Coluna

Os desafios no primeiro giro internacional de Lula

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Lula é recebido no aeroporto pelo chanceler da Argentina - Irina Dambrauskas / Ministério das Relações Exteriores da Argentina / AFP
Setores econômicos internos favoráveis à integração tem estado em decadência na última década

* Ana Tereza Lopes Marra de Sousa – Professora da UFABC e Coordenadora do Grupo de China do OPEB

Após quatro anos de uma política regional desastrosa, marcada pela retirada brasileira de dinâmicas de cooperação, pela submissão das relações com a América Latina e Caribe (ALC) às diretrizes de Washington e pela gratuita ofensa a governantes vizinhos, o Brasil tenta retomar o prumo. Lula inicia nessa segunda, 23 de janeiro, sua primeira viagem internacional. A escolha do destino, a Argentina de Alberto Fernandez, é significativa, não só pelo que representa em termos da recolocação, em novos patamares, das relações argentino-brasileiras, mas pelas possibilidades que se abrem para um novo momento das interações regionais.

Pauta com a Argentina

Tradicionalmente, a primeira viagem internacional de um/uma presidente empossado/a brasileiro/a tem como destino a Argentina. A escolha tem sido um reconhecimento da importância que se atribui às relações com o principal parceiro estratégico brasileiro na América Latina, mercado essencial para a exportações nacionais de produtos manufaturados, e principal interlocutor político do país na região, com o qual se desenvolveu o mais profundo mecanismo de integração – o Mercosul – que o Brasil participa.

Lula chega à Argentina tentando resgatar as relações bilaterais de seu mais baixo nível das últimas quatro décadas. Em termos bilaterais, como um primeiro objetivo, espera-se reabrir os canais de comunicação e concertação entre os países, prejudicados pela anti-diplomacia de Bolsonaro. Como afirmaram Lula e Fernandez, a visita deve marcar um novo começo para as relações.

Lembra-se que Bolsonaro, quebrando a tradição, escolheu em 2019 o Chile como destino de sua primeira viagem internacional, tratando com desdém a Argentina, em especial depois da eleição de Fernandez. Assim, um aspecto relevante da viagem é recuperar a perspectiva de o Brasil ter uma política de Estado com relação à Argentina, que recoloque a capacidade de interlocução do país nas relações bilaterais.

Em termos práticos, haverá a retomada de discussões sobre pautas que eram comuns em outros tempos: a reindustrialização dos países, a criação de uma moeda comum, o desenvolvimento de infraestrutura conjunta, em especial no setor energético – o embaixador Michel Arslanian Neto, secretário das Américas do Itamaraty, já afirmou que o Brasil tem interesse em discutir a construção de um gasoduto entre os países – , e a reativação de grupos de trabalhos conjuntos, como o relacionado a Cooperação Espacial. Pelo menos dois acordos já foram anunciados, um convênio entre a Empresa Brasil de Comunicação, a EBC e a TV pública da Argentina, e outro de cooperação logística e científica nas estações que os países possuem na Antártida.

Pauta regional

Lula participa, ainda na Argentina, da 7ª Cúpula de Chefas e Chefes de Estado da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), mecanismo institucional constituído pelos 33 países a América Latina e Caribe (ALC) visando facilitar a concertação e coordenação política em áreas de interesse comum. O Brasil havia suspendido sua participação no órgão durante o governo Bolsonaro, mas anunciou sua plena reintegração com a posse de Lula.

Embora a Celac não seja um espaço que crie ações vinculantes de integração, o mecanismo tem buscado se reafirmar como espaço de autonomia da ALC perante os EUA e a Organização dos Estados Americanos (OEA). Tanto na cúpula realizada no México, em 2021, como na que se realiza agora na Argentina, o chefe da OEA, Luis Almagro, não foi convidado devido ao papel desempenhado no golpe na Bolívia em 2019.

Outro destaque da Celac tem sido o fato de o mecanismo ter se colocado como interlocutor para as relações da ALC, em conjunto, com parceiros externos relevantes, como a União Europeia e a China. No caso do Fórum China-Celac, foram desenvolvidos planos conjuntos para a cooperação e concertação dos países da ALC com a China, criando-se um marco para o aprofundamento das relações. Contudo, o potencial da organização tem sido sub-aproveitado, muito em função do fato de que o Brasil, o maior e mais desenvolvido (em termos de tamanho do PIB) país da ALC, tinha virado as costas para o mecanismo.

Desse modo, ao passo que a re-entrada do Brasil na comunidade ajuda a aumentar a legitimidade da Celac, – o que qualitativamente deve alterar a capacidade da ALC de negociar conjuntamente pautas com interlocutores externos –, a reunião da Celac se apresenta para Lula como a porta de entrada para recolocação do Brasil como ator relevante para as dinâmicas regionais, com a possibilidade de que possa re-exercer papel de liderança. Não só se espera que haja impulso, com a reintegração do Brasil para as relações da Celac, com parceiros externos, como, em especial, espera-se que na reunião sejam discutidos os principais problemas enfrentados pelos países da região nos últimos anos, com destaque para a fragilidade das democracias perante o avanço de forças da extrema direita. Espera-se que Lula consiga um coro para reforçar o apoio da ALC – já demonstrado desde as primeiras horas dos ataques terroristas em Brasília, em 08 de janeiro – à democracia brasileira.

Lula deve aproveitar seu primeiro giro internacional para, ainda na Argentina, realizar reuniões bilaterais com outros representantes de Estados. Reuniões com Nicolás Maduro, da Venezuela, e Miguel Díaz-Canel, presidente de Cuba – países duramente atacados pela anti-diplomacia de Bolsonaro e apontados como motivos para que o Brasil abandonasse a Celac – estão na agenda do brasileiro, em um claro sinal de que o governo busca a normalização, em bases cooperativas, das relações regionais.

Posteriormente, Lula fará a partir de quarta-feira uma visita ao Uruguai, onde será recebido pelo presidente Luis Alberto Lacalle Pou, que possui ligação a tendências políticas de direita. O encontro reforça a retomada do pragmatismo na política externa, abandonado por Bolsonaro.


Presidente uruguaio Luis Lacalle Pou durante cúpula do Mercosul / Mercosul

Contexto difícil

Tanto do lado brasileiro, como do lado dos países da ALC, há a expectativa de que o Brasil volte a desempenhar papel relevante na região. Contudo, o contexto atual é bem diferente daquele que caracterizou a onda rosa de anos atrás.

Primeiro, o Brasil teve sua capacidade de interlocução abalada na região, tanto pelo fato de ter abandonado mecanismos regionais, como pela desastrosa diplomacia de Bolsonaro e submissão da política regional, em vários aspectos, às diretrizes de Washington (como foi, por exemplo, no caso da Venezuela). Nesse meio tempo, o México de Manuel López Obrador, e até a Argentina de Fernandez, têm tentado ocupar o espaço de liderança deixado pelo vácuo da atuação brasileira. Lula terá que recuperar a credibilidade abalada. Essa questão, contudo, dado o histórico positivo atrelado à imagem de Lula em vários países da ALC, apesar de relevante, não é maior que outros desafios: i) a construção de uma política regional calcada em interesses domésticos; ii) o efeito China e; iii) as dificuldades de cooperação regional.

O desempenho de um papel relevante do Brasil nas dinâmicas regionais passa, em termos domésticos, pela criação de uma convergência mínima de interesses em torno da integração regional. Isso possibilitará avançar para além do discurso da cooperação em direção a ações concretas. Esse aspecto deve ser um desafio para o governo Lula. De um lado, setores econômicos internos favoráveis à integração tem estado em decadência na última década (como o caso das empresas do setor de construção civil), muitos dos quais afetados pelas operações da Lava Jato e pelo desmonte do papel indutor do Estado na economia. De outro, há grupos que tem pautado a integração apenas como instrumento para a interlocução – nos termos mais liberais possíveis – com mercados externos. É o caso por exemplo daqueles que só enxergam algum tipo de papel para o Mercosul quando se conjuga o acordo com a União Europeia.

A recuperação da capacidade de atuação regional brasileira, assim, estará relacionada com a própria capacidade do governo Lula de fomentar, e colocar em primeiro plano, interesses de grupos domésticos que sejam favoráveis à integração e, inclusive, que entendam a necessidade de o Estado recriar elementos relevantes para a atuação brasileira, como, por exemplo, um ativo papel do BNDES como provedor de recursos para a ALC.

O segundo desafio da retomada do Brasil na região é a presença crescente da China, que tem se transformado para muitos países da ALC em 1ª ou 2ª maior parceira comercial, e em importante fonte de investimentos e financiamentos. Do Brasil, a China tem ocupado market share na venda de produtos industrializados, prejudicando as exportações, e, diante do refreio da internacionalização de empresas brasileiras, ocupado um espaço que antes o país era capaz de disputar. As relações da ALC com a China, ao passo que alteram a complementaridade econômica do Brasil com os países da região, afetam o próprio interesse doméstico na integração regional.

O caminho para diminuir o "efeito China" poderia passar pela própria reorganização da dinâmica das relações entre a ALC e a China. O Brasil poderia tentar articular conjuntamente a região para negociar melhores termos nas relações econômicas, principalmente no que diz respeito à entrada de investimentos chineses que pudessem contribuir para o desenvolvimento endógeno da ALC. No entanto, esse é outro grande desafio. A julgar pelo histórico de dificuldades da integração na região, é difícil que uma ação coletiva dessa monta possa ser levada a cabo, mesmo que o Brasil consiga retomar com Lula um papel de liderança. Talvez, haja mais chances de coordenação via Mercosul do que em mecanismos mais amplos como a Celac.

Mas, há espaço para algum otimismo mesmo diante desses desafios.

A viagem de Lula à Argentina deve inaugurar um momento de maior entendimento entre os países. A história mostra que sem Brasil e Argentina minimamente afinados, é difícil pensar em avanços na integração regional. A re-convergência entre os países, assim, é um aspecto importante para a região. Outro fator é o papel que a Celac vem adquirindo nos últimos anos como elemento que agrega os países da ALC, historicamente desarticulados entre si e divididos em uma série de iniciativas sub-regionais. Ainda que os interesses dentro do mecanismo possam não coincidir em tudo, abre-se a possibilidade, com a volta do Brasil ao órgão, para concertar uma atuação mais qualificada.

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Thales Schmidt