, fundo eleitoral e, eventualmente, pelo Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, ou Fundo Partidário, criado em 1965. Este último surgiu para custear as atividades cotidianas dos partidos, como contas de luz e água, aluguel, transporte, entre outros gastos. Seu uso para campanhas eleitorais é decidido pelo próprio partido.

"O fundo partidário se destina a bancar a existência do partido, que tem uma estrutura que precisa ser bancada. Outra coisa é o Fundo Eleitoral que surgiu em 2017, que é para bancar a campanha só em ano eleitoral, a partir dos registros das candidaturas", explica Neves. "É uma tentativa de que todo partido possa existir minimamente e tenha as mínimas condições de disputar a eleição."

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Antes dos fundos, eram os próprios candidatos que financiavam as eleições, pelo menos até a década de 1930, segundo Paolo Ricci, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP).

Ao financiar os pleitos, os setores endinheirados da sociedade, formado por uma parcela que se entrelaça entre políticos e coronéis, acabam por controlar as próprias eleições, consequentemente. Somente "quando aumenta a competição política" e "os custos eleitorais também aumentam" é que surge a necessidade de algum modelo de financiamento público.

"Na democracia de 1945, os custos eleitorais explodem, por causa do aumento da competição política, ou seja, o político agora deve fazer campanha de fato", explica Ricci. Soma-se a isso "o aumento dos eleitores, que se deve ao aumento da população em idade de votar e à competição política que obriga candidatos e partidos a investir no alistamento de eleitores".

Nesse contexto, "grande parte dos políticos abusava de recursos externos, financiados por empreiteiras e por caixa dois", o que é um dos resultados do financiamento privado de campanha. 

Financiamento exclusivamente público 

A despeito da proibição de doações por empresas, determinados partidos e candidatos continuam a receber valores exorbitantes e que destoam do financiamento de outras siglas e candidaturas. Por isso, Carmela Zigoni defende que o financiamento seja exclusivamente público.

"A gente sabe que tem doações individuais em valores muito altos que não correspondem, por exemplo, a uma candidatura menor que está começando ou de mulheres, que ainda recebem menos, fazem suas vaquinhas, mas não têm acesso a esse tipo de doação vultuosa de recursos. O jogo fica muito desigual", diz Zigoni.

"Sem o fundo público muitas candidaturas ficariam sem recursos, e a renovação política acabava entrando mais comprometida ainda por uma lógica de financiamento privado. Na prática, isso significa que não está chegando recurso para comprar santinho, contratar gente para fazer as imagens que vão para internet, comprar material, etc." 

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Durante o debate na TV Band, em 28 de agosto, D’Avila chamou a verba do Fundão de "indecência" e "excrescência". Em resposta, a candidata Soraya Thronicke (União Brasil) citou o patrimônio de D’Avila e as doações milionárias realizadas aos candidatos do Novo.

"Candidato, nem todos têm o patrimônio que o senhor tem e que muitos doadores da campanha de vocês têm para tocar uma campanha, que é cara. Muito cara. Se nós não tivéssemos o Fundo Eleitoral para financiar a democracia, nós nunca – principalmente nós, mulheres –, jamais teríamos acesso à política. Ainda é necessário", rebateu a candidata.

De fato, o Novo já recebeu cerca de R$ 5 milhões em doações para as campanhas do partido para as eleições de outubro. Entre os financiadores, estão os empresários Abílio Diniz, sogro de D’Avila, que depositou R$ 1 milhão; Patrice Etlin, sócio da Advent International, com uma doação de R$ 222.994; Paulo Sergio Coutinho Galvão Filho, CEO da GL Holdings e integrante dos conselhos de administração do Grupo Klabin e do Grupo RD – RaiaDrogasil, que doou R$ 166.666; e Luis Stuhlberger, do Fundo Verde, com R$ 149.659.

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De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Salim Mattar, fundador da Localiza, é o segundo maior doador de campanhas até o momento, com uma doação de R$ 3,125 milhões para 27 candidaturas, sendo 18 do Novo. Coincidência ou não, a Localiza foi uma das maiores beneficiadas da isenção do pagamento de R$ 1 bilhão em renúncias fiscais do IPVA em 2022, segundo informações são do Ministério Público de Contas de Minas Gerais.

No ano anterior, Salim Mattar doou R$ 500 mil para o Novo, sendo o segundo maior doador do partido. O principal foi seu irmão, presidente do conselho de administração da Localiza, Eugênio Pacelli Mattar, que no mesmo ano desembolsou R$ 1,5 milhão para a legenda, de acordo com o site do TSE. Salim Mattar também foi secretário de Desestatização e Privatização do Ministério da Economia de Jair Bolsonaro (PL) e hoje é consultor na Secretaria de Desenvolvimento Econômico do governo Zema.

O caso ilustra porque o advogado João Vicente Augusto Neves afirma que uma das formas de tornar o jogo menos desigual seria limitar o montante da doação, independentemente de ser proveniente de pessoa física ou jurídica. "O problema não é exatamente a doação empresarial, o problema é o montante. Os donos de empresas continuam fazendo as doações milionárias", afirma Neves.

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Nesse sentido, afirma Paolo Ricci, financiamento público é necessário para "não permitir que indivíduos ou corporações financiem os políticos, pois isso poderia resultar em expectativas de retorno por parte dos financiadores em termos de políticas públicas". O professor também sugere que "há também formas diferentes de promover o financiamento de partidos, como por exemplo as deduções fiscais, isto é, não apenas fatiando o dinheiro, mas permitindo o acesso gratuito a certos benefícios".

Edição: Nicolau Soares