RUMO À URSAL?

Terceiro governo de Lula marca início de nova 'onda rosa' na América Latina

Economia, China e meio ambiente são alguns dos principais desafios dos governos progressistas da região

Brasil de Fato |

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Onda do progressismo conta com Lula (Brasil), Maduro (Venezuela), AMLO (México), Petro (Colômbia) , Arce (Bolívia) , Fernández (Argentina), Diaz-Canel (Cuba), Xiomara Castro (Honduras) e Boric (Chile) - AFP

Na América Latina, o ano de 2022 foi marcado por processos eleitorais decisivos que penderam a balança política para o lado do progressismo. As vitórias de Gabriel Boric, no Chile, de Gustavo Petro, na Colômbia, e de Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, consolidaram uma região com nove governos alinhados à esquerda e centro-esquerda.

O mapa vermelho foi motivo de memes na internet que reviveram a ideia da “URSAL”: a União de Repúblicas Socialistas da América Latina. O Brasil de Fato ouviu especialistas para saber quais são as perspectivas de um novo projeto de integração latino-americana diante do terceiro governo de Lula. Passamos por temas de destaque na região, como a preservação ambiental e os recursos naturais, a relação com a China e os Estados Unidos, as propostas para a economia regional e as instâncias de diálogo e cooperação, como a Unasul, a Celac e o Mercosul.


Eleições na Colômbia e no Brasil foram destaque de 2022: vice-presidenta colombiana, Francia Márquez, visitou o presidente Lula da Silva em outubro / Nelson Almeida / AFP

As duas ondas progressistas e os novos atores globais

Na primeira chamada “onda rosa”, durante os primeiros anos do século 21, a região viu a vitória de Lula, Hugo Chávez (Venezuela); Néstor e Cristina Kirchner (Argentina); Evo Morales (Bolívia); Rafael Correa (Equador); Fernando Lugo (Paraguai); Tabaré Vásquez e Pepe Mujica (Uruguai); Manuel Zelaya (Honduras); além de Fidel e Raul Castro (Cuba) e Daniel Ortega (Nicarágua).  

Agora, a onda progressista se reedita com Lula, Alberto Fernández (Argentina); Luis Arce (Bolívia); Nicolás Maduro (Venezuela); Gustavo Petro (Colômbia); Andrés Manuel López Obrador (México); Xiomara Castro (Honduras); Miguel Díaz-Canel (Cuba), Daniel Ortega (Nicarágua) e Gabriel Boric (Chile).

:: Que caminhos a integração de uma nova onda de progressismo na América Latina pode tomar? ::

Pela primeira vez, as maiores potências econômicas da região e economias medianas serão chefiadas pela esquerda no mesmo período. Apesar de certa hegemonia, os desafios políticos e econômicos desta terceira década do milênio também são maiores.  

"A América Latina, em 2022 é um território em disputa", diz o sociólogo venezuelano Ociel Alí López, para quem a diferença primordial reside na relação dos países latino-americanos com os Estados Unidos. "A região já não está totalmente alinhada aos EUA, e isso em 2022 foi chave. Neste ano, o continente girou à esquerda, independentemente dos matizes entre os governos, mas numa situação geopolítica totalmente diferente de anos anteriores", completa.

O principal fator neste aspecto é a relação da China com países da América Latina, que mudou drasticamente o mapa geopolítico e proporciona uma nova leitura, multipolar, para o mundo.

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O comércio bilateral entre China e América Latina aumenta progressivamente, desde a valorização das commodities, na primeira década dos anos 2000. Em 2021, houve um recorde com US$ 400 bilhões (mais de R$ 2 trilhões) em intercâmbio. E, desde 2013, 22 países latino-americanos já aderiram à proposta chinesa do Cinturão e da Rota (One Road, One Belt). Esta proposta consiste em empréstimos de bancos estatais de desenvolvimento chinês a países em desenvolvimento em troca de contratos de empresas chinesas por parte dos países beneficiários para obras de infraestrutura.

O subcontinente alberga cerca de 2.700 empresas chinesas, sendo o segundo maior destino de investimentos estrangeiros diretos. Não à toa, o governo chinês tenta estabelecer tratados de livre comércio com o Uruguai, El Salvador e com o Mercosul.

Cúpula dos chefes de Estado e de goveno da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA-TCP), no Palácio da Revolução, Cuba

As primeiras viagens internacionais de Lula como presidente em 2023 prenunciam sua política internacional: Argentina, Estados Unidos e China. "Os EUA desejam uma liderança brasileira que seja ao mesmo tempo simpática aos EUA, mas não um capacho", destaca o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Fabio Luis Barbosa.

"Eu não seria tão otimista para falar em [superação da] dependência, mas acho que vamos criando novas dependências e um novo mapa geopolítico, que se abriu de maneira comercial”, destaca Ociel Ali López.

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Além de ser o principal sócio comercial da região, a China também é o país com maior capacidade de processamento de minerais fundamentais para a indústria tecnológica e abundantes no solo latino-americano, como cobalto, bauxita, lítio, terras raras, cobre e níquel. Por isso, outro desafio que surge para a região é a questão ambiental atrelada à questão econômica.


Argentina investe na estatal YPF Tecnologia para desenvolver indústria do lítio / Juan Mabromata /AFP

Recursos naturais

A diversidade de biomas e a vasta disposição de recursos naturais é vista como potencial da América Latina. Além de concentrar cerca de 31% das fontes de água doce do mundo, o continente também concentra as maiores reservas de minerais raros, como cobalto, cobre, níquel e lítio.

A América Latina concentra 68% das reservas globais deste último mineral – cerca de 21 milhões de toneladas –, com destaque para o chamado Triângulo do Lítio entre os territórios de Argentina, Bolívia e Chile; mas também já foram identificadas reservas do chamado "ouro branco" no Brasil e no México.

O mineral é usado na produção de baterias de longa duração e diversos equipamentos tecnológicos. A Agência Internacional de Energia (AIE) indica que a demanda global por lítio deve aumentar 22,5% entre 2020 e 2030.  

A única solução é fazer da conservação um negócio mais rentável que a exploração desses territórios

Por isso, uma das propostas do Plano Econômico aprovado pela Cepal, em novembro deste ano, é a industrialização da cadeia do lítio, como novo motor das economias latino-americanas. Além das reservas, Argentina, Brasil e México concentram infraestrutura e tecnologia necessária para a criação de protótipos de carros elétricos, que utilizam baterias de lítio.  

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Dessa forma, os países poderiam desenvolver a indústria e exportar bens de consumo com maior valor agregado, superando a etapa de dependência das exportações primárias. Nas previsões da Cepal, a venda de automóveis elétricos deverá representar 23% do total de exportações da indústria automobilística. 

Mas a proposta ignora os impactos ambientais da extração de matérias-primas necessárias para esses veículos e o modelo de cidade que ele impõe. A exploração de lítio demanda processos químicos e muita água: em um ano pode consumir o equivalente a uma cidade de 70 mil habitantes.

​​Para Barbosa, o desafio posto para os governos progressistas será conciliar as pautas ambientais com as exigências do mercado. "É o dilema que está colocado para qualquer dos governos progressistas que se proponham a enfrentar a questão ambiental", afirmou o professor da Unifesp. "A única solução que se vislumbra do ponto de vista da lógica progressista é fazer da conservação um negócio mais rentável que a exploração desses territórios", disse.

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Durante a COP27, o presidente eleito Lula da Silva manifestou a intenção de convocar uma nova reunião da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), que inclui o Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Suriname, Guiana, Colômbia e Venezuela. Os presidentes Gustavo Petro (Colômbia) e Nicolás Maduro (Venezuela) já concordaram com a convocatória de uma cúpula sul-americana entre todos os países que possuem partes da Floresta Amazônica em seus territórios. 

A Alemanha também já sinalizou a retomada do Fundo Amazônia, um repasse de cerca de 35 milhões de euros (quase R$ 200 milhões) voltados à preservação do bioma. O pagamento foi suspenso em 2019, após Bolsonaro extinguir unilateralmente dois comitês que eram responsáveis pela gestão do fundo, rompendo o acordo entre os países que definia as regras do projeto.

"Certamente essa relação transamazônica poderia também dar opções para o desenvolvimento, na medida que existam aliados internacionais", observa Ociel. "A América Latina conta com aliados em nível mundial que fazem com que o tema não seja somente uma questão entre esquerda e direita, ou uma solidariedade mundial entre povos oprimidos, mas sim outra forma de planejar como a região vê a geopolítica".

A relação transamazônica poderia também dar opções para o desenvolvimento, na medida que existam aliados internacionais


Vigilância da Amazônia é assunto de cooperação na fronteira entre Colômbia e Venezuela / Yuri Cortez / AFP

Economia regional

A América Latina encerra o ano de 2022 com um crescimento econômico de 3,7%, quase a metade do registrado em 2021, de 6,7%. A tendência para 2023 é de queda com previsão de 1,3% de crescimento econômico. O risco de aumento das taxas de juros e de desvalorizações das moedas seriam os principais fatores para a desaceleração no ano que vem. 

No início dos anos 2000 se discutia a possibilidade de criação do Sucre – uma moeda única para a América Latina. Agora, o novo ministro da Economia, Fernando Haddad, já defendeu a criação do Sur, uma moeda digital para incentivar o comércio intrarregional.

"Uma moeda é algo abstrato e que também tem um peso político, mas que se basearia no contexto interno. O que não sabemos é se essas grandes ideias realmente poderão ser apresentadas", observou o analista venzuelano, Ociel Ali López.

"A região da América Latina e Caribe crescerá 1,3% em 2023, afetada pelas incertezas externas e restrições internas, segundo o balanço preliminar das economias da Amérca Latina da Cepal. Revisa as novas projeções"

Pela primeira vez na história, o Brasil assumiu a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O cargo, no entanto, ficou nas mãos de um aliado de Bolsonaro, o ex-presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn. O ex-ministro petista da Fazenda Guido Mantega chegou a enviar um e-mail à secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, pedindo que o pleito fosse adiado por 45 a 60 dias, mas o pedido não foi atendido. 

Apesar de ter sido indicado pelo governo antecessor, as prioridades de Goldfajn apresentadas durante o processo seletivo do banco se alinham ao programa de Lula, com o combate à fome e a cooperação entre países. 

"As políticas mais idealistas no sentido de união latino-americana não vão desaparecer, mas andar em outra velocidade,  dependendo de temas mais subregionais", concluiu López.


Sede da Unasul na Bolívia: organismo de integração foi criado durante gestão de Dilma Rousseff e está paralisado desde 2019 / Freddy Zarco / AFP

Espaços de integração: Unasul, Celac, Mercosul

Em 2019, o Brasil rompeu com a União das Nações Sul-americanas (Unasul) -- organismo que ajudou a fundar em 2008. Já em 2020, o governo de Bolsonaro também rompeu com a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), declarando que o bloco que reúne todos os governos do subcontinente latino-americano seria um “palco para regimes antidemocráticos”.

Portanto, há uma grande expectativa sobre o retorno do Brasil a esses espaços de integração regional. "Temos que esperar que Lula chegue, e aí veremos de fato como vai ser esse meio-campo, se vai seguir uma linha mais moderada, na defensiva ou se vai criar jogadas de profundidade", reflete Ociel.

Em suas primeiras declarações, o chanceler nomeado por Lula, Mauro Vieira, confirmou a retomada de relações diplomáticas com a Venezuela a partir de 1º de janeiro, assim como o retorno a mecanismos de integração regional, como a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac).

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"Teremos uma volta a esses organismos, mas com um novo olhar, porque o mundo mudou. Será um olhar novo, construtivo, com solidariedade, visando sempre a colaboração entre países em desenvolvimento", disse Vieira em sua primeira entrevista coletiva após a indicação para o ministério das Relações Exteriores.

Até que ponto essa relação poderá ser mediada pelo Brasil como ator global e maior economia da região dependerá, em grande parte, da capacidade de resolução dos problemas domésticos, sugere Fabio Luis Barbosa. "Há um contexto econômico e internacional que não se anuncia como favorável, e um contexto político doméstico bastante conflituoso. De certa forma, tudo isso compromete uma reedição dos projetos de integração regional anteriores", apontou.

"Eu acho que podemos esperar uma reedição rebaixada do papel do Brasil. O projeto original de integração regional petista era, na realidade, um projeto de liderança brasileira, associada à projeção de negócios do capital brasileiro, ou sediados no Brasil", continua o professor. "Uma projeção regional desses negócios, uma política do BNDES, a diplomacia empresarial do Itamaraty, que incentivaram a internacionalização dessas empresas, como construtoras, a Petrobras, a Vale, os frigoríficos. A internacionalização dessas empresas brasileiras serviram como um alicerce econômico numa projeção regional do Brasil como um líder regional, e isso cacifa o papel do Brasil como global player no cenário global", analisou Barbosa.

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Com a saída do Brasil, as atividades da Unasul foram praticamente paralisadas. Já a Celac manteve reuniões anuais, buscando incrementar a relação comercial entre a região. O bloco composto por 32 nações está sob presidência da Argentina, que propõe que a Celac torne-se uma alternativa à Organização dos Estados Americanos (OEA).

"O problema da esquerda é que já não pode sonhar com o enfrentamento ao capitalismo porque precisa resolver os problemas imediatos", enfatizou Ociel Ali López. "No ciclo anterior [da onda rosa], se permitiram algumas coisas nesse sentido, mas este ciclo está muito fechado, exige respostas concretas. Por isso digo que na Celac e na Unasul não bastam insígnias anti-imperialistas ou unionistas, mas afirmar para que servem", comentou o sociólogo venezuelano.

Edição: Rodrigo Durão Coelho